Os efeitos do trabalho remoto e do distanciamento físico se revelam diferentes entre magistrades binário-generificades como homens e mulheres, pois a desigualdade de gênero, muitas vezes pensada em termos de participação feminina nas instituições, aparece nitidamente no cotidiano de todes, ainda que seja invisibilizada nas narrativas.
Patrícia Maeda
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 23/09/2020
Com a declaração da pandemia de Covid-19, em 11 de março de 2020, o Poder Judiciário, sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), suspendeu o atendimento presencial, desde meados de março, mantendo a maior parte de seu quadro funcional em trabalho remoto.
A Justiça do Trabalho se destacou neste período por ter a quase totalidade dos processos em andamento já no formato eletrônico (PJE), o que possibilitou a continuidade da tramitação, e por ter incentivado a realização de audiências telepresenciais.
No dia 30 de agosto de 2020, o CNJ apresentou no painel Produtividade Semanal do Poder Judiciário – regime de teletrabalho em razão do Covid-19 os seguintes dados referentes à Justiça do Trabalho: desde a primeira semana de trabalho remoto (16 a 22 de março), foram proferidos mais de 1,9 milhões de sentenças e acórdãos, mais de 2 milhões de decisões e mais de 7,6 milhões de despachos. Além disso, foram realizados mais de 104 milhões de movimentos processuais e destinados mais de R$ 219 milhões de recurso para combate à pandemia.
A despeito de constituir uma condição privilegiada em termos de segurança sanitária, o trabalho remoto improvisado a que magistrades[1] e servidores e servidoras tiveram que aderir não se trata exatamente de teletrabalho, pois, diante da situação de excepcionalidade, não houve o planejamento e a organização necessários para tanto. A mera transposição do trabalho nos fóruns para as residências parece um problema de ordem menor, se comparada com o cenário atual. Todavia, esta situação gera impactos diretos sobre a saúde física e mental, pois entram em cena demandas que não foram antecipadamente enfrentadas: um espaço destinado para o trabalho em tempo integral (e não apenas como um complemento da jornada realizada nos fóruns), o mobiliário adequado (monitores, mesa, cadeira), o equipamento com configuração mínima (placa de áudio e vídeo, câmera de vídeo etc.) para a realização de audiências telepresenciais etc.
Houve ainda a necessidade de enfrentar novas situações de fato e demandas, além de estudar os efeitos das normas do direito do trabalho emergencial. Ademais, servidores/as e juízes/as tiveram de aprender a atuar por meio de plataformas de videoconferências e rever a forma de organização do trabalho. Não obstante, se o PJE permitiu que não fosse interrompida a tramitação dos processos, o isolamento de servidores e juízes rompe o senso de coletivo e torna mais pesada a carga mental do trabalho intelectual, o que é agravado pelo desafio da produtividade.
O excesso de positividade[2] que marca uma parte des magistrades ficou evidenciado com as inúmeras iniciativas de realização de audiências remotas, mesmo antes de haver uma regulamentação própria. Além da anomia, o efeito invasivo de realizar audiências a partir do ambiente doméstico e a possível dificuldade técnica para que advogades e partes participassem não foram motivos suficientes para uma certa cautela na designação de audiências telepresenciais, sendo que em muitos casos elas foram designadas mesmo com a discordância des jurisdicionades. Um dos problemas é que 25% da população brasileira (cerca de 46 milhões de pessoas em 2018) não tem acesso à internet[3]. Sobre este distanciamento entre a atuação e a finalidade da jurisdição, é emblemático que a OAB/SP tenha acionado o CNJ para que o TRT15 determinasse a suspensão de realização de ato processual “quando houver pedido expresso de alguma parte sobre a impossibilidade da sua prática, independente de prévia decisão do juiz”.
Uma outra questão que permeia o trabalho remoto é o recorte de gênero. A Folha de São Paulo, em matéria do dia 12 de maio de 2020[4], trouxe diversos relatos de homens trabalhadores no sistema de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público e advocacia), exaltando o aumento da produtividade no trabalho remoto determinado em razão da pandemia. Os depoimentos afirmaram vantagens no home office: não gastar tempo com deslocamento, a possibilidade de trabalhar com roupa casual, a rotina de exercícios físicos e o maior contato com filhos, além do vinho diário.
A invisibilização da nossa interdependência como seres humanos é uma face da branquitude e da masculinidade, construções históricas e sociais hegemônicas na sociedade capitalista, que informam a ideologia da classe dominante. Estas narrativas ocultam o trabalho doméstico e de cuidado como se fosse algo concernente apenas às mulheres – sejam elas operadoras do direito, como os entrevistados ou não. O machismo naturaliza os papeis de gênero, de modo que o fato de a mulher branca de classe média ter entrado no mercado de trabalho não a liberou do status de “rainha do lar”, e mascara o valor social do trabalho doméstico e de cuidado exercido de forma remunerada ou não, majoritariamente por mulheres.
Os coletivos feministas UMA e DEFEMDE soltaram nota em resposta à matéria da FSP[5], destacando que a alta produtividade, inclusive acadêmica, destes profissionais do direito escondia o trabalho (assalariado ou não) de mulheres ao seu redor. A nota foi publicada no dia seguinte e citada em uma oportuna nota da ombudsman (ou melhor, ombuswoman) do jornal, Flávia Lima[6], dias após.
O que ficou encoberto naquela reportagem pretensamente neutra? O chamado trabalho reprodutivo. De um lado, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em uma pesquisa realizada em 2018, constatou que 85% des magistrades respondentes contavam com o serviço de pelo menos um/a empregade doméstice[7], ou seja, a face assalariada da moeda. De outro, dados do CNJ apuraram que as mulheres representam 38% da magistratura brasileira, sendo que na magistratura trabalhista elas são 47%[8]. De acordo com o IBGE, homens e mulheres ocupado/as com mais de 14 anos dedicam, respectivamente, 10,5 e 18,1 horas por semana aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos. A carga de trabalho remunerado somada ao trabalho doméstico e de cuidado representa 54,4 horas semanais para as mulheres, enquanto para os homens, 51,5 horas[9].
Assim, a rotina das magistradas em tempos de trabalho remoto é bem menos glamorosa do que a retratada na matéria da FSP. O cotidiano é marcado pela (in)conciliação da tripla jornada e pela consequente sobreposição das cargas física, mental e psicológica, acentuadas com o distanciamento social. De uma hora para outra, vários desafios se impuseram com o trabalho remoto: a confusão entre o espaço público e privado, a retirada repentina da rede de apoio diário (escola, babá, trabalhadora doméstica, faxineira etc.), a responsabilidade pelo cuidado de crianças, idosos e doentes, a impossibilidade de contar com a ajuda de avós, a gestão das necessidades e rotinas de todes que estão confinades em um mesmo espaço residencial, além da organização e da realização de tarefas de limpeza em geral, do cuidado com as roupas, do preparo dos alimentos etc. Tudo isso com o indispensável asseio para controle da propagação do coronavírus. Na pandemia, as antigas demandas outrora terceirizadas para o mercado ou para outras mulheres chamam as atuais profissionais de sucesso, juízas e desembargadoras, de volta ao trabalho doméstico e de cuidado, dando a dimensão do quão pouco se avançou em termos de equitativa responsabilidade pela reprodução social da vida.
Não há dados do CNJ de apuração da produtividade por gênero. Todavia, é ilustrativa da desigualdade de gênero no trabalho remoto, a redução de artigos acadêmicos escritos por mulheres no distanciamento social, como verificou a DADOS Revista de Ciências Sociais. No segundo semestre de 2020, houve o menor percentual de autoras mulheres assinando artigos científicos submetidos à revista (28%) segundo levantamento realizado desde o primeiro semestre de 2016, sendo que a média no período 2016-2020 foi de 40,8%. A revista alerta que os dados são preliminares e demandam cautela analítica[10]. Outros estudos em revistas científicas estrangeiras apontaram esse decréscimo[11].
No entanto, o CNJ promoveu a pesquisa Diagnóstico sobre a Saúde Mental dos Magistrados e Servidores[12] por ocasião da pandemia, em que se apurou na Justiça do Trabalho (7.255 respondentes) que 61% das magistradas se sentem mais cansadas em relação à situação anterior, percentual superior aos 45,7%, resultado este obtido para os magistrados. Além disso, a mudança de humor para pouco ou significativamente pior foi declarada por 62,8% das respondentes do sexo feminino e por 51,1% dentre os do sexo masculino.
Os efeitos do trabalho remoto e do distanciamento físico se revelam diferentes entre magistrades binário-generificades como homens e mulheres, pois a desigualdade de gênero, muitas vezes pensada em termos de participação feminina nas instituições, aparece nitidamente no cotidiano de todes, ainda que seja invisibilizada nas narrativas. Há necessidade de um aprofundamento nos estudos sobre os impactos da pandemia na questão da saúde (física e mental) no trabalho, mas, ainda assim, os dados preliminares nos indicam a urgência de uma ampla discussão sobre o gênero e a divisão sexual (e racial) do trabalho como premissa para uma democracia igualitária.
Por fim, pensar o pós-pandemia também exigirá a necessária crítica sobre converter o trabalho remoto emergencial (instituído como medida sanitária) em algo perene, ordinário (como modo de organização do trabalho). Não se trata apenas de aumentar ou não a produtividade. A invasão do espaço privado e a decorrente dificuldade de estabelecimento de rotinas e limites de horário de trabalho, o desafio da desconexão, o enfraquecimento das relações interpessoais e do trabalho coletivo, as barreiras para a comunicação interinstitucional, a individualização dos problemas organizacionais etc. são fatores que deverão ser sopesados antes de se normalizar a medida excepcional.
Notas
[1] O uso da terminação ‘e’ é a tentativa de inclusão do gênero não-binário na língua portuguesa e como alternativa para a usual generalização no masculino, possibilitando ainda a leitura para pessoas com deficiência visual. [2] No estado neoliberal, a eficiência na sociedade do desempenho é buscada por meio do psicopoder, atuando nos indivíduos de forma a incentivá-los à positividade. Esta faz com que a liberdade seja vivenciada no sentido de explorar o máximo de si mesmos, ou seja, em autoexploração. Assim, os males da alma na sociedade do desempenho não é mais a negatividade da depressão castradora, mas o excesso de positividade, em que a produtividade é o objetivo de vida dos indivíduos, fazendo-os trabalhar até o esgotamento (burn out). HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2017. [3] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet. [4] NUNES, Wálter. Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives. Folha de São Paulo, ed 12 mai 20. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/em-casa-procuradores-ministros-e-advogados-conciliam-processos-com-filhos-e-lives.shtml [5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/entidade-de-advogadas-e-rede-feminista-criticam-ausencia-de-mulheres-em-reportagem-da-folha.shtml. [6] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2020/05/mulheres-invisiveis.shtml [7] VIANNA, Luiz W. (et al.). Pesquisa Quem Somos A Magistratura Que Queremos. Sumário Executivo. AMB: Rio, 2018. p. 24. [8] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018. CNJ: Brasília, 2018. [9] IBGE. Estatísticas de Gênero — Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Ano 2016. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=resultados>. [10] CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres. Blog DADOS, 2020. Publicado em 14 Mai 2020. Disponível em: https://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/. [11] DOLAN, Kathleen; LAWLESS, Jennifer L. It Takes a Submission: Gendered Patterns in the Pages of AJPS. American Jounnal of Political Science. Publicado em 20 Abr 2020. Disponível em: https://ajps.org/2020/04/20/it-takes-a-submission-gendered-patterns-in-the-pages-of-ajps/. [12]Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=20bc939a-daa9-4355-a280-feb22626eb5a&sheet=be8b7511-b562-4fb9-897e-f66297d6d96a&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel. Acesso em: 12 set. 20.Patrícia Maeda é juíza do trabalho no TRT da 15ª Região (Campinas/SP). Mestra e doutora em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-bolsista do Programme des futurs leaders dans les Amériques (PFLA), da Université du Québec à Montréal (UQAM). Integrante do Grupo de Pesquisas Capital e Trabalho – GPTC/USP. Ex-Auditora Fiscal do Trabalho no Ministério do Trabalho e Emprego (1999-2009). Autora do livro “A Era dos Zero Direitos”, publicado pela editora LTr. É membra da Associação Juízes para a Democracia – AJD.
[…] [12] MAEDA, Patrícia. Trabalho remoto, saúde e produtividade na perspectiva de gênero. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/trabalho-remoto-saude-e-produtividade-na-perspectiva-de-genero/. […]