Mulheres, trabalho e pandemia: a masculinidade dos índices de produtividade

Pesquisa mostra que 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia.

Lívia Mendes Moreira Miraglia

Fonte: Jota
Data original da publicação: 30/11/2020

Pesquisa realizada pela Sempreviva Organização Feminista (SOV), demonstrou “que as dinâmicas de vida e trabalho das mulheres se contrapõem ao discurso de que a ‘economia não pode parar’, mobilizado para se opor às recomendações de isolamento social. Os trabalhos necessários para a sustentabilidade da vida não pararam – não podem parar. Pelo contrário, foram intensificados na pandemia”. Os resultados indicaram ainda “como as desigualdades raciais e de renda marcam a vida e o trabalho das mulheres na pandemia, assim como a diversidade de experiências de mulheres rurais e urbanas”[1].

Nesse sentido, a pesquisa destacou que, em média, 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia, sendo 52% negras, 46% brancas e 50% indígenas. No caso das mulheres no âmbito rural esse percentual chegou a 62%. Entre as responsáveis por cuidados com idoso, criança ou pessoa com deficiência, 72% afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia[2].

Entre as mulheres (em sua maioria brancas, urbanas, com nível superior e na faixa dos 30 anos) que seguiram trabalhando durante a pandemia com manutenção de salários, 41% afirmaram trabalhar mais na quarentena. A pesquisa destacou que “a crise sanitária sacudiu as estruturas em todas as casas de mulheres trabalhadoras. Entre as que responderam que estavam trabalhando mais do que antes da quarentena, 55% delas são brancas e 44% são negras”. Ressalte-se que, embora o percentual de negras nesse ponto seja menor, dos 40% das mulheres que apontaram o risco de perda da subsistência com a pandemia, 55% são negras. Além disso, 58% das mulheres desempregadas e 61% das mulheres que estão na economia solidária são negras[3].

A dualidade conflituosa entre casa e trabalho (ou trabalho de casa e trabalho remunerado) foi aprofundada pela pandemia que exacerbou a sobrecarga, a solidão e a exaustão das mulheres que, muitas vezes, sentem-se mais em uma zona de guerra (e não de mero conflito) ao tentar equilibrar facetas de sua vida que não deveriam, mas são contrapostas e que não deveriam, mas são cada vez mais sobrepostas: casa e trabalho. Embora pareça evidente a impossibilidade de se manter índices elevados de produção acadêmica e profissional no período, a apresentação dos números (masculinos) que comprovam o óbvio é elucidativa demais e necessária demais para não ser feita aqui.

Dados colhidos pela Parents in Science por meio de questionário aplicado a mais de 15 mil cientistas, entre discentes de pós-graduação, pós-doutorandas(os) e docentes/pesquisadores, apenas 8% das mulheres docentes responderam que estão conseguindo trabalhar remotamente, enquanto 18,3% dos homens responderam afirmativamente.

No que diz respeito à indagação sobre o cumprimento dos prazos, 70,4% das mulheres disseram que sim, (sendo que no caso de mulheres com filhos esse percentual se reduz para 66,6% e no caso das sem filhos aumenta para 79,9%), enquanto que para os homens o percentual foi de 79,6%[4].

A pesquisa da Parents em Science mostrou ainda que apenas 49,8% das mulheres submeteram artigos científicos conforme o planejado, enquanto 68,7% dos homens mantiveram o plano. No caso de mulheres com filhos, 52% não conseguiram finalizar artigos ou pesquisas[5].

A DADOS Revista de Ciências Sociais apurou que, no segundo semestre de 2020, apenas 28% dos artigos científicos submetidos à revista foram assinados por mulheres, o menor número desde 2016, uma vez que a média registrada era de 40,8%[6]. Cabe rememorar as declarações públicas de espanto e surpresa de vários diretores de órgãos de pesquisa e revistas especializadas com a diminuição significativa de artigos submetidos por mulheres na pandemia. Talvez aqui majoritariamente homens ainda.

Na mesma época dessas declarações, houve também uma reportagem em um jornal de grande circulação exaltando o aumento da produtividade e os benefícios do home office no Poder Judiciário. A notícia trazia diversos relatos de magistrados, procuradores, servidores e advogados que dentre outras vantagens destacavam não ter que gastar tempo com deslocamento, poder trabalhar com roupa causal, manter a rotina de exercícios físicos, ter maior contato com os filhos, além de poder desfrutar o vinho diário ao final do expediente[7]. A romantização do home office e da rotina doméstica foi contestada pelos coletivos feministas UMA e DEFEMDE, que em nota de resposta chamaram atenção para o fato de que a festejada produtividade destes profissionais escondia o trabalho (remunerado ou não) das mulheres ao seu redor[8].

De acordo com dados do CNJ, as mulheres representam 38% da magistratura brasileira, sendo que na magistratura trabalhista esse percentual chega a 47%[9]. Em pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em 2018, 85% das magistradas respondentes declararam precisar do serviço de pelo menos uma empregada doméstica, o que evidencia o que já havíamos destacado inicialmente sobre as estruturas discriminatórias sociais e raciais existentes[10].

Em agosto de 2020, o CNJ apresentou dados que comprovam a manutenção e/ou o aumento da produtividade no contexto pandêmico. A Justiça do Trabalho encabeçou os índices, principalmente em razão de já ter quase todos os processos no formato do PJ-e[11]. Os dados apresentados pelo CNJ acerca da produtividade não fizeram qualquer distinção por gênero. Mas nós sabemos por experiência própria, sentida na pele que, mesmo em uma Justiça com olhar social e altamente informativa como a do Trabalho, a realidade das magistradas, servidoras e advogadas, ainda que cumpridoras dos prazos e índices de produtividade, é bastante diferente da festejada positividade dos números (demonstrando toda a masculinidade de números, índices e percentuais).

Não há qualquer glamour em se constatar que, em pesquisa realizada pelo mesmo CNJ sobre a Saúde Mental dos Magistrados e Servidores por ocasião da pandemia, tenha-se apurado na Justiça do Trabalho “que 61% das magistradas se sentem mais cansadas em relação à situação anterior, percentual superior aos 45,7%, resultado este obtido para os magistrados. Além disso, a mudança de humor para pouco ou significativamente pior foi declarada por 62,8% das respondentes do sexo feminino e por 51,1% dentre os do sexo masculino”[12].

E não há qualquer explicação que não a estrutura patriarcal machista sobre a qual ainda nos assentamos que justifique a não relação pelo próprio CNJ (majoritariamente ainda composto por homens) desses dados. Isso fica claro quando identificamos que a própria composição do CNJ ainda é majoritariamente masculina (12 homens e 7 mulheres).

A desigualdade também salta aos olhos quando constatamos que, das 45 vagas abertas nas Cortes Superiores (STF, STJ, TST, STM) desde 2010, apenas 6 foram ocupadas por mulheres. Ou seja, apenas 13,3% mulheres conseguiram galgar os mais altos degraus do Poder Judiciário brasileiro, sendo que a última ministra foi nomeada em 2014[13].

É urgente que mulheres ocupem posições de poder em todos os locais, a fim de inclui-las nos processos decisórios, seja para a adoção de medidas institucionais, laborais ou públicas, seja em contextos de normalidade, seja em contextos de crise quando a capacitação para as mulheres falarem o que querem e não apenas o que refutam é ainda mais urgente e necessária. Só assim sairemos melhores e poderemos ampliar os horizontes e entrever um futuro mais igualitário entre os gêneros.

Os avanços de liberdades e direitos de minorias, frutos de conquistas históricas de movimentos da sociedade civil, são postos em xeque em cenários de crise como o pandêmico vivenciado. Em um contexto de crise é necessário, mais do que em outros tempos, lembrar que nenhum direito está posto de forma permanente e garantida; é preciso disputá-los constantemente a fim de mantê-los e lutar para elevá-los a patamares cada vez mais altos.

É preciso evocar Ruth Bader Ginsburg, Sarah Grimké e Rupi Kaur a fim de que, mesclando Direito, ativismo e poesia, possamos nos fazer compreender: “não pedimos nenhum favor pelo nosso sexo; tudo que pedimos é que tirem os pés de nossos pescoços” para que não nos enxerguemos mais como mariposas aprisionadas em gaiolas de vidro, mas, sim, como borboletas livres que alçam voos para além dos tetos de vidro.

Notas

[1] Disponível em: http://mulheresnapandemia.sof.org.br/. Acesso em 10 de setembro de 2020.

[2] Disponível em: http://mulheresnapandemia.sof.org.br/. Acesso em 10 de setembro de 2020.

[3] Disponível em: http://mulheresnapandemia.sof.org.br/. Acesso em 10 de setembro de 2020.

[4] Disponível em: https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true. Acesso em 30 de julho de 2020.

[5] Disponível em: https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true. Acesso em 30 de julho de 2020.

[6] CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres, Blog DADOS, 2020 [published 14 May 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/.

[7] NUNES, Wálter. Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives. Folha de São Paulo, ed 12 mai 20.  Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/em-casa-procuradores-ministros-e-advogados-conciliam-processos-com-filhos-e-lives.shtml.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/entidade-de-advogadas-e-rede-feminista-criticam-ausencia-de-mulheres-em-reportagem-da-folha.shtml.

[9] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018. CNJ: Brasília, 2018.

[10] VIANNA, Luiz W. (et al.). Pesquisa Quem Somos A Magistratura Que Queremos. Sumário Executivo. AMB: Rio, 2018. p. 24.

[11] https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/paineis-cnj/. Acesso em 10.10.2020.

[12] MAEDA, Patrícia. Trabalho remoto, saúde e produtividade na perspectiva de gênero. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/trabalho-remoto-saude-e-produtividade-na-perspectiva-de-genero/.

[13] MENGARDO, Bárbara. Desde 2014, nenhuma mulher é indicada a um tribunal superior no Brasil. https://www.jota.info/justica/2014-mulheres-indicadas-tribunal-superior-no-brasil-19102020.

Lívia Mendes Moreira Miraglia é pós-doutoranda em Direito pela UNB, doutora pela UFMG e mestre pela PUC. Professora adjunta de Direito do Trabalho da UFMG. Advogada.

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