Seminário no Tribunal Superior do Trabalho  debate os 80 anos da CLT

Ilustração: TST

O histórico de conquistas, mudanças e desafios da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi debatido no início de maio, em Brasília, durante o “Seminário 80 anos da CLT – Dignidade e Justiça Social“. Promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), em conjunto com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), o evento contou com representantes do Executivo, Legislativo e Judiciário, além de entidades trabalhistas.

O encontro teve como primeiro conferencista o secretário-executivo do Ministério do Trabalho e Emprego, Francisco Macena da Silva, com o tema “Perspectivas para as Relações de Trabalho e de Emprego no Brasil”. Ele lembrou que as relações de trabalho no país, durante muito tempo, tiveram “uma segurança jurídica” garantida a partir da CLT. Destacou, entretanto, que essa segurança vem sendo questionada devido a mudanças, principalmente a reforma trabalhista de 2017. “Ainda é uma reforma que não está consolidada no seu entendimento em todos os setores sociais, e isso tem gerado um passivo trabalhista muito grande, que bate todos os dias na porta do Ministério do Trabalho com pedidos de esclarecimentos, dúvidas.”

Fotografia: Reprodução/TST/Youtube
Francisco Macena da Silva. Fotografia: TST/Youtube

Conforme o secretário-executivo, o ministério está reconstruindo e criando grupos para tratar das questões trabalhistas centrais. “O debate que a gente tem feito no Ministério do Trabalho, junto com entidades sindicais, não é na perspectiva de estabelecer uma nova reforma, mas sabendo que existem ajustes a serem feitos, que existem entendimentos a serem unificados nesse processo por todos os entes do Estado, inclusive para dirimir uma insegurança jurídica que está muito presente, senão materializada no texto legal, materializada nas relações.”

Os serviços mediados por aplicativo foram tratados como um dos principais problemas atuais, “o grande desafio do momento”. “Ou estabelecemos agora um parâmetro para isso, um marco legal, que não é tratar todos os setores como se fossem iguais e únicos, mas com sua diversidade, ou num futuro bem próximo estaremos de novo debatendo essas questões, porque outros setores da economia serão afetados por esse processo”, afirmou o secretário.

Presente na mesa, Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, ministro  do TST e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, destacou que a CLT “possibilitou o rompimento do individualismo e do patrimonialismo do direito civil com a socialidade das relações de trabalho.” Disse ainda que a legislação trouxe eticidade às  relações, “porque quando eu protejo socialmente, eu crio um desequilíbrio jurídico para garantir uma simetria real e contratual, eu estou trazendo dignidade e eticidade às relações, eu impeço a exploração.” O ministro falou ainda que hoje há uma inversão, com pessoas trabalhando pela sobrevivência. 

Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. Fotografia: TST/Youtube

A discussão sobre a falta de regulamentação das relações mediadas por plataformas digitais seguiu com a contribuição do ativista do Movimento Social de Trabalhadores em Aplicativos, Paulo Roberto da Silva Lima, conhecido como Galo. Durante a mesa “Trabalho e Inclusão Social”, afirmou que elas atuam “dentro de um acordo subjetivo em que trabalhadores precisam trabalhar e o Brasil não fornece empregos suficientes, então os aplicativos estão ocupando esse espaço, mas não é formalizado pela lei.”

Paulo Roberto da Silva Lima, o Galo. Fotografia: TST/Youtube

O ativista acredita que o capitalismo gosta de esconder “a tragédia por trás das modernidades e facilidades”, lembrando que o serviço do motoboy surgiu nos anos 1990. “Hoje, o trabalho precarizado é tratado como empreendedorismo.” Galo destacou ainda que “o novo patronal é um algoritmo, é um número quem contrata o trabalhador, quem despede o trabalhador, é um número quem controla a vida desse trabalhador.” Ele entende ser preciso criar um contra-algoritmo. “A gente precisa criar uma solução para isso, e eu não consigo encontrar outra solução que não seja a CLT.”

Histórico de exclusão

A mesa sobre trabalho e inclusão contou ainda com a participação da coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Luiza Batista Pereira, e da presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, Maria Joel da Costa, que discorreram sobre duas difíceis realidades que se impõem na sociedade brasileira.  

Luiza Batista Pereira. Fotografia: TST/Youtube

“Para nós, falar da CLT é falar de um processo de exclusão que continua existindo mesmo com todos os avanços da nossa categoria”, citou Luiza ao lembrar que nem todos os benefícios concedidos pela CLT se estendem às domésticas, como o fato de terem apenas três parcelas do seguro-desemprego, enquanto as demais categorias contam com cinco.

Ela lembrou ainda de casos de trabalhadoras domésticas resgatadas de situação análoga à escravidão, muitas delas durante a pandemia, da necessidade de fiscalização e da importância dos sindicatos em apoiar as trabalhadoras na busca pelos seus direitos na Justiça.

Maria Joel da Costa. Fotografia: TST/Youtube

Já a presidente do sindicato, que perdeu o companheiro assassinado, apresentou dados que demonstram a violência na sua região. “Foram oito anos de muita luta, de muita dificuldade, meus filhos, todos pequenos, e ele fazendo a luta em defesa dos menos favorecidos, que era a luta pela terra, pela reforma agrária, e assassinaram ele praticamente na minha frente”

Conforme dados da Comissão Pastoral da Terra levados por Maria Joel, nas últimas quatro décadas foram assassinados cerca de 900 trabalhadores rurais, lideranças sindicais, políticas e ambientais no estado do Pará. “A reforma agrária naquele estado é maior que a morte, porque para quem fica e que perde os seus entes queridos, a luta continua, a gente não deixa morrer.”

Tradição escravagista

“A CLT e o Trabalho no Brasil em Perspectiva Histórica” foi o tema de outra mesa do evento, com a participação da diretora do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto, e da desembargadora Magda Barros Biavaschi, aposentada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Esta mostrou a construção da proteção social do trabalho, a partir de 1930, com o processo de industrialização e as lutas e leis que decorreram a partir desse período.

Magda Barros Biavaschi. Fotografia: TST/Youtube

“Esse processo todo, com idas e vindas, com grandes dificuldades, com avanços e recuos, vai desaguar na Constituição de 1988, que eleva todas essas conquistas e direitos à condição de sociais fundamentais. Mas invisibiliza algumas categorias”, afirma Biavaschi. A desembargadora enfatiza que “a lógica fundamental da Justiça do Trabalho, importante instituição que está sendo dizimada por reclamações constitucionais, é concretizar um direito profundamente social efetivo da classe trabalhadora. E é esta constituição que tem competência para dizer se há ou se não há relação de emprego.”

A diretora do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto, também traçou um percurso de construção legal partindo de dois questionamentos: “Como a escravidão contemporânea se sustenta na atualidade? Por que parece seguro para tantos empresários nesse país apostarem na precarização da liberdade, na precariedade da cidadania para amplos setores da nossa população?” Ela remonta a dados da população negra e do período escravista para demonstrar como a cidadania foi estabelecida.

Ana Flávia Magalhães. Fotografia: TST/Youtube

“Tomar uma pessoa negra como escravizada, até que ela se provasse livre ou liberta, marcou muito das relações de trabalho desse país. A equivalência entre liberdade e cidadania não estava no horizonte. Em vez disso, o que se tinha eram as costumeiras interdições, afetando indivíduos com diferentes perfis.” Assim, diz Ana Flávia, “a presunção da escravidão figurava como uma manifestação de dinâmicas de racialização e racismo profundamente arraigadas”, levando muitos a acreditar que a população negra começou a liberdade em 13 de maio. “O que alimenta equívoco segundo o qual antes da abolição esse segmento não teria reivindicado direitos como trabalhadores, como cidadãos. Isso apaga o protagonismo de amplas parcelas da população negra na construção das greves, da formação de associações, dos primeiros sindicatos, dos partidos de trabalhadores, partidos socialistas operários. Isso, portanto, sequestra a agência histórica do povo brasileiro.”

O senador Paulo Paim, no painel “Democracia, Relação de Emprego e Relações de Trabalho no Brasil”, seguiu no mesmo raciocínio lembrando a proximidade do 13 maio e a abolição não concluída, uma vez que não significou a emancipação da população negra. “Ao fazer referência ao 14 de maio de 1888, não faço aqui para entrar num debate que não estaria à altura desse momento, ao contrário, faço para refletirmos que a liberdade efetiva dos trabalhadores exige trabalho com remuneração justa e em condições dignas. Não é isso que os ditos libertos receberam naquela data. E penso que são esses objetivos fundamentais da consolidação das leis do trabalho que hoje homenageamos 80 anos: assegurar a remuneração justa, condições dignas de trabalho aos trabalhadores e empregados.”

Paulo Paim. Fotografia: TST/Youtube

O senador entende que a terceirização da atividade fim e a reforma trabalhista foram “os mais violentos ataques à CLT” ao longo dos seus 80 anos. “A combinação da terceirização irrestrita, responsabilidade subsidiária e retirada da estrutura da fiscalização do trabalho provocou esse verdadeiro temporal de trabalho escravo. Vou dar o número: somente em 2023, já foram resgatados quase mil trabalhadores em situação de trabalho escravo.”

Mauricio Godinho Delgado, ministro do TST e diretor da Enamat, integrante do mesmo painel, falou da pesquisa que desenvolveu nos últimos anos, na qual tentou entender “por que as elites brasileiras têm tanta dificuldade de respeitar o trabalho humano e os trabalhadores?”. Ele também buscou a resposta na história e considera que “não há mais como se estudar direito do trabalho sem se estudar a questão racial e a questão do gênero”. 

Mauricio Godinho Delgado. Fotografia: TST/Youtube

O ministro afirma que foram “séculos de escravidão, de desapreço, de pisoteio sobre seres humanos e essa memória se torna muito forte”, compreendendo, então, o desrespeito das elites. “A nossa história explica isso. Não é só o neoliberalismo, que eu achei durante três décadas. O neoliberalismo, sim, mais a nossa tradição escravagista”.

História Oral

Durante o seminário, o presidente do TST e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, ministro Lelio Bentes Corrêa, destacou o processo de memória e a necessidade da preservação do conhecimento. “Se hoje celebramos os 80 anos da CLT reconhecendo as suas deficiências e as suas omissões, […] nós precisamos hoje louvar a memória dos que passaram pela Justiça do Trabalho, dos que ajudaram a dar concretude a esse projeto social inaugurado com a CLT.”

Foram exibidos depoimentos, a partir do programa de História Oral, de profissionais que atuaram na área: Horácio Raymundo de Senna Pires, ministro do TST de 2006 a 2012; Carlos Alberto Reis de Paula, ministro do TST de 1998 a 2014; Maria de Assis Calsing, ministra do TST de 2007 a 2018; Wagner Antônio Pimenta, ministro do TST de 1998 a 2002; e Arnaldo Sussekind, ministro do TST de 1965 a 1971, um dos autores da CLT.

Proteção do trabalho e direitos humanos

Na conferência de encerramento do evento, Sayonara Grillo Coutinho,  desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região e professora associada da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tratou do tema “A Proteção ao Trabalho e a Efetividade dos Direitos Humanos”. Sua fala focou em trazer um diagnóstico de ausências e presenças, além das necessidades e proposições à proteção do trabalho.

Sayonara Grillo Coutinho. Fotografia: TST/Youtube

Para a desembargadora, o diagnóstico das ausências já havia sido realizado no decorrer dos dois dias do evento por diferentes conferencistas. Ela acrescentou que  “é necessário dizer que a efetividade protetiva do direito do trabalho, da norma trabalhista no Brasil, tem sido desafiada constantemente diante das assimetrias constantes na relação de emprego entre aqueles cuja subsistência fazem depender do emprego e quem propicia o emprego, mas ela não é natural, ela é politicamente induzida”. A chave de interpretação dessas assimetrias estão, para Sayonara, nas transformações induzidas pela austeridade, pelo neoliberalismo, pelo atualmente chamado “capitalismo de plataforma”, entre outros aspectos, como a informalidade e a desigualdade social.

Tratando especificamente das possibilidades para a efetivação dos direitos humanos na proteção do trabalho, a professora apontou que há diversas presenças, utilizando como exemplo representativo as conferências das presidentas sindicais no evento, que demostraram efetivamente formas de ação sindical. Além disso, assinalou também como possibilidade a cultura jurídica e as indicações atuais da reestruturação dos trabalhos em aplicativos, das políticas de igualdade  e da revisão da CLT. Sobre esta, destacou que “uma norma precisa se atualizar no tempo, e nós precisamos que a CLT seja revista, mas para que amplie democraticamente as possibilidades de defesa dos direitos humanos”.

No fechamento de sua conferência, Sayonara afirmou que “o trabalho não é uma mercadoria, ou seja, a proteção ao trabalho é o fundamento básico do direito do trabalho, mas a emancipação dos homens é seu objetivo fundamental”. Concluiu então que “a efetividade dos direitos humanos e a proteção do direito do trabalho são pré-condição ao desenvolvimento de mulheres e homens em condições de aspirar a autonomia de suas escolhas coletivas, a liberdade, o seu agir, e para pensar e realizar seus projetos de vida, contribuindo para a emergência de um direito do trabalho que alavanque um projeto de emancipação e que sustente uma sociedade de iguais”.

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