Quais os fundamentos do TST para reconhecer vínculo de emprego com a UBER?

Fotografia: Roberto Parizotti/CUT

A decisão tomada pela 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho é extremamente relevante, mas ainda não é suficiente para orientar com segurança a direção da jurisprudência nacional.

Rodrigo Trindade

Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 21/04/2022

Todo mundo passou os olhos pela manchete que correu o país sobre o reconhecimento do vínculo de emprego com a Uber (RR – 100353-02.2017.5.01.0066, com acórdão disponibilizado em 08/4/2022). Mas é importante conhecer os fundamentos manejados. O voto condutor da 3ª Turma do TST veio do ministro, professor e conhecido doutrinador, Maurício Godinho Delgado. O apuro analítico já era esperado.

Como os processos tratam de pessoas (não de números, nem de planilhas de custos) vale registrar o nome do motorista. Elias é seu nome, o mesmo do profeta que, segundo o Livro de Reis, peleou forte com Jezabel e sua família real, que teimavam em adorar o deus algorítimo Baal.

Elias (o fluminense, não o tisbita) trabalhou como motorista na região metropolitana do Rio de Janeiro. Fez corridas para a Uber por dois meses em 2016, de segunda a sábado, com jornada média de 13 horas e cerca de 78 horas semanais atrás do volante e do smartphone. O desligamento ocorreu de forma imotivada, pela plataforma, e foi bater na porta da Justiça do Trabalho.

Análise contemporânea do mundo do trabalho

O primeiro importante registro do voto condutor foi sobre necessidade de contemporanização dos elementos da relação de emprego. O colegiado por maioria entendeu estarem todos presentes: prestação humana, pessoal, onerosa e não eventual de trabalho subordinado.

Mas, a jornada jurídica começou bem antes, e muito mais profunda, registrando que a “solução da demanda exige o exame e a reflexão sobre as novas e complexas fórmulas de contratação da prestação laborativa, algo distintas do tradicional sistema de pactuação e controle empregatícios, e que ora se desenvolvem por meio da utilização de plataformas e aplicativos digitais, softwares e produtos semelhantes, todos cuidadosamente instituídos, preservados e geridos por sofisticadas (e, às vezes, gigantescas) empresas multinacionais e, até mesmo, nacionais”.

A partir daí, identificou que as ferramentas oriundas da quarta revolução industrial permitem novos meios de arregimentação de mão de obra e, principalmente, dos modos de organizar, direcionar, fiscalizar a prestação do serviço.

A 4ª Revolução Industrial: consequências econômicas e jurídicas

O voto condutor foi firme na contextualização econômica do trabalho por plataformas, registrando as características do aproveitamento de grandes massas de pessoas desempregadas em razão de novas dinâmicas econômicas e políticas. E, principalmente, em razão de um longo processo de reformulação da gestão da força de trabalho, com contínua desregulamentação e deteriorização do trabalho humano.

As consequências, para o julgador, tem sido a “ausência de regras de higiene e saúde do trabalho, a falta de proteção contra acidentes ou doenças profissionais, a inexistência de quaisquer direitos individuais e sociais trabalhistas, a ausência de proteções sindicais e, se não bastasse, a recorrente exclusão previdenciária.”

Mas, sem cair nas simplificações forçadas, também esclareceu que há dois grandes grupos de plataformas digitais. De um lado, as “realmente disruptivas”, que prescindem do trabalho humano organizado para aproximação entre fornecedor e consumidor – caso de AirBnB, Booking e Pet Hub. De outro, estão as empresas que se organizam pela utilização intensa e predatória do trabalho humano, sem respeitar regras trabalhistas mínimas. É nesse segundo grupo que se postou a reclamatória de Elias.

Nesse contexto, o voto então se dirigiu para a reflexão sobre função do Direito: se colocar-se passivo na exacerbação das desigualdades, do economicismo antissocial ou manter-se em seu caminho de regular e civilizar forças antagônicas, a partir de uma visão de constitucionalismo humanístico e social. A decisão, como esperado, postou-se na opção do que chamou de “progresso civilizatório”, essencial ao Direito do Trabalho.

Questão internacionais complexas

A ambientação do tema também avançou bastante na identificação da existência de profundas discussões doutrinárias planetárias sobre a natureza da relação entre motoristas/entregadores de aplicativos e as respectivas plataformas ou aplicativos digitais que se valem da força de trabalho.

O ministro indicou em seu voto um amplo estudo internacional de decisões judiciais e administrativas sobre a natureza jurídica debatida, citando decisões tomadas na França, Espanha, EUA, Portugal e União Europeia.

Também registrou que a própria Organização Internacional do Trabalho expediu a Recomendação n. 198, anunciando “dificuldades em determinar a existência de uma relação de trabalho quando os respectivos direitos e obrigações dos interessados ​​não são claros, quando se tenta encobrir a relação de trabalho, ou quando existem inadequações ou limitações na legislação, na sua interpretação ou em seu aplicativo”.

As diversidades das relações de emprego

A par de toda a análise contextual, o acórdão esclareceu que “o eventual enquadramento como vínculo empregatício da relação jurídica entre prestador de serviços e as plataformas digitais, pelo Poder Judiciário Trabalhista no Brasil, vai depender das situações fáticas efetivamente demonstradas, as quais, por sua própria complexidade, podem envolver inúmeras e múltiplas hipóteses”. Anunciou – não o profeta Elias, mas o julgador Delgado – que cada caso precisa ser conhecido, analisado e resolvido a partir de suas individuais condições.

Citando o voto divergente do mesmo processo, proferido pelo Ministro Brescianini, lembrou o relator que os padrões internacionais de direitos humanos básicos não fazem distinção entre trabalhadores tradicionais (como empregados de fábricas) e não tradicionais (motoristas de aplicativo).”

Nessa quadratura, trouxe que o direito do trabalho brasileiro tem sedimentada a presunção de vínculo trabalhista, desde que incontroversa a prestação de serviços por pessoa natural (Súmula 212 do TST). Trata-se de orientação “decorrente da circunstância de ser a relação de emprego a regra geral de conexão dos trabalhadores ao sistema socioeconômico capitalista” e que é acompanhada de diversos preceitos constitucionais (ilustrativamente: Preâmbulo; art. 1º, III e IV; art. 3º, I, II, III e IV; art. 5º, caput; art. 6º; art. 7º, caput e seus incisos e parágrafo único; arts. 8º até 11; art. 170, caput e incisos III, VII e VIII; art. 193).

Ônus probatório

Na análise do esquema de negócios da Uber, assentou-se que se trata de empreendimento voltado ao transporte de pessoas, não à mera interligação de usuários e motoristas cadastrados: “o usuário do transporte não é cliente do motorista, mas da própria Empresa” e “o Reclamante lhe prestou serviços como motorista do aplicativo digital”.

Seguindo a sedimentação da presunção da relação de emprego, a partir da circunstância inconteste da prestação de trabalho humano, o voto condutor apoiou-se em regra de delimitação de ônus probatório: “uma vez admitida a prestação de serviços pelo suposto Empregador/tomador de serviços, a ele compete demonstrar que o labor se desenvolveu sob modalidade diversa da relação de emprego, considerando a presunção (relativa) do vínculo empregatício (…). A análise casual das hipóteses discutidas em Juízo, portanto, deve sempre se pautar no critério do ônus da prova – definido no art. 818 da CLT -, competindo ao obreiro demonstrar a prestação de serviços (inciso I do art. 818 da CLT); e à Reclamada, provar eventual autonomia na relação jurídica (inciso II do art. 818 da CLT)”.

Fixadas essas premissas, adiantou, caberia à plataforma comprovar o fato impeditivo do direito postulado (reconhecimento do vínculo de emprego). Ou seja, deveria a Uber comprovar que o labor foi executado de forma autônoma, sem subordinação, por Elias.

Necessidade de análise pontual

Em avaliação dos encargos probatórios e cenário de prestação de trabalho posto, esclareceu que “ficaram firmemente demonstrados os elementos integrantes da relação de emprego”. E foi à checagem dos elementos.

Como ser-humano, o trabalho foi executado por pessoa natural e de forma inuito personae: Elias tinha cadastro individual, foi pessoalmente avaliado (pela plataforma e clientes) e não podia se fazer substituir. Pessoalidade: check!

O caráter oneroso do trabalho decorreu da sistemática de pagamento adotada pela Uber. De um lado, com o repasse para Elias de 70% a 80% dos pagamentos efetuados pelos passageiros, com “a definição do preço da corrida e do quilômetro rodado no âmbito de sua plataforma digital”. De outro, observando-se o registrado também no voto divergente no sentido de que o autor “tinha de arcar com todos os custos do transporte (manutenção do veículo, gasolina, provedor de internet, celular”. Onerosidade: check!

Tratou-se de trabalho prestado em caráter permanente, ainda que por curto período, não se qualificando como esporádico. Repassando as diversas teorias sobre “não eventualidade”, observou que o trabalho “estava inserido na dinâmica intrínseca da atividade econômica da Reclamada e inexistia qualquer traço de transitoriedade ou especificidade na prestação do serviço”.

Também pontuou que Elias trabalhou em todos os dias e em absoluto controle pela plataforma sobre tempo à disposição. Em vista do acórdão regional, salientou não haver qualquer informação que permita presumir caráter esporádico do labor.

Por fim, observou que a desvinculação a número mínimo de horas de trabalho, e possibilidade de integração a empresas concorrentes, não são descaracterizadoras do caráter permanente. Percebeu o relator que o autor dedicava seu trabalho intensa e diariamente à Uber, bem como não há no direito do trabalho brasileiro qualquer atrelamento entre delimitação de jornada a vínculo de emprego. Sendo assim, não eventualidade: check!

Subordinação algorítmica

Por fim, a subordinação, o elemento “que ganha maior proeminência na conformação do tipo legal da relação empregatícia”, mas como também lembrado pelo julgador, “tem sofrido ajustes e adequações ao longo dos dois últimos séculos”.

Após discorrer sobre os ajustes do elemento e sua tríplice dimensão (clássica/tradicional, objetiva e estrutural), identificou a emergência de um quarto aspecto, a subordinação algorítmica, “própria do novo contexto empresarial, em que o empresário passa a usar uma pletora de mecanismos telemáticos, computadorizados, internáuticos, hiper-minuciosos e sensíveis a quaisquer movimentos dos seres humanos e máquinas envolvidos na dinâmica ou órbita de interesse do empreendimento estruturado”.

 No caso, analisado, percebeu já estar bem assentado no acórdão regional que o trabalhador era efetivamente controlado pela empresa, “que assumia integralmente a direção sobre a atividade econômica e sobre o modo de realização da prestação de serviço, inclusive com a manifestação disciplinar do poder empregatício”. A partir disso, destacou quatro premissas do trabalho de Elias – e incompatíveis com a suposta autonomia:

  • a plataforma organizava unilateralmente as chamadas dos seus clientes e indicava os motoristas para prestar os serviços;
  • a Uber exigia permanência do trabalhador conectado à plataforma digital para prestar os serviços, sob risco de descredenciamento;
  • o réu avaliava continuamente a performance dos motoristas, por meio de um controle telemático e pulverizado da qualidade dos serviços a partir das notas atribuídas pelos clientes ao trabalhador; tal sistemática servia, inclusive, de parâmetro para o descredenciamento da plataforma digital – perda do trabalho;
  • a prestação de serviços se desenvolveu diariamente, durante o período da relação de trabalho, com intenso controle sobre o trabalho prestado e a observância de suas diretrizes organizacionais, por meio telemático e da participação difusa dos seus clientes.

A partir desse quadro, compreendeu a configuração da subordinação jurídica na sua (agora) quádrupla dimensão. Especialmente reconheceu presente a subordinação algorítmica, “em vista de a empresa valer-se de um sistema sofisticado de arregimentação, gestão, supervisão, avaliação e controle de mão de obra intensiva”, à base de ferramentas tecnologicamente apropriadas e, aptas a “arquitetarem e manterem um poder de controle empresarial minucioso sobre o modo de organização e de prestação dos serviços de transportes justificadores da existência e da lucratividade da empresa reclamada”. 

Subordinação? Quatro vezes check!

A partir de todos esses aportes, foi conhecido o recurso por violação ao art. 3º da CLT, dado provimento para reconhecer o vínculo de emprego entre Elias e a Uber, e determinar o retorno dos autos à vara do trabalho para examinar os demais pedidos decorrentes.  

Nossa Revisão

A decisão tomada pela 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho é extremamente relevante, mas ainda não é suficiente para orientar com segurança a direção da jurisprudência nacional. Especialmente porque o próprio TST também já decidiu pelo afastamento de vínculo de emprego, em casos parecidos de trabalhadores por plataforma.

O acórdão da lavra do Min. Godinho Delgado já se apresenta como uma das decisões de maior densidade analítica, reconhecendo contextos internacionais e de organização do trabalho. Também chama muita atenção o assentamento estabelecido a respeito da subordinação algorítmica, inicialmente desenvolvida na doutrina e, agora, alcança reconhecimento na mais alta corte trabalhista nacional.

É importantíssimo perceber o apuro na avaliação das especiais condições de trabalho observadas no processo. A profunda análise dos elementos fáticos indicados no acórdão regional foram essenciais para a identificação do status jurídico do trabalhador. É circunstância indicativa de que cada relação de trabalho por plataforma deve ser pontualmente examinada para a correspondência com os elementos do vínculo de emprego.

O Elias bíblico é um dos mais importantes profetas da tradição judaico-cristã. É possível que o homônimo trabalhador de plataforma fluminense – e agora reconhecido como empregado – também possa ser o anunciador de uma boa nova.  Aguardemos.

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