
Subordinação trabalhista contemporânea é algorítmica, como tem sido o processo de indução e a emulação comportamental do ser humano em outras searas.
Bruno Alves Rodrigues
Fonte: JOTA
Data original da publicação: 06/10/2025
Nesta segunda feira (6/10), o STF promove audiência pública para tratar “de subsídios no exame dos limites e balizas para contratação de autônomos e pessoas jurídicas para prestação de serviços” (despacho datado de 3/7/2025, constante do ARE 1532603/PR.
Neste recurso, houve reconhecimento de repercussão geral de matéria constitucional, dando ensejo ao Tema 1389, no qual será apreciada a “competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”).
Há que se recordar que o ministro relator da decisão de afetação consignou, em seu julgamento, que “parcela significativa das reclamações em tramitação nesta Corte foram ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva” (STF, RE 1.532.603, 2025).
Verifica-se, assim, que o fundamento determinante que orientou a decisão de afetação do Tema 1389 está assentado na premissa de que o contrato de emprego representa uma modalidade contratual que poderia vir a atender a um estrito juízo de conveniência, isso dentro da possibilidade de escolha, por mero exercício da liberdade de organização produtiva dos cidadãos, inclusive com censura expressa às decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva.
Efetivamente, não há como se negar que o Direito do Trabalho impõe balizas à forma como deve realizada a “organização produtiva”. Esta é a própria vocação de um ramo do direito voltado à efetividade dos direitos sociais, o que se processa pela imposição de regras ao exercício do poder econômico, que deve respeito à preservação de condições mínimas necessárias à preservação do trabalho digno. Trata-se, assim, de um ramo do direito que vem a impor standards mínimos à relação capital x trabalho, enquanto suposto à preservação da dignidade humana.
Assim, a menos que se pretenda revogar a lei áurea, bem como todas as normas ulteriores que vieram a impor obrigações sociais, inclusive as cláusulas pétreas constantes de todo o Capítulo II (Direitos Sociais), do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais) da Constituição Federal de 1988, não há como se enxergar com censura as decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva.
Na verdade, neste juízo de valor externado em relação às “decisões da Justiça do Trabalho”, há que se fazer apenas um reparo, que apesar de ser aparentemente singelo, tangencia uma importante chave de compreensão para a crise da ação comunicativa que marca a era contemporânea: o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho não restringem a liberdade, mas sim a arbitrariedade. E a restrição à arbitrariedade representa um suposto para preservação de um princípio de liberdade substancial, que seja de todos e para todos.
Vivenciamos uma era na qual a manipulação sofista do conceito de liberdade tem impulsionado grandes tensões entre as Instituições de Estado e os maiores agentes de poder econômico, político, tecnológico e informacional.
O conceito substancial de liberdade tem capitulado na denominada “sociedade 4.0”, na qual a afirmação da condição humana por seres de liberdade, efetivamente conscientes de suas ações, tem cedido espaço à progressiva atuação de seres autômatos, inaptos a afirmarem o significado de suas existências, porquanto emulados por padrões algoritmizados de conduta.
Como muito bem pontuado pelo ministro Dias Toffoli, no julgamento da ADI 5122/DF, na era da “Revolução Informacional”, “a força produtiva é transferida para os insumos da informação, num sistema rápido de retroalimentação e desenvolvimento, que nem sempre é acompanhado pela atualização legislativa” (STF, s.d.). Neste importante julgamento, o STF validou a proibição da realização de propaganda eleitoral via telemarketing, em qualquer horário, confirmando os termos da Resolução 23.404/2014, do TSE. Sem dúvida, um importante exemplo de contenção à arbitrariedade, em defesa da liberdade.
Os signos humanos estão deixando de representar instâncias de significação da realidade, para servirem de instrumentos semióticos voltados ao estrito atendimento de “conveniências” das grandes potências econômicas e tecnológicas. É neste contexto que surgem e ganham força alguns sofismas, como da “pessoa humana pejotizada”, ou mesmo do trabalhador compreendido como “empreendedor de si próprio”.
Redes sociais induzem comportamento convergente a propósitos algoritmizados, e para isso nudge a produção de conteúdos digitais completamente artificiais, retratando estilos de vida desconectados da realidade. Plataformas digitais gamificam o labor humano, em modelos precarizantes de intermediação de força de trabalho completamente desguarnecidos de garantias trabalhistas ou previdenciárias, mas que se sustentam em uma bem estruturada estratégia comunicacional que manipula o discurso da liberdade de empreendedorismo.
Pavimenta-se, dia a dia, caminhos para realidades paralelas ao humanismo, em ruptura à ordem ética: fake news, metaverso, criptomoedas, bets, uberização do trabalho etc. Seres despossuídos de sentido de existência deixam de afirmar um conteúdo de liberdade para se deixarem induzir pelo que fora estabelecido algoritmicamente por outrem.
A técnica de poder tem ocupado o lugar da ética. A geração de riqueza passou a estar intimamente vinculada à capacidade de gerir dados, pois as empresas mais eficientes nesta operação tenderão ao domínio monopolístico de todo o mercado. O acesso aos dados e o controle computacional do comportamento representa a tônica do capitalismo contemporâneo. Como pontua Harari, “a riqueza e o poder poderão se concentrar nas mãos da minúscula elite que é proprietária desses algoritmos todo-poderosos, criando uma desigualdade social e política jamais vista” (Harari, 2016, p. 326).
O Brasil tem experimentado, na última década, um verdadeiro ataque ao Direito do Trabalho e às suas instituições, e o relatório da Oxfam de 2024 aponta que, atualmente, 63% da riqueza, no país, está concentrada nas mãos de 1% da população (CNN Brasil, 2025). Este nível de concentração de riqueza só se mostra alcançável mediante a progressiva fragilização dos Direitos Sociais, notadamente do Direito do Trabalho, cuja valorização nunca se mostrou tão urgente, sob pena de sucumbirmos ao processo de desumanização e de colapso social que tem marcado a era contemporânea.
Como bem observado pelo ministro Luiz Fux, na decisão que veio a reconhecer a repercussão geral no recurso extraordinário 1.323.708 (Tema 1158), quase 132 anos após a abolição da escravatura no Brasil, situações análogas ao trabalho escravo ainda são registradas. Somente o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem hoje 1,7 mil procedimentos de investigação dessa prática e de aliciamento e tráfico de trabalhadores em andamento. (Acórdão de Repercussão Geral publicado em 18/08/2021) (STF, 2025)
Essa é a conjuntura desenhada em um mundo, por um lado, dotado de conglomerados econômicos e tecnológicos cada vez mais potentes e, por outro lado, infelizmente, integrado por seres humanos cada vez mais hipossuficientes e menos providos de capacidade crítica para filtrar informações pela ótica de valores e parâmetros cognitivos, societários e éticos.
Neste contexto, restam exponencialmente complexificadas as missões essencialmente humanistas das Instituições de Estado, a exemplo da missão histórica reservada ao Direito do Trabalho e à Justiça do Trabalho de rememorar que o ser humano não é uma coisa, e que o seu trabalho não representa uma mera mercadoria (primeiro princípio da Declaração de Filadélfia, de 1944).
Nunca se mostrou tão atual a advertência de Alexandre Marcondes Filho, na exposição de motivos do “projeto definitivo de Consolidação das Leis de Proteção ao Trabalho”, datado de 19 de abril de 1943, no sentido de que nesta hora dramática que o mundo sofre, a Consolidação constitui um marco venerável na história de nossa civilização, demonstra a vocação brasileira pelo direito e, na escureza que envolve a humanidade, representa a expressão de uma luz que não se apagou (Machado Filho, 1943).
A origem do Direito do Trabalho está associada à imperativa necessidade de se reequilibrar, minimamente, a relação entre detentores de poder econômico e pessoas humanas hipossuficientes, e se a imperatividade deste reequilíbrio já se tornava evidente nas duas primeiras fases da revolução industrial, esta necessidade se exponenciou com o advento da revolução tecnológica digital.
A marca da atividade hermenêutica não está na elaboração de respostas fáceis para problemas complexos, a exemplo, data vênia, do que verifica em conclusões precipitadas, como a de que parcela significativa das reclamações em tramitação nesta Corte foram ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva.
Aliás, o diferencial de uma verdadeira atividade hermenêutica não está nas respostas, mas nas perguntas. Nas palavras de Gadamer, “a lógica das ciências do espírito é a lógica das perguntas” (Gadamer, 2021a. p. 482), razão pela qual “a dialética, como arte do perguntar, só pode se manter se aquele que sabe perguntar é capaz de manter se pé suas perguntas, isto é, a orientação para o aberto. A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém, a arte de pensar” (Gadamer, 2021a, p. 479).
A atividade de julgar é uma atividade dialógica que envolve plena consideração de todos os fatores imersos em determinado fenômeno, e a compreensão da dinâmica de funcionamento social na era contemporânea supõe abertura à compreensão das novas engrenagens do poder.
O conceito de organização empresarial à qual se vincula uma massa de trabalhadores economicamente dependentes merece uma avaliação holística substanciada em profundas indagações quanto à forma de estruturação empresarial na era contemporânea, isso sob pena de se praticar uma “hermenêutica do ornitorrinco”, alheada de uma visão sistêmica, aqui nos socorrendo da metáfora bem empregada pelo ministro Flávio Dino, em manifestação realizada por ocasião do julgamento da AP 2668.
Há que se compreender que a disrupção tecnológica digital viabilizou eficiente controle indireto sobre as atividades econômicas descentralizadas, numa escalada do movimento de anonimização dos reais beneficiários do trabalho humano.
No que se refere especificamente à estruturação das organizações empresariais, podemos dizer que a tecnologia digital exponencia as condições de aparente fragmentação das estruturas jurídicas tradicionais, já submetidas a um processo de liofilização desde a década de 1970.
Independentemente de obrigações contratualizadas, os programas computacionais garantem gestão matemática e massificada dos resultados decorrentes dos atos negociais, inclusive e notadamente os que promovem a exploração da atividade humana, isso sem o devido respeito às estruturas jurídicas formais tradicionalmente estabelecidas.
A subordinação trabalhista contemporânea é sim algorítmica, como algorítmico tem sido o processo de indução e a emulação comportamental do ser humano em diversas outras searas (eleitoral, consumerista etc.).
Se a progressiva anonimização e aparente fragmentação das estruturas jurídicas empresariais já marcava a terceira fase da revolução tecnológica, impactada por um processo de financeirização da economia associado a uma tecnologia de controle sistêmico e monopolístico de empresas submetidas a um downsize empresarial, na atual era da inteligência artificial, a gestão algorítmica e plataformizada da comunicação, da atividade econômica e do processo de acumulação de capital acabaram por tornar prescindíveis até mesmo as abstrações jurídicas que tradicionalmente reforçavam as mais basilares obrigações contratuais sinalagmáticas.
A organização das atividades e das relações deixou de ser predominantemente jurídica e passou a ser eminentemente algorítmica, rompendo-se com os padrões de sustentabilidade social, trabalhista, fiscal e ambiental historicamente construídos.
O processo de financeirização da economia alcançou níveis até então inimagináveis, eis que o risco das inversões financeiras foi atenuado pela grande capacidade preditiva e emuladora de sistemas computacionais conexionistas. Experimentamos um aumento vertiginoso do número de fundos de investimento em operação na última década e, principalmente, do volume financeiro gerido por eles, com inversões financeiras asseguradas pela força preditiva da inteligência artificial.
No Brasil, o número de fundos de investimento existentes triplicou em pouco mais de uma década. Em dezembro de 2009, havia 8.799 (Ferreira A. N., 2015, p. 31) fundos, e esse número que alcançou a marca dos 27.000 fundos em operação em junho de 2022 (Lewgoy, 2022). Isso significa a gestão de mais de R$ 6 trilhões, ou seja, o equivalente a 80% do PIB brasileiro (Gregório, 2021, n.p.).
No que tange ao volume financeiro operado pelos fundos de investimento, notabilizam-se, mundo afora, as cifras extraordinárias alcançadas: a maior gestora de fundos de investimento do mundo, a BlackRock, contabilizava US$ 11,6 trilhões de ativos à sua disposição, em 2024 (Reuters, 2025, n.p.), o que equivale a mais de 5 vezes o PIB do Brasil. “O forte investimento em tecnologia para minimizar o risco das operações é outro grande diferencial da BlackRock. Desde o início, Fink aportou grandes valores para a criação do Aladdin, uma rede de cinco mil computadores” (InfoMoney, 2023, n.p.).
Enfim, na era das big techs, resta cada vez mais evidente a ascendência de um poder econômico monopolista, concentrado nas mãos de um mercado financeiro que, apesar de aparentemente amorfo, está atuando de maneira organizada e sistematizada, amparado por potente tecnologia emuladora e controladora do comportamento humano, o que tem gerado preocupantes tensionamentos com as tradicionais Instituições de Estado que não abdicam do dever de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.
Tal conjuntura tem demandado ação hermenêutica regida fenomenológica-especulativamente pelos valores humanos, a exemplo do que promoveu o STF na defesa da democracia, bem como daquilo que há mais de oito décadas se promove dentro do Judiciário Trabalhista, desde a origem compromissado com uma perspectiva estadista que compreende, como consta da exposição de motivos da CLT, que o conteúdo da nossa legislação social provava exuberantemente a primazia do caráter institucional sobre o efeito do contrato, restrito este à objetivação do ajuste, à determinação do salário e à estipulação da natureza dos serviços e isso mesmo dentro de “standards” e sob condições preestabelecidas na lei (Machado Filho, 1943).
De fato, a legislação trabalhista garante que a pessoa humana seja respeitada em sua essência, isso independentemente de manipulações jurídicas eventualmente verificadas por ato de conveniência por parte de detentores do poder econômico que almejam a sujeição do trabalhador economicamente dependente a determinados artifícios, como o é a pejotização.
É a legislação trabalhista, exemplificativamente, que garante a efetividade de normas antidiscriminatórias, de proteção à maternidade e à primeira infância, como a preceituada no importante Tema 497, do STF, que garante uma proteção objetiva da estabilidade de empregada gestante, em virtude de rescisão imotivada do contrato de trabalho.
Mas por óbvio, a efetividade das decisões da Justiça do Trabalho e do próprio STF, que historicamente garantem os direitos fundamentais pela via do trabalho digno, não poderão se sujeitar ao crivo da volição do forte contra o fraco, no suposto exercício de uma “liberdade de organização produtiva” que não representa outra coisa senão a arbitrária prática daquilo que, apesar de convenientemente reduzido, na era contemporânea, à alçada de um dos “novo modelos de negócio”, há quase um século já conta com outra categorização jurídica: uma verdadeira “fraude”.
CNN Brasil. (04 de 10 de 2025). Desigualdade: 63% da riqueza do Brasil está nas mãos de 1% da população, diz relatório da Oxfam. Fonte: CNN Brasil: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/desigualdade-63-da-riqueza-do-brasil-esta-nas-maos-de-1-da-populacao-diz-relatorio-da-oxfam/
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Bruno Alves Rodrigues é juiz titular da 34ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Doutor em Direito (UFMG) e em Estudos de Linguagens (CEFET/MG)