O Direito do Trabalho, o Supremo e a Morte

Fotografia: Gil Ferreira/Agência Brasil

[…] alguma coisa está acontecendo com o Direito do Trabalho. E não é nada boa. Um sindicalismo alquebrado, uma reforma que deforma, uma Justiça do Trabalho minada. E estas decisões… Alguma coisa se passa aqui. Mas o Supremo não sabe o que é… Ou sabe?

Gustavo Tadeu Alkmim

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 04/02/2021

1886. Lev Tolstoi publica um de seus textos mais impactantes: A Morte de Ivan Ilitch. Narra os momentos finais de um juiz do Tribunal da Relação. Cumpridor dos seus deveres, vestiu ao longo da vida o manto da (suposta) neutralidade, aplicando ao pé da letra o Código Russo de 1864. Não havia nódoa nas suas vestes — nem emoção. Sem riscos, nem inovações. Empolgavam-lhe os louros. Os aplausos, mesmo insinceros, eram bem-vindos. A inveja dos outros e a submissão dos subordinados aguçavam-lhe o ego. Deliciava-se, enfim, com o exercício do poder. Na iminência da morte, revê-se: vivera dedicado ao ofício e tudo que deixava era uma vaga no tribunal ansiada pelos colegas e uma pensão ambicionada pela esposa. No mais, a carreira burocrática, o desencanto, a hipocrisia, as aparências. “Eu subia perante a opinião pública, mas na realidade a vida me fugia” — suspira o magistrado até alguém dizer à cabeceira: “Acabou!”.

Na novela, a abordagem jurídica está longe de ser o foco. Que é muito mais complexo: o sentido da vida e da existência. Contudo, não deixa de ser interessante perceber que a vida de Ilitch se confunde com o seu olhar interpretativo de magistrado: literal, não comprometedor, formal. Seus julgamentos têm o silogismo com fio condutor (Caio é homem; os homens são mortais; logo, Caio é mortal), e ele não vê cara, nem coração dos litigantes. Nos momentos terminais, em meio às dores físicas e morais, convive cara a cara com criado Guerasim, de quem depende e recebe um tratamento franco e pessoal.

Leio os devaneios de Ilitch; vejo a dignidade de Guerasim: vem-me à mente nosso magistrado-mor, o STF, e sua relação com trabalhadores e sindicatos.

 No cenário pós-impeachment, o Congresso anunciou uma Reforma Trabalhista propagandeada “moderna”, que (i) geraria empregos, (ii) atrairia investimentos internacionais, (iii) desoneraria as folhas de pagamento. Somente a terceira promessa se concretizou. O desemprego aumentou, empresas internacionais estão indo embora. À medida que escorre a tinta da máscara, a tal reforma revela ser um engodo. Mas virou lei. E muito custou ao Direito do Trabalho, sangrado pelo legislador, que subverteu a sua lógica, preocupado mais com o bem-estar do empresariado e menos com a proteção ao trabalhador. Com os escrúpulos jogados às favas, sem constrangimentos, anunciou-se a quadratura do círculo: a negociação coletiva superando a lei, e a autonomia individual se sobrepondo à atuação sindical. Com uma mão, acaba com o sustento dos sindicatos — a contribuição compulsória —; com a outra mão, estimula que esses mesmos sindicatos negociem direitos. Numa penada, o legislador reformista quebrou a coluna vertebral do direito trabalhista constitucional. Não houve passeatas, ruas não foram tomadas. Parecia claro, porém, que alguma coisa maléfica acontecia ali. Chamem o Supremo! — deve ter gritado alguém.

Esperançou-se, então, pelo STF anti-Ilitch — vanguardista, inovador, que conjuga circunstâncias e particularidades com a letra da lei: defende a liberdade de expressão, autoriza a “marcha da maconha”, descriminaliza o aborto no primeiro trimestre de gravidez e nos casos de anencefalia, declara a competência concorrente para a adoção de medidas contra a Covid-19. Mas havia uma pedra chamada “trabalho” no meio do caminho — quando, então, o Supremo encarna a essência da personagem de Tolstoi. E bate o martelo: vale a literalidade da lei.

Uma reforma trabalhista sempre foi o propósito do pensamento neoliberal. Desde os anos 1990, “flexibilização” e “negociado-sobre-o-legislado” eram palavras de ordem anunciadas como pílulas mágicas para resolver o desemprego — pregadas, até, nos tempos de pleno emprego. Não encontravam eco, porém. Até o Supremo editar a tese da transação extrajudicial em adesão ao PDI. Ali, abria-se a porteira. O STF — que, há muito, já repetia o mantra empresarial de que a legislação trabalhista é ultrapassada e inflexível — passou a tecer loas à “prevalência do negociado”, prescrito como a cloroquina da vez, embora estudos e exemplos demonstrassem sua ineficácia. Por ocasião do julgamento sobre a contribuição compulsória, nem mesmo o alerta da Ministra Rosa Weber — “Não podemos mexer em parte sem que haja uma alteração do todo, sob pena de uma desarmonia que atenta contra os comandos constitucionais” — alterou o sentimento ali reinante. E ouvimos, no plenário, os chavões de sempre: a CLT é arcaica, é paternalista, o sistema é de cabresto.

Os sindicatos chegaram a buscar a autorização do desconto por meio de assembleia geral, suprindo, assim, o consentimento individual. Novamente, o óbice do Supremo. Que, não bastasse, alheio a um fato inconteste — os sindicatos irão esfacelados para a “negociação” (as aspas são propositais) —, aprova a repercussão geral da tese que manda observar acordos e convenções coletivas “ainda que afastem ou restrinjam direitos trabalhistas, independentemente da explicitação de vantagens compensatórias”. Acordos em que condições? — é o caso de se perguntar, diante de um quadro em que os sindicatos perderam a sua fonte de receita e caminham para a inexistência ou irrelevância. Conquistas históricas prometem se desmanchar no ar.

Sabe-se que a crise do sindicalismo envolve múltiplos aspectos. Por um lado, a terceirização. Aqui novamente o Supremo foi decisivo. Acendeu sinal verde até para a atividade-fim da empresa tomadora de serviços. E um dos resultados diretos da terceirização é a fragmentação que dificulta o encontro, o congraçamento, os laços de solidariedade — em suma, o sindicalismo.

Por outro lado, fenômenos como “nova classe trabalhadora de serviços” e “uberização” inibem o coletivismo e acentuam o individualismo e a rivalidade, rompendo a ideia de aglutinação em torno do sindicato. Hoje, agrega-se mais nos movimentos sociais. Ou nas igrejas evangélicas — “espaços de sociabilidade onde as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios. Lá elas encontram laços de fraternidade e solidariedade”, no alerta de Marcio Pochman. 

O momento é de desafio, transição e ressignificação. Acabar, agora, com a contribuição sindical pode ter sido equivalente a cravar a estaca mortal.

Mas é hora de aplicar a lei, diz o Supremo. Impassível. Sem emoções. 

Em seu martírio, Ivan Ilicht consulta o médico. Angustia-se: seu caso é sério? O médico retruca formal e genericamente. Agoniado, anseia por análise pessoal e emocional. Diante da resposta — “Já disse o necessário” —, faz a comparação inevitável: tal qual nos tribunais. “Mas não sou um homem abstrato”, pensa. Em vão. Está a provar da mesma sopa fria e amarga que serviu aos jurisdicionados. Volto ao STF: indiferente aos dramas vivenciados pelos sindicatos, só vê abstração. Assim como se vale do silogismo para transferir para a Justiça Comum temas típicos do mundo do trabalho, ignorando-lhe as peculiaridades (desigualdade entre os litigantes, coerção econômica, hipossufiente). E como lavou as mãos diante do violento corte orçamentário de 2016 fazendo ouvidos moucos para a chantagem do deputado relator (“advertir a Justiça do Trabalho acerca dos supostos ‘excessos’ de seus julgados em detrimento do patronato brasileiro”). Sem falar no recado transmitido ao empresariado: litigar na Justiça do Trabalho passou a ser excelente negócio, sem juros e praticamente sem correção monetária. 

Em miúdos, alguma coisa está acontecendo com o Direito do Trabalho. E não é nada boa. Um sindicalismo alquebrado, uma reforma que deforma, uma Justiça do Trabalho minada. E estas decisões… Alguma coisa se passa aqui. Mas o Supremo não sabe o que é… Ou sabe?

Nos anos 1960, Bob Dylan cantou: “porque algo está acontecendo aqui, mas você não sabe o que é. Sabe, Mr. Jones?” Hoje, caberia perguntar: Sabe, Supremo?

Submisso, diante do médico, Ivan Ilicht pensa no quanto de empatia faltou-lhe no julgamento dos processos. O quanto faltou olhar para a parte e ver ali uma pessoa, com história e circunstâncias. Empatia que falta ao Supremo quando ignora as condições dos trabalhadores numa sociedade marcada pela precariedade, pelo trabalho extenuante, pelo descumprimento dos direitos trabalhistas mínimos, pela ainda existência de trabalho escravo. Parece estar a Corte mais preocupada com a saúde das empresas. Mesmo em meio à pandemia, quando a saúde das pessoas, dos trabalhadores, deveria ser a maior preocupação, o Supremo autorizou a redução de salários por acordo individual. E disse sim para a pejotização de trabalhador intelectual. Decididamente, alguma coisa está fora da ordem.

Diversas matérias da Reforma ainda serão pautadas no STF. Várias inconstitucionalidades. A principal delas talvez seja o acesso à Justiça gratuita envolvendo custas e honorários de sucumbência, talvez a mais cruel distorção trazida pela Reforma. Inibe o trabalhador de buscar a Justiça do Trabalho — ele pode sair tosquiado e devedor. Referendar este estado de coisas implica descamisar de vez a Justiça do Trabalho, hipótese que nos remete ao nosso escritor maior, Machado de Assis, naquilo que seria a fala do diabo: “Também foi dito aos homens: Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa”.

Não por acaso, engavetou-se o projeto de extinção da Justiça do Trabalho. Não precisa, pensou alguém encarnado de demo.

Sabemos da capacidade de a Justiça do Trabalho se reerguer — mas, até quando?

A leitura das reflexões de Ilicht mostra que o mero exercício de poder e os aplausos alimentam a vaidade, mas são efêmeros. E que ser juiz exige mais que dedicação; é preciso empatia. Existem contextos por trás de cada litigante. 

Pois contextualizar o papel do Direito do Trabalho num país que banaliza a desigualdade social, levando em conta seus princípios, é o que ainda se espera do Supremo — e não que subtraia a última camisa da Justiça do Trabalho, como a dizer-lhe “acabou!”.

Porque algo está acontecendo. Mas o Mr. Jones sabe o que é. Não sabe?

Gustavo Tadeu Alkmim é Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Conselheiro CNJ 2015-2017. Presidente da ANAMATRA 1999-2001. Mestre e Doutor em Literatura pela PUC-Rio. Membro da AJD.

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