“Estamos prestes a ter, talvez, uma destruição total do direito do trabalho”, alerta desembargador

Foto: Secom/TRT4

por Felipe Prestes

“Tempos distópicos”. Assim, Marcelo José Ferlin D’Ambroso, professor e desembargador do TRT4, define o momento em que o país se encontra, com o Supremo Tribunal Federal prestes a decidir sobre a pejotização e a uberização. “(São) tempos que eu, que estou já há mais de 30 anos na área trabalhista, não pensei em viver”, lamenta. 

Pós-Doutor em Direitos Humanos, pela Universidad Nacional de Lanús, na Argentina, e doutor em estudos avançados em direitos humanos, pela Universidad Carlos III de Madrid, na Espanha, o magistrado adota os direitos humanos como uma espécie de bússola para navegar por esses tempos em que a exploração do capital se esconde atrás de algoritmos. “Tratar os direitos do trabalho como aquilo que são em sua essência, direitos humanos, nos dá uma outra forma de interpretar e aplicar o direito do trabalho, desde essa perspectiva humanista. Não importa a existência de um contrato, onde houver uma relação de trabalho, eu tenho de observar esses direitos humanos fundamentalizados na nossa Constituição”, diz. 

Na perspectiva de D’Ambroso, havendo ou não um contrato de trabalho, direitos como 13°, férias, limitação de jornada e salário mínimo são direitos humanos, logo são inalienáveis, nem sequer o próprio trabalhador pode abrir mão deles. “Assim como não posso vender a minha vida, a minha liberdade, a minha saúde, o meio ambiente, nós também não podemos negociar o trabalho, porque o trabalho é um direito humano”. 

Em entrevista ao DMT em Debate, D’Ambroso falou sobre esses e outros temas, que constam no livro “Direitos humanos do trabalho na era digital” (Fundação Perseu Abramo e Autonomia Literária, 2025) do qual é organizador. O desembargador afirma que há um lawfare contra sindicatos e a classe trabalhadora, e defende a necessidade de uma renda básica universal e a soberania popular sobre os algoritmos controlados pelas big techs. 

O senhor propõe no livro pensar o direito do trabalho como direitos humanos do trabalho. Por quê? 

Porque, em realidade, são direitos humanos do trabalho. Nós tivemos a universalização desses direitos com a criação da OIT, em 1919, e se espalharam por todas as constituições do mundo. Inclusive, estão fundamentalizados na nossa Constituição, quer dizer, mais do que direitos humanos, são fundamentais, essenciais à estruturação do próprio estado de direito. Nesse contexto, nós vemos certa dificuldade do direito do trabalho dogmático tradicional em lidar com essas categorias que o capitalismo reinventa para explorar a classe trabalhadora, como agora pela uberização das relações de trabalho, pela pejotização, tanto que esses dois temas estão no STF, e estamos prestes a ter, talvez, uma destruição total do direito do trabalho. O Brasil vai ser um experimento de ultra neoliberalismo destruindo o direito do trabalho tal como nós conhecemos. Isso tudo sem mudar a Constituição, o que é mais raro, não é? Mas a nossa Constituição garante lá, férias, 13º, principalmente limitação da jornada, direito ao salário mínimo, igualdade de salário, FGTS, direito à saúde, segurança, medicina e higiene do trabalho, coisas que no modelo Uber de relações de trabalho e na pejotização desaparecem. Por isso, tratar os direitos do trabalho como aquilo que são em sua essência, direitos humanos, nos dá uma outra forma de interpretar e aplicar o direito do trabalho, desde essa perspectiva humanista, garantidora e efetivadora da proteção social da classe despossuída. 

O senhor fala também de abandonar o paradigma contratual. Como seria isto? Não teria mais um contrato entre trabalhador e empregador? 

O que eu sustento – inclusive, foi agora objeto da minha tese do segundo doutorado na Universidade Carlos III, de Madrid – é que nós não precisamos de um contrato para regulamentar ou para existir a relação de trabalho. Isso o próprio direito do trabalho, como a gente tradicionalmente conhece, sempre ensinou através daqueles princípios clássicos do (jurista uruguaio) Américo Plá Rodriguez, como o princípio da primazia da realidade: não importa a forma, o que importa é a existência de uma relação de trabalho de fato. Então, para que serve o contrato? É um elemento de colonialidade do poder que permaneceu no direito do trabalho e vem lá das reminiscências da revolução industrial, quando se aplica no início do século XIX um modelo genérico de contrato – instrumento jurídico por excelência, do capital -, tratando o trabalho como objeto mercantil em contratos de locação, de arrendamento de serviços, e que depois foi sendo qualificado pelas pelas leis e pela luta da classe trabalhadora como um contrato de trabalho sujeito a uma proteção especial. Mas o contrato é incompatível com direitos humanos. Essa é a grande questão. Assim como não posso vender a minha vida, a minha liberdade, a minha saúde, o meio ambiente, nós também não podemos negociar o trabalho, porque o trabalho é um direito humano. A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher já disse que “o trabalho é um direito inalienável de todo ser humano”. Então, o contrato é uma figura incompatível, uma ficção jurídica que existe no capitalismo para separar a pessoa da sua força de trabalho, desde a lógica mercantil, para possibilitar a compra e venda do trabalho no chamado “mercado de trabalho”, mas a força de trabalho é inseparável da pessoa, é a expressão da sua personalidade. Então, por essa ficção jurídica se separa a pessoa de sua força de trabalho, criando um paradoxo no qual a pessoa trabalhadora é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da relação contratual, simplesmente para que se possa negociar a pessoa, no que o “mercado de trabalho” constitui um eufemismo para o antigo mercado de escravos. E isso não é correto. Nós temos que abandonar o contrato como modelo regulatório das relações de trabalho e aplicar os direitos humanos como um modelo universal de proteção social que tem lugar em toda relação assimétrica de poder na qual uma pessoa despossuída presta serviços a outrem detentor dos meios de produção (sejam eles os meios tradicionais de produção ou os meios digitais de produção da atualidade, as plataformas, aplicativos e algoritmos). 

Mas como é que se dariam as bases de um acordo, de remuneração, etc. sem contrato? 

Nós não precisamos de um contrato, como dito, pelo princípio da primazia da realidade. A pessoa vê uma vaga existente de emprego, e se combina quanto vai ser o salário, observado o mínimo legal e todos os direitos sociais previstos na Constituição, CLT e legislação esparsa. Nesta relação de trabalho nós já temos em lei e na Constituição, nas convenções da OIT, no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Declaração Sociolaboral do MERCOSUL etc., todos os direitos que são aplicáveis. Quem admite alguém para prestar serviços tem obrigação de registrar (formalizar a relação perante o Estado),  pagar férias, 13º, observar a limitação de jornada, os descansos intra e interjornadas, recolher FGTS, previdência, observar as normas de saúde, segurança, medicina e higiene do trabalho etc. E é interessante que o próprio capitalismo, ao se reinventar, despreza o contrato de trabalho, porque para alguém fazer serviço na Uber ele não assina um contrato. Ele vai para a plataforma, se cadastra do seu aparelho de celular e começa a prestação de serviço. Então, o que eu sustento? Vamos esquecer o contrato. Vamos partir dos direitos humanos do trabalho que já estão positivados, reconhecidos, fundamentalizados na nossa Constituição – como cláusula pétrea, inclusive – e nos mais variados documentos e tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Nós não podemos suprimi-los ou diminuí-los sem uma nova constituinte. Nós temos que proteger a pessoa trabalhadora, independente da existência do contrato. No modelo do direito do trabalho dogmático tradicional, nós estamos vendo uma dissonância na jurisprudência, essa dificuldade em localizar quem é o empregador, porque passa a existir uma subordinação algorítmica ao invés da subordinação jurídica do contrato. Portanto, na era digital, nós saímos de uma servidão contratual para uma servidão algorítmica, mas permanece presente a figura do empregador, o detentor dos meios de produção, porque quem dá as ordens é o aplicativo. Essas ordens agora são dadas de uma forma “gamificada”, lúdica, entregando uma ilusão, inclusive da própria pessoa trabalhadora, ao não enxergar a figura do empregador, de achar que é uma pessoa autônoma, e não é, todas as ordens são passadas pelo algoritmo. É uma clássica forma de explorar o trabalho revitalizada com tecnologia digital e nós temos que seguir protegendo as pessoas desprovidas de capital e que necessitam de sua força de trabalho para sobreviver.

O senhor fala que a gente não precisa de uma regulação trabalhista para essas plataformas, porque já está tudo previsto dentro dos direitos humanos, mas que a gente teria que ter uma regulação sobre o algoritmo, sobre a transparência. Como seria essa regulação?

Precisamos adotar um enfoque de regulação, porque não é o caso de reescrever todos os direitos sociais, conquistados a sangue, suor e lágrimas da classe trabalhadora, correndo o risco de rebaixá-los ou diminuí-los (o que não é possível diante dos princípios de progressividade e vedação de retrocesso social). Agora, a transparência algorítmica, ou seja, a soberania popular sobre o algoritmo e aplicativos, isto sim, eu creio que nós devemos estabelecer regulando. Não  podemos, por exemplo, permitir que o algoritmo discrimine uma pessoa, porque há uma vedação constitucional à discriminação. Mas hoje não temos certeza se o algoritmo faz ou não essa discriminação (e certamente faz), porque o algoritmo é fechado, são incidências de fórmulas matemáticas e comandos de máquina sobre as quais não temos o menor conhecimento de como funcionam. Além disto, quando uma pessoa se engaja numa plataforma digital de trabalho, ela não tem acesso às demais pessoas que estão trabalhando, e isso impede a sindicalização. Esse seria um elemento importante para regular, no sentido de quando alguém se cadastrar, a plataforma de trabalho ter obrigação de comunicar o sindicato, para que o sindicato possa entrar em contato com essas pessoas e oferecer a filiação. Hoje, o modelo dessas plataformas elimina o sindicato, porque essas pessoas não se encontram, é um trabalho deslocalizado. 

O Brasil é tido como um país avançado em algumas regulações de internet. Teve o Marco Civil da Internet e agora se aprovou a proteção da criança e do adolescente nas redes. Por que não avança no direito do trabalho nenhum tipo de regulação e avança em outras áreas? 

Por força do lobby empresarial das big techs e porque a base do modelo de negócios das plataformas digitais de trabalho, o modelo Uber, é incompatível com o respeito à legislação social. Veja, a empresa Uber, por exemplo, é a maior empresa de transporte do mundo, sem ter frota. Não tem um carro sequer. A própria pessoa trabalhadora, ou entra com o seu carro, ou aluga um carro. Esse modelo de negócios parte da maximização da exploração social. Se fosse observar a legislação social, eu tenho minhas dúvidas sobre a viabilidade deste negócio. Isso já denunciou Yanis Varoufakis no livro Tecnofeudalismo. Por isso, há uma grande resistência dessas empresas, que mantêm um forte lobby no Congresso e no próprio Poder Judiciário para evitar a proteção social das pessoas “uberizadas”, plataformizadas. Outro argumento que é muito sedutor às autoridades públicas – quem trabalha isso é Fabian Namberger, um estudioso alemão da geografia das cidades –  é o chamado “tech infatuated smart State” (Estado esperto enfeitiçado pela tecnologia, em livre tradução), uma espécie de “encantamento tecnológico” sob o argumento da novidade: as “cidades inteligentes”, o “Estado inteligente”, que oferece serviços digitais. Mas, na verdade, nós acabamos privatizando tudo para as big techs, entregando os serviços públicos para as plataformas digitais privadas. Veja, o meu e-mail institucional no Poder Judiciário é fornecido pelo Google. Está certo isso? Me parece que não, porque o poder público brasileiro está sendo vassalo de uma big tech por um serviço simples, um correio eletrônico que, até um tempo atrás, o próprio Poder Judiciário desenvolvia. Assim, o Estado vai cedendo o seu serviço público e perdendo soberania para as big techs sem ter nenhum conhecimento sobre a forma de funcionamento dessas plataformas e seus algoritmos, inteligências artificiais. Vamos perdendo soberania, vamos perdendo democracia por essa subjetivação de encantamento tecnológico que vende a imagem de que a tecnologia é algo positivo, que veio para melhorar. Não que não melhore, mas são aplicações desenhadas para extração de lucro, dentro da lógica da iniciativa privada, não para respeitar direitos humanos, não para respeitar direito do trabalho, não para respeitar a democracia, de maneira que não podemos nos iludir ao adotar a digitalização da vida humana baseada em aplicativos e algoritmos de big techs e de plataformas privadas. Vamos pegar a Uber, por exemplo. Quando ela entra em uma cidade, nós temos um serviço de táxi, que é regulamentado por lei, com os pontos e vagas definidos, temos impostos que são cobrados por esse serviço. Entra o modelo Uber e, pelo argumento da novidade, diz: “Isso aqui não está regulado”, aumenta o trânsito da cidade, derruba o serviço de táxi e passa a competir até com o transporte coletivo, aumentando a poluição e comprometendo o trânsito. Mas, como assim, como permitimos isso? Tudo que  for inventado tem de estar conforme a ordem jurídica, não o contrário. Não é a ordem jurídica que tem de se adaptar a uma invenção. Agora, nós temos de regular aquilo que existe de novidade aqui, que é a caixa preta tecnológica dessas plataformas. Alguns autores e autoras trabalham essa subjetivação em torno da tecnologia, este enfeitiçamento tecnológico  como uma pretensão das big techs de substituição da ordem jurídica por uma ordem tecnológica por elas comandadas. Ou seja, vamos concordar em derrubar todas as Constituições e as leis e trocar por comandos tecnológicos das big techs, dos quais o povo não tem a menor noção de como funcionam e os Estados hoje não regulam. Vale lembrar que  o modelo Uber não é só para motorista ou para entrega de comida, quase todas as profissões podem ser uberizadas com a eliminação de direitos trabalhistas, como mostra o documentário “Gig – a uberização do trabalho”. Já temos pelo menos duas empresas no Brasil que passam a uberizar os supermercados. Agora nós temos estoquista, repositor e até empacotador de caixa, que podem, ao invés de serem celetistas, simplesmente se cadastrar e serem apresentados para um supermercado, que vai pagar só pelo serviço prestado. É o sonho de consumo do capitalismo, o famoso trabalho zero-hora, no qual são eliminados todos os direitos e pago estritamente o serviço prestado. Não se paga  mais o tempo à disposição. Neste sentido, a grande reivindicação do Breque dos Apps é de que, pelo menos, o trabalho logado seja pago, porque a pessoa fica aguardando ordem do aplicativo até que chegue a corrida. Por outro lado,  a questão na Europa evoluiu:  fizeram uma diretiva que é baseada na Lei Rider, da Espanha, na qual se parte da presunção de laboralidade, ou seja, da existência do vínculo empregatício. Quem tem de provar que não há vínculo é a plataforma. O México adotou o mesmo modelo. No Brasil, nós estamos agora nessa pendência, se vai existir direito do trabalho ou não, porque o STF pode, eventualmente, na contramão do mundo, validar um modelo de negócio que quero qualificar como um verdadeiro estelionato contra os direitos sociais, digno de capitulação, em tese, no art. 203 do Código Penal (crime de frustração de direito trabalhista mediante fraude). 

Temos duas ações diferentes no STF, a pejotização, que está com Gilmar Mendes, e a da uberização, com Edson Fachin. 

Exatamente. Então, nós temos esses dois grandes riscos. É como se o capital estivesse apostando numa corrida em dois cavalos, porque se qualquer um deles ganhar, seja a uberização, seja a pejotização, estarão exterminados os direitos trabalhistas. A liberação da uberização, que, como dito, é o modelo de trabalho zero-hora,  vai eliminar todos os direitos sociais. E o outro que é transformar milagrosamente, por uma “transmutação alquímica”, uma pessoa trabalhadora em uma empresa de si mesma, cujo único capital é a sua força de trabalho, também liquida os direitos trabalhistas. Mas isso não existe, é um absurdo total! Por esta razão, digo que  estamos vivendo tempos distópicos, tempos que eu, que estou já há mais de 30 anos na área trabalhista, não imaginei vivenciar. 

O senhor tem trazido conceitos do direito penal para o direito do trabalho.  O lawfare laboral e, a partir do direito penal do inimigo, o senhor fala em direito do trabalho do inimigo. A gente está tendo uma guerra contra sindicatos e outras instituições? Quais são os sinais dessa de que há uma guerra contra os sindicatos, contra os direitos trabalhistas?

Há uma guerra jurídica, de fato, contra sindicatos e a classe trabalhadora que inicia lá depois do golpe de 2016 com a reforma – a deforma, melhor dizendo – trabalhista de 2017. Ali se romperam todos os pilares que construíram o direito do trabalho tradicional. A regra da norma mais favorável, da condição mais benéfica, que estão embutidos no princípio da proteção, os princípios do Américo Plá Rodriguez, grande jurista uruguaio, foram por água abaixo. Em nome de uma lei fascista, que foi aprovada em menos de sete meses no Congresso Nacional, a toque de caixa, sem discussão com a comunidade jurídica, sem discussão com os sindicatos, sem diálogo social. E, veja, o Brasil é signatário de uma convenção da OIT que impõe o diálogo social para a mudança da legislação trabalhista. Então, há uma inconvencionalidade no âmago da lei 13467 e também na liberação da terceirização (lei 13429), que estruturaram as condições para prática desse lawfare, dessa guerra jurídica contra sindicatos e a classe trabalhadora. Vemos os meios de comunicação e mídias de massa (redes sociais) sendo usados para colocar as pessoas trabalhadoras contra os sindicatos, para elas se alijarem dos sindicatos. Nós saímos de 16% de taxa de sindicalização antes da deforma, no ano 2016 e hoje, nós estamos em 8.2%, segundo o IBGE. É um sinal muito perigoso para nossa democracia, porque na hora em que desaparecerem os sindicatos, nós vamos ter menos democracia. O sindicato é a voz da classe despossuída, da classe trabalhadora, da classe despossuída, dos 99%. É um contexto de lawfare, de guerra híbrida, que entra com a subjetivação da classe trabalhadora contra os sindicatos (que estão sendo substituídos por igrejas), e entra também com esta guerra jurídica no Poder Judiciário. Para cada greve, para cada contexto de protesto da classe trabalhadora, tem repressão, tem uma medida judicial que obriga aqueles percentuais de 90% de prestação de serviço com multas pesadíssimas, ou seja, esvaziando o direito de greve. Isso acontece todos os dias no âmbito do Poder Judiciário. E paulatinamente, com a deforma laboral, vai sendo construído um necrodireito do trabalho, com dupla faceta, o direito do trabalho do inimigo e o direito do trabalho do amigo. No direito do trabalho do inimigo, a classe trabalhadora é incluída para sua desproteção, ou seja, uma proteção retórica, porque a pessoa entra, mas tem uma série de exigências, tem de liquidar a inicial, se perder vai ter de pagar custas, está sujeita a ser condenada a honorários de sucumbência. A Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, diz que para a defesa de direitos fundamentais – e todos os nossos direitos trabalhistas estão fundamentalizados na nossa Constituição – eu tenho que ter um instrumento simples, rápido, efetivo e gratuito. Por isso, nós sempre tivemos a gratuidade na Justiça do Trabalho, veio a reforma de 2017, e disse “não, agora há sucumbência e, se perder, vai pagar custas e honorários”. Já o direito do trabalho do amigo é aquele que favorece as empresas. Então, ao invés de seguirmos o regramento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no qual vai ser aplicado o princípio pro persona, a supremacia dos direitos humanos, esse necrodireito do trabalhoaplica a supremacia do direito de empresa. E, por isso, recuperar aquele movimento que teve, o Revoga Já, seria fundamental para esses tempos distópicos e para pôr fim ao lawfare vigente contra sindicatos e a classe trabalhadora.

A gente tem visto muitos ministros do STF dando declarações em eventos, nesse sentido, louvando a livre iniciativa. 

 O discurso de “liberdade econômica”, de prestígio à “livre iniciativa” é um discurso neoliberal de subjetivação da classe trabalhadora e da sociedade. Como o discurso do empreendedorismo, por exemplo, mas que é um falso empreendedorismo, porque, se eu não tenho capital, eu não sou empreendedor. Eu sou uma pessoa trabalhadora, que vai necessitar da sua força de trabalho para sobreviver. São várias situações que vem se somando nesse momento em um contexto contrário a sindicatos e ao direito do trabalho, à proteção social – o Brasil como um laboratório de uma experiência ultraneoliberal que está na contramão do mundo, porque não vejo isso nem na Argentina do Milei, por exemplo, como modelo ultraneoliberal de governabilidade, está mantendo o patamar de proteção do direito do trabalho. E aqui no Brasil, sem alterar a Constituição, nós estamos correndo o sério risco de deixar de existir a proteção social.  Porque com esse discurso de elogio da liberdade econômica, do empreeendedorismo, vai  todo mundo virar empresa de si mesmo, PJ, ou plataforma no modelo Uber. 

Algumas das soluções que o senhor debate no livro, entre elas está uma participação popular na Justiça. Como é que seria isso? O que o senhor defende?

Eu creio que é importante a gente pensar em democratização da Justiça. Na Justiça do Trabalho nós tínhamos a representação classista antigamente, que era uma conexão que se fazia com sindicatos, com a classe trabalhadora, também com as empresas. Se o modelo não deu certo por algumas coisas erradas, eu penso que não deveria ter sido suprimido, mas sim aperfeiçoado. 

Como é que funcionava?

Isso perdurou até 1999, quando uma emenda constitucional suprimiu a representação classista.  Sindicatos obreiros e de empresas indicavam representantes. Na época, não eram varas do trabalho, eram juntas de conciliação de julgamento,  presididas por um juiz, juíza togado, e representantes classistas de empresas e de sindicatos. Sempre se decidia por 2 a 1. Eles também integravam os tribunais. Eu creio que nós poderíamos pensar em resgatar esse modelo na Justiça do Trabalho, para voltar a ter essa conexão, repensando, no entanto, a forma de funcionamento, por exemplo, voltada à conciliação e não ao julgamento. Quando deixou de existir a representação classista, paulatinamente a Justiça do Trabalho foi também se distanciando da realidade social da classe trabalhadora, do mundo do trabalho. Mas a democratização a que eu me refiro é, sobretudo, incidir no acesso dos concursos públicos da magistratura e Ministério Público, porque são altamente elitizados hoje. Quem tem condições de fazer um concurso desse e passar é quem fica em casa, estudando 12 horas por dia, fazendo curso preparatório e não precisa trabalhar, evidentemente. Quem está formando juízes, juízas e membros, membras do Ministério Público hoje é a iniciativa privada. Mas não está formando para exercer a profissão, está formando para passar no concurso. Eu não sou eurocentrista, todo modelo tem de ser adaptado à realidade social do país onde se vive, mas vamos pegar como é na Espanha o acesso à magistratura e ao Ministério Público.  Existe uma prova objetiva, na qual minimamente se verifica os conhecimentos jurídicos da pessoa, e ela entra então na escola da magistratura recebendo uma bolsa para estudar. Ela fica lá dois anos estudando, fazendo provas e recebendo formação para a profissão. Nesse período, ainda vai estagiar em sindicato, em empresa, no serviço público, em escritórios de advocacia e, ao final desses dois anos, as pessoas remanescentes, que não se desligarem do programa, é que vão terminar o concurso público. É muito mais democrático do ponto de vista da acessibilidade, permitir que mais pessoas tenham oportunidade de vir a exercer a magistratura e não deixar da forma elitizada como está hoje, que estimula o lawfare (por conflito de classe, entre a classe média alta, rica, que passa no concurso, e a massa da classe baixa, usuária do sistema de justiça). Pessoas que nunca nunca assinaram ponto na vida, que nunca pagaram um boleto, podem vir a ser julgadores e julgadoras no dia de amanhã e, via de regra, não vão ter a interpretação  sensível à realidade social daquela pessoa que necessita da sua força de trabalho para sobreviver. Há várias formas de democratizar. Acho que o orçamento no Poder Judiciário também pode ser democratizado, com a realização de consultas públicas. Essas metas que são impostas, pelo CNJ, por exemplo, vêm de um modelo de gestão privado, o New Public Management (NPM), que nada mais é do que neoliberalismo aplicado ao Estado e chegou no Judiciário, com a imposição de números.  Mas a Justiça não tem que ser entregue com método quantitativo, mas qualitativo, e deve ser avaliada pelo povo, usuário do sistema de justiça. Quem deve estabelecer controle, forma de controle e de avaliação de um serviço público como o Poder Judiciário, deve ser o povo. Para isso poderiam ser feitas audiências e consultas públicas, prestação de contas qualitativa (explicação de como a justiça está sendo prestada, quais os benefícios entregues ao povo).

A reforma trabalhista foi muito num argumento de diminuir números de ações, não é?

Exatamente. E, lamentavelmente, nós temos isso institucionalizado no Poder Judiciário, com o relatório “Justiça em Números”, que é produzido anualmente pelo CNJ, que é basicamente quantificar a prestação de justiça. Mas a Justiça é, por sua essência, qualitativa. Eu posso ter uma unidade jurisdicional em um lugar do interior, bem remoto, que não tenha muito movimento processual, mas que é extremamente essencial para a população. Então, os instrumentos de medição da justiça têm de ser outros e isso tem necessariamente  de ser discutido, sobretudo, com a população, com o povo. Lamentavelmente, não é pauta no momento. As pautas estão focadas sempre em outras coisas, como dizer que tem muita ação trabalhista no Brasil, o que é um um dado absolutamente falso. O TST já fez uma comissão que estudou  modelos de justiça do trabalho no mundo e chegou à conclusão de que aqui não tem mais ações do que em outros lugares, estamos na média, mas esse discurso continua sendo repetido. O que existe no Brasil é muita violação de direito humano do trabalho por parte das empresas, e sobre isso não se incide, não se discute. Para combater essa realidade,  precisamos de políticas públicas adequadas, de renda universal, de fortalecimento das estruturas de proteção social, da inspeção do trabalho, da Justiça do Trabalho,, que também não constitui pauta atualmente. A renda universal terminaria com o argumento“ad terrorem” do capitalismo – ou trabalha, ou passa fome, ou vai para a prisão – porque  quando cobertas as condições de subsistência econômica, a pessoa tem condições de exercer o direito humano de eleger trabalho. conforme a sua vocação ou aquele trabalho que ela entenda que está melhor remunerado e tem uma jornada mais adaptada à sua condição de vida. E nós já temos uma lei, a lei 10.835 de 2004, que instituiu a renda básica de cidadania, mas que até hoje não saiu do papel. Porque quando existe a cobertura da condição de subsistência, a pessoa não vai se submeter a qualquer trabalho. Como resultado, o salário, as condições de trabalho têm de melhorar e, consequentemente, a própria jornada vai ser diminuída. Veja a luta que está hoje para acabar com a escala 6×1 no Brasil. E não sei se vamos ter condições de aprovar com este Congresso  reacionário qualquer melhoria da condição social da classe trabalhadora.

De certa forma o Bolsa-Família já impede algumas situações degradantes, não?

Algumas situações ele impede, efetivamente. Mas não é ainda o adequado.  Precisamos dar a todas as pessoas uma renda universal, para melhorar as condições de proteção social, melhorar salário e a limitação da jornada.

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