Em defesa da Justiça do Trabalho

Fotografia: Pixabay/Ana Pessoa/arte DMT

Eis a importância da Justiça do Trabalho: permitir o exercício de cidadania; ser um espaço de escuta e de solução para as agressões aos direitos trabalhistas.

Valdete Souto Severo

Esse foi o título de um artigo escrito por mim em 2017. À época, discuti a violência da “reforma” proposta por um projeto de lei eivado de golpes em seu processo parlamentar de aprovação. Sob a velha retórica da modernização, a CLT foi desfigurada pela Lei 13.467.

Em 2023, ainda é preciso insistir nessa defesa.

Embora criada na década de 1940 do século passado, fato é que a Justiça do Trabalho adquiriu centralidade e importância a partir da Constituição de 1988. Pela primeira vez, aos direitos trabalhistas foi reconhecido o status de fundamento do Estado. Ao contrário do que se esperava, porém, não houve mudança na cultura de desrespeito à instituição e aos direitos que ela se propõe a efetivar. A década de 1990 foi marcada pelo discurso de desmanche dos direitos sociais. A Constituição encontrou-se com a onda neoliberal ditada pelo Consenso de Washington e pelas diretrizes fixadas pelo Banco Mundial no documento 319. 

Um Judiciário previsível, aliado ao mercado e orientado a impedir o acesso à justiça às pessoas mais vulneráveis, passou a constituir o objetivo ostensivo ou velado de vários atores desse poder de Estado. A súmula 331 do TST, admitindo terceirização em “atividade-meio”, especialmente em serviços de limpeza e conservação, revelando e recalcando o recorte racista dessa técnica de precarização do trabalho, talvez seja o símbolo mais emblemático da postura contraditória assumida pelos agentes da Justiça do Trabalho, a partir da Constituição de 1988.

A atribuição do dever de arrecadar, de ofício, contribuições previdenciárias, parecia suficiente para arrefecer o ânimo dos algozes dos direitos sociais, na segunda metade da década de 1990. Mas não foi. Nem mesmo a EC – Emenda Constitucional 45/2004, que aumentou a competência material da Justiça do Trabalho, através da alteração do texto do artigo 114 da Constituição, mudou essa lógica. Não prevaleceu a compreensão de extensão dos direitos trabalhistas aos profissionais liberais e várias situações específicas foram sendo, uma a uma, retiradas da competência da Justiça do Trabalho. Grijalbo Coutinho Fernandes, em seu livro Justiça Política do Capital, faz a radiografia do desmanche, através da atuação do STF. Depois da publicação do livro, outras decisões ainda mais graves foram proferidas. Reclamações constitucionais têm sido apreciadas, com supressão de instância, no sentido de afastar a Justiça do Trabalho até mesmo de sua função mais primária: decidir quando há ou não vínculo de emprego.

Apesar das decisões e dos entendimentos sumulados, que claramente fragilizavam direitos trabalhistas, promovendo proteção ao capital, a Justiça do Trabalho seguiu sendo atacada. Manifestações de figuras importantes no cenário nacional, como Ives Gandra Martins Filho ou Gilmar Mendes engrossaram o coro dos críticos à sua existência. Em outro texto, escrito em 2016, mencionei o quadro desolador que a própria Justiça do Trabalho, por seus agentes, ajudou a criar, “ao permitir que o Direito do Trabalho fosse recortado, desconfigurado e distorcido através de súmulas e entendimentos que negam a Constituição”. O ataque sistemático tinha, e ainda tem, um objetivo claro: o fim da Justiça do Trabalho. E com ela, do Direito do Trabalho. Por essa razão, inclusive, um grupo de pesquisadoras e pesquisadores ligados à USP publicou, sob organização minha e do colega Jorge Luiz Souto Maior, a trilogia Resistência, editada pela Expressão Popular. O Resistência II tem exatamente o título Defesa e crítica à Justiça do Trabalho

A crítica é necessária, em razão de posicionamentos, como aquele adotado em relação à terceirização, à proteção à relação de emprego ou à duração do trabalho. A Lei 13.467 foi aprovada e vem sendo aplicada por parte da magistratura exatamente porque tem menos inovação do que inclusão, no texto legal, de entendimentos que já vinham sendo chancelados pelo Poder Judiciário.

Ainda assim, a defesa à Justiça do Trabalho é algo extremamente necessário. É esse o único espaço de escuta da classe trabalhadora, pelo empregador e pelo Estado. Sua agilidade e eficiência são demonstradas, mesmo sob a lógica dos números apresentados anualmente pelo CNJ. A maioria das demandas trabalhistas versa sobre a ausência de pagamento de verbas rescisórias, de acesso ao seguro-desemprego e ao FGTS, situação infelizmente tão recorrente em uma realidade de incentivo à terceirização e à precarização de direitos. A resposta que hoje o Estado oferece é insuficiente, sem dúvida. Ainda assim, extinguir a Justiça do Trabalho apenas tornaria ainda pior a realidade de quem depende do Estado para fazer valer seus direitos.

A Justiça do Trabalho foi criada sob a premissa de que o Estado deve se comprometer com a realização dos direitos, sem os quais não há como sobreviver em uma sociedade capitalista. Parte do reconhecimento de que o empregador tem autotutela. Pode despedir, alterar horário, conteúdo ou remuneração do trabalho. O trabalhador e a trabalhadora não possuem essa mesma faculdade e isso decorre da própria condição objetiva de dependência, sob a qual a relação de trabalho se inscreve. Regular de forma diferenciada essa relação, e responder aos conflitos trabalhistas de forma eficaz, com uma estrutura própria, deve interessar também ao capital. Afinal, direitos trabalhistas regulam a concorrência, viabilizam o consumo e promovem contenção dos danos, com os quais a sociedade precisa lidar.

Como refiro no livro Contribuições para uma Teoria Geral do Processo do Trabalho, recentemente lançado pela Lacier, ajuizar uma ação trabalhista, em uma realidade de desemprego estrutural e de obrigatoriedade do trabalho como condição para a sobrevivência, é um ato de coragem. O Judiciário Trabalhista revela-se assustador à classe trabalhadora, pois implica uma exposição que vai além das matérias discutidas nos autos. Escrevi lá e repito aqui: “a relação social de trabalho envolve afeto. No ambiente de trabalho, criam-se laços, trocam-se sentimentos, constroem-se relações. Por isso é possível sustentar que, apesar de ser tratada como mercadoria, a força de trabalho será sempre mais do que isso. Enquanto há a troca, ou depois que ela termina, todos esses afetos persistem, misturam-se e influenciam na escolha por buscar ou não o reconhecimento de direitos e a reposição de perdas, através da Justiça do Trabalho. (…) Todo o movimento de afetos e de atos implicados em um processo envolve as noites de sono perdido, as conversas com familiares e pessoas amigas, as diversas situações em que a decisão de propor uma demanda trabalhista será enfrentada”.

Eis a importância da Justiça do Trabalho: permitir o exercício de cidadania; ser um espaço de escuta e de solução para as agressões aos direitos trabalhistas.

Preciso, ainda, referir um último ponto, que me parece fundamental para que os agentes políticos, que constroem o que chamamos Justiça do Trabalho, não sucumbam nem atuem para a extinção da instituição. A gestão por metas precisa urgentemente ser abandonada. O imperativo de homogeneidade do tempo, com a fixação de objetivos que não consideram as diferenças reais do trabalho realizado ou as diferenças pessoais de quem o executa, é a forma mais antiga, já referida por Marx, de “avidez do capital”. Quando o Poder Judiciário, cuja função é administrar a justiça, se rende a essa lógica, algo está muito errado.

Às metas, que consideram números e não a complexidade e a diferença de cada processo, alia-se uma técnica de produção fordista, ditada pelo processo judicial eletrônico, em que as demandas transcorrem em uma espécie de esteira de montagem virtual. O Programa de Metas e Processo Judicial Eletrônico visam, conjuntamente, a eliminar ao máximo a “porosidade” do trabalho, sob o imperativo capitalista de captura do tempo e da subjetividade. Neste estado atual das coisas, o CNJ se revela um agente desse roubo do tempo, desse aniquilamento forçado das subjetividades, dessa transformação da função judiciária numa questão empresarial (de resultados). Talvez a questão em que melhor transpareça essa lógica seja a da conciliação, cuja função (de pacificar conflitos sociais) vem sendo substituída pela necessidade de reduzir o número de processos pendentes, ainda que com prejuízo efetivo e manifesto dos direitos sociais fundamentais. Tudo para cumprir as metas. Sem enfrentar criticamente essa forma de gestão, dificilmente conseguiremos retomar o sentido do trabalho de prestar jurisdição trabalhista.

A Justiça do Trabalho, como diz o Anteprojeto, que a instituiu, na década de 1930, é o símbolo do reconhecimento, pelo Estado, de que não há neutralidade diante de perturbações coletivas. Ao contrário, há o compromisso de fazer valer os direitos que a ordem jurídica eleva à condição de fundamentos da organização social. E para isso, uma instituição própria, com estrutura e autonomia, é fundamental. Mas é também fundamental uma mudança radical de postura, por parte dos agentes que nela atuam, que parta do reconhecimento dessa função política, jurídica e social e que, portanto, reconheça sua condição de justiça de garantia e efetividade dos direitos de quem vive do trabalho.

Valdete Souto Severo é Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.

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