Barroso, desigualdade social e a pejotização do trabalho

Fotografia: Ascom/STF

Ministro critica concentração de renda, mas suas decisões em matéria trabalhista a favorecem.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 30/10/2023

“Faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. Assim eu classificaria o discurso do presidente do STF na semana passada durante conferência em evento da OAB em Brasília. Em lindas palavras, Luís Roberto Barroso criticou a concentração de renda no país, citando como exemplo o dado de que “as seis pessoas mais ricas do Brasil têm a riqueza da metade da população brasileira”. Pena que o seu discurso não corresponda às suas decisões em que, como questão de fundo, há disputa jurídica e constitucional sobre distribuição de renda. 

É do conhecimento convencional em economia que a forma mais eficaz de distribuição de renda é a que se dá através do trabalho remunerado e dos benefícios inerentes à proteção social da classe trabalhadora. Basta ver que, pelo índice Gini que mede a desigualdade entre os países, os Estados nacionais menos desiguais do mundo são aqueles onde o Estado de Bem-Estar Social afirmou amplas garantias para os trabalhadores, como França, Inglaterra, Alemanha e Bélgica. Mesmo países muito ricos como os EUA, em que o modelo de proteção do trabalho é muito distante do paradigma europeu de wellfare state, têm um desempenho pífio em termos de desigualdade social, se comparados com os igualmente ricos europeus. Na escala da desigualdade, os americanos estão muito mais próximos do Brasil do que da Alemanha ou França. Ocupamos a 10ª posição como o país mais desigual do mundo, os EUA a 58ª, enquanto a Alemanha e França se encontram nas posições 128ª e 132ª, respectivamente. 

Bem, se o presidente do STF entende que cabe ao judiciário algum papel na redução da desigualdade econômica em nosso país, perguntemos o que o nosso judiciário tem feito para assegurar o respeito os direitos sociais dos trabalhadores brasileiros. Quem conhece minimamente o mercado de trabalho nacional sabe que uma das suas transformações mais evidentes nas últimas décadas tem sido a precarização das condições de trabalho: achatamento salarial, aumento de horas de trabalho, crescimento de acidentes laborais, informalidade e evasão dos direitos assegurados à classe trabalhadora pela Constituição.  

Quanto a essa última, ela é emblematicamente representada pelo fenômeno da “pejotização” do mercado de trabalho brasileiro, artifício usado com frequência de forma fraudulenta para classificar trabalhadores subordinados como “micro-empreendedores individuais”, “cooperados”, “autônomos”, “associados”, entre outras formas criativas para burlar a legislação trabalhista, reduzindo a renda dos trabalhadores e as contribuições sociais para a previdência social. 

O atual presidente do STF tem sistematicamente votado para validar essas práticas violadoras dos direitos sociais dos trabalhadores, ao argumento débil de que a corte considerou a terceirização constitucional, daí concluindo que toda e qualquer contratação de trabalhador sob a lei civil goza de presunção absoluta de validade, não podendo ser desconstituída pela Justiça do Trabalho, mesmo em casos onde a fraude é cristalina e evidente ante à presença dos elementos fáticos da relação de emprego. 

Para exemplificar, vamos tomar o exemplo da Reclamação Constitucional 59836/DF, na qual o Ministro Barroso cassou uma decisão da Justiça do Trabalho que havia reconhecido a relação subordinada de emprego da advogada Monize Natália Soares de Melo Freitas em face de uma Sociedade de Advogados em Rondônia para a qual trabalhou (processo TST-Ag-AIRR-1311-52.2016.5.14.0001). A Dra. Monize foi admitida em 2014 como “advogada associada”, porém o contrato sequer foi registrado na OAB. Depois, foi incluída como “sócia” da sociedade, sendo-lhe atribuída 0,01% das cotas sociais (e mais uma vez não houve registro do contrato na forma da lei). Eu me pergunto quem em boa-fé oferece participação em uma sociedade na qual um sócio ingressante recebe 0,01% de cotas (atenção, não é 0,1%, mas 0,01%). A advogada recebia cerca de 3 salários mínimos mensais e sua remuneração não tinha nenhuma relação com a lucratividade do escritório relativa aos honorários percebidos pela sociedade.  Não dispunha de qualquer autonomia em seu trabalho, precisando de autorizações de superiores para assinar as mais simples petições. Tudo isso está materializado nos autos e foi objeto de contraditório. O processo percorreu as três instâncias da Justiça do Trabalho e o TST manteve a decisão proferida pelo TRT da 14ª. Região, que reconheceu o vínculo. 

Então, mediante uma reclamação constitucional, o Ministro Barroso, a pretexto de preservar a autoridade da jurisprudência da corte, em uma decisão aparentemente padronizada de seis páginas, tornou sem efeito um processo que não continha qualquer mácula ou violação ao devido processo legal, um processo que percorreu todas as instâncias da Justiça do Trabalho durante oito anos, e que não tinha relação alguma com “terceirização”, tema dos precedentes que, alegadamente, teriam sido afrontados pela decisão do TST. Detalhe não menos importante: os fatos ocorreram em 2014, ANTES da Reforma Trabalhista, de modo que o Ministro deu efeitos retroativos à lei cuja constitucionalidade foi examinada pelo Supremo. 

Em uma análise do conjunto probatório (o que sequer poderia ser feito em sede de reclamação constitucional segundo o próprio Supremo), o Ministro Barroso, examinando muito superficialmente os fatos, disse que a autora da ação não era hipossuficiente porque tinha ensino superior e recebia “salário expressivo”. Lembremos que “hipossuficiência” no Direito do Trabalho é um conceito atinente, essencialmente, à assimetria econômica, sendo indiferente o grau de instrução do trabalhador, o qual pode, inclusive, ser considerado hipersuficiente mesmo com baixo grau de instrução, se o salário for efetivamente alto, conforme, por exemplo, casos de jogadores de futebol (vide TRT3-0010636-07.2019.5.03.0113).

E ainda, quanto ao alegado “salário expressivo”, recordemos também que a profissional recebia somente três salários mínimos… Aliás, curiosamente, o Ministro Barroso “esqueceu” que a própria Reforma Trabalhista que ele tanto defende em discursos aqui e no ultramar, ela mesma fixou um critério objetivo de hipersuficiência (CLT, art. 444, parágrafo único, com a redação da Lei 13467/17): remuneração acima de dois tetos da previdência (R$ 15.014,98). Porém, como visto, a Dra. Monize não recebia sequer um terço deste valor.

Qual a consequência desta decisão do Ministro Barroso? O que ela sinaliza para a sociedade? Há um claro incentivo ao descumprimento generalizado da legislação trabalhista: “contratem trabalhadores como pessoas jurídicas, pois eles não podem questionar a relação fática no poder judiciário, ainda que a fraude seja desabrida; paguem menos pelo trabalho e ‘desonerem’, artificiosamente, a folha de pagamento”. Será que com esse vale-tudo chancelado pelo STF, a renda dos trabalhadores vai aumentar ou diminuir?  

Será que haverá maior ou menor concentração de renda? Pensemos, em particular, nesse segmento de atividade empresarial, o das grandes firmas de advocacia do Brasil. É fato público e notório que no Rio de Janeiro, em São Paulo e Brasília há grandes escritórios de advocacia, que contam com mais de cem advogados em seus quadros, os quais remuneram advogados iniciantes com pífios três ou quatro mil reais para jornadas de mais de dez horas de trabalho, sem qualquer outro direito. Esses advogados quase sempre são contratados como a Dra. Monize: mediante associação em cotas de 0,01% ou pouco mais.  

E estamos falando de bancas de advocacia que faturam dezenas de milhões de reais anualmente, distribuídos entre quatro ou cinco sócios principais.  Por que não pagam mais aos seus jovens advogados? Não havendo lei que o obrigue, prevalece a “autonomia da vontade” entre advogados poderosos e milionários e jovens recém-formados desesperados por uma oportunidade de trabalho, sem outra opção a não ser aceitar as condições do sistema. 

Afinal, é da natureza do modelo capitalista pagar o menor valor possível que baste para manter o trabalhador no emprego, de modo a maximizar os lucros da operação, situação facilitada no Brasil pela superoferta de mão-de-obra de jovens profissionais jurídicos. O Direito do Trabalho é o instrumento historicamente construído nos Estados Democráticos de Direito para corrigir essa falha de mercado, evitando os males da hiperconcentração de renda.  

A decisão aqui comentada, proferida pelo presidente do STF, para além da sua intrínseca ilegalidade e inconstitucionalidade, simplesmente mantém esse modelo de alta desigualdade de renda ao alienar do trabalhador a proteção social e trabalhista que está na Constituição. Por isso, só posso concluir que o discurso do Ministro Barroso sobre desigualdades econômicas e sociais em nosso país, se cotejado com suas ideias e sua práxis, não passa da mais pura demagogia. 

Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022)

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