TST: ‘uberizados, virem-se por conta própria’

Maria Cristina Peduzzi, presidente do TST. Fotografia: Giovanna Bembom/TST

Se a Justiça do Trabalho não sustentar a pedra angular do direito do trabalho, ela própria desmoronará.

Cassio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 20/09/2021

A presidente do TST, ministra Maria Cristina Peduzzi, deu uma confusa entrevista ao UOL, que resume bem o quão perdidos se encontram alguns segmentos do judiciário trabalhista no debate sobre uberização. Não sei se é porque ainda não formou um juízo de valor sobre a questão, ou se porque não quer se pronunciar publicamente sobre o tema, foi de fato difícil encontrar alguma coerência no que a presidente do TST pensa sobre o assunto.

Ao ser indagada sobre como a Justiça do Trabalho deve proteger os trabalhadores uberizados, respondeu o seguinte: “Em relação a essa nova disciplina de trabalho autônomo para disciplinar as relações por meio de plataformas, todos os países ainda estão pensando. Não há definições, porque é uma nova forma que surgiu recentemente, tanto que a discussão de uberização de plataforma e motorista é uma questão que está sendo debatida no mundo todo. Nós temos inclusive decisões na Inglaterra, na França que afirmam o vínculo de emprego, e temos ao mesmo tempo projetos legislativos que buscam disciplinar em sentido contrário, mas não está definido no plano internacional”.

Observe-se que a ministra Peduzzi parte do pressuposto de que os motoristas e entregadores de aplicativo exercem um “trabalho autônomo”. Mas com base em que se faz essa afirmação, quando tais trabalhadores sequer têm a autonomia de fixar ou negociar livremente o preço do seu trabalho? Ora, é justamente a natureza da relação de trabalho é que está em questão. Se a ministra, como premissa, entende pela “autonomia”, então não haveria nem o que discutir.

Mas a presidente do TST, contraditoriamente, prossegue e afirma que “não há definições” e que a questão está sendo debatida em todo o mundo. Bem, dizer que “não há definições” no direito estrangeiro não é propriamente correto.

Há, sim, muitas definições através do Poder Judiciário na Europa, América do Sul e Austrália, a totalidade refutando a propalada condição de “autônomos” dos trabalhadores uberizados. E, repare-se, decisões que foram tomadas independentemente de “projetos legislativos”, com a aplicação pura e simples do “velho” (e bom) Direito do Trabalho; sim, o mesmo Direito do Trabalho europeu que moldou o Direito do Trabalho brasileiro e latino-americano, inclusive quanto aos requisitos para definir quem é empregado e quem é autônomo.

Apenas para resumir, de acordo com pesquisa do professor da UFRJ e procurador do Trabalho Rodrigo Carelli em conjunto com o professor da UFBA e juiz do trabalho Murilo Carvalho Sampaio de Oliveira, tribunais dos seguintes países, em instância final, já refutaram a tese do trabalho autônomo e reconheceram direitos trabalhistas para trabalhadores uberizados, aplicando pura e simplesmente o direito do trabalho tradicional: França, Reino Unido, Alemanha, Espanha, Bélgica, Uruguai, Chile, Austrália, Holanda e Itália (fonte: “As Plataformas Digitais e o Direito do Trabalho – como entender a tecnologia e proteger as relações de trabalho no século XXI”, Ed. Dialética, 2021).

Acrescente-se que, nos EUA, o Judiciário nos estados de Nova Iorque, Massachusetts e California também decidiu contrariamente à tese do trabalho autônomo (na Califórnia houve um plebiscito para reverter a decisão judicial, mas este atualmente está suspenso por liminar que reconheceu sua inconstitucionalidade).

Mais estranha ainda me pareceu a seguinte afirmação da presidente do TST em relação aos trabalhadores uberizados: “A proteção que nós devemos, sempre, em nos preocupar em nunca prejudicar em qualquer sentido é a garantia dos direitos civilizatórios mínimos. Esses direitos civilizatórios mínimos são assegurados pela lei geral. Qualquer autônomo é obrigado a contribuir e se inscrever no INSS, o que lhe dá direito previdenciário”.

Ficou claro que para a presidente do TST o conceito de “direito civilizatório mínimo” é apenas o direito previdenciário, mas não o trabalhista, como por exemplo o direito ao salário mínimo.  E, mais, que esse “direito civilizatório mínimo”, para ser assegurado, depende essencialmente do trabalhador se inscrever e contribuir, as empresas não precisam fazer nada! É como prometer: “trabalhadores uberizados, se querem direitos civilizatórios mínimos, paguem do próprio bolso. Se assim não for, nós do Poder Judiciário não podemos fazer nada. Sinto muito”.

É realmente espantoso, para mim, que a presidente do TST não tenha afirmado, com todas as letras e com toda a veemência necessária para a função que ocupa, que os direitos trabalhistas, previstos no art. 7º. da Constituição, são sim “direitos civilizatórios mínimos” da classe trabalhadora. Se não forem assim considerados, então, de fato, nem precisamos de Justiça do Trabalho.

A ministra Maria Cristina Peduzzi também faz afirmação inusitada ao dizer que, mesmo na qualidade de autônomos, os uberizados teriam direito à limitação das horas de trabalho: “jornada de trabalho também é importante. Ninguém pode, porque é autônomo, trabalhar além do horário compatível com a sua saúde”.

Pergunta-se à presidente do TST: se o trabalhador uberizado é “autônomo” e não pode trabalhar determinada quantidade de horas a ponto de “prejudicar sua saúde”, qual marco legal e seu respectivo mecanismo de enforcement é concebido em nosso sistema para evitar essa prorrogação excessiva de jornada? É o regime de relação de emprego, não há outro.

Afinal não existe “poder de polícia de trabalho autônomo” porque não há um aparato legal para limitar esse tipo de labor – justamente porque ele seria, em tese, desempenhado com a autonomia típica da liberdade individual. E quando os trabalhadores entraram com ações na Justiça do Trabalho pedindo horas extras, o TST (em decisões aludidas pela Ministra na entrevista) decidiu que eles não teriam direito a isso porque não são empregados…

Então o que a ministra está afirmando é algo assim: “trabalhadores uberizados, vocês têm direito a uma jornada mínima, mas caso não cumprida nós do Poder Judiciário nada podemos fazer. Sinto muito.”

Mas as contradições não pararam por aí. Em outro trecho, a ministra sustenta que eventuais direitos trabalhistas dos uberizados teriam que ser conquistados por negociação coletiva, uma solução que teria sido introduzida pela Reforma Trabalhista:  “os acordos e as convenções coletivas foi o grande instrumento que a Reforma Trabalhista, digamos, incentivou; estes, independentemente de haver ou não vínculo de emprego, é que devem estabelecer todos esse sistema protetivo equivalente, nas situações onde não houver o vínculo de emprego típico.”

Não encontrei em nenhum dispositivo da Lei 13.467/17 norma inovadora que tenha permitido negociação coletiva de trabalhadores autônomos, para que o vínculo seja reconhecido ou para que direitos trabalhistas lhes sejam atribuídos.

Mas superado esse óbice legal, caso as empresas se recusem a negociar, a Justiça do Trabalho vai acolher o dissídio coletivo? O TST tem jurisprudência pacificada (RO 5712-07.2009.5.01.0000) afirmando que não cabe dissídio de sindicato representativo de trabalhadores autônomos. Então, continua-se a andar em círculos: “trabalhadores uberizados, se querem direitos, negociem com as empresas e caso elas se recusem, não podemos fazer nada. Sinto muito”.

Além disso, a existência de vínculo de emprego emana de uma norma de ordem pública inderrogável por instrumento coletivo, tanto assim é que o art. 611, B, inc. I, veda negociação para alterar condições do contrato que devem constar da CTPS.  Ao dizer que direitos trabalhistas de uberizados devem ser fixados por negociação coletiva, a presidente do TST trata esse relevante conflito social como se fosse um assunto a ser resolvido por particulares, sem intervenção do Estado.

O TST, a seguir a atual tendência, que o coloca em posição de enorme atraso intelectual em relação a cortes estrangeiras congêneres, parece não perceber que subjacente ao fenômeno da uberização está a própria sobrevivência do Direito do Trabalho.

Se a Justiça do Trabalho não formar jurisprudência consistente em reconhecer os direitos trabalhistas constitucionais aos uberizados, creio que estará caminhando para a irrelevância ou até mesmo para fechar as suas portas. Com suas próprias mãos conseguirá o que, até hoje, o legislativo e o executivo tentaram em vão.

Cassio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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