Por que todo estudante de direito deve conhecer o caso Lochner v. Nova York?

Fotografia: Wikimedia Commons

Decisão de 1905 da Suprema Corte dos EUA é um marco na história do direito constitucional.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 02/05/2022

Atendendo a um honroso convite da professora Ana Beatriz Robalinho, ministrei uma aula online para alunos da UnB, em uma disciplina de direito constitucional dos Estados Unidos. O tema era o caso Lochner v. Nova York, julgado pela Suprema Corte em 1905. Ao iniciar a aula, fiz uma breve reflexão sobre a importância, para os alunos de direito, de conhecer esse que é um dos mais célebres julgamentos daquele tribunal. Compartilho com o leitor do JOTA essas breves reflexões.

Não importa se você gosta de direito privado ou de direito público; se você advogará para corporações ou defenderá os direitos humanos; se você quer ser um especialista em um nicho como direito do petróleo ou direito urbano, ou se pretende ser um professor generalista ensinando teoria geral do direito. Em qualquer dessas áreas é recomendável que você conheça e estude o caso Lochner v. Nova York, um dos mais importantes julgamentos da mais antiga e tradicional corte constitucional do mundo, a Suprema Corte dos EUA.

Resumidamente, neste julgamento, a Suprema Corte, invocando a cláusula do devido processo legal substancial da Décima Quarta Emenda, declarou inconstitucional uma lei de Nova York que limitava a jornada de trabalho dos padeiros em dez horas diárias, ao argumento de que esta norma violava a liberdade de contrato. Apesar de aparentemente trivial, o julgamento é fundamental para a compreensão dos dilemas que envolvem o debate jurídico contemporâneo e, em especial, a jurisdição constitucional. Arrolo aqui seis motivos pelos quais o conhecimento desse caso é essencial para a boa formação jurídica de um estudante de direito.

  1. O caso Lochner v. Nova York (1905) está em qualquer lista dos julgamentos mais importantes da Suprema Corte dos EUA. Bernard Schwartz, o maior historiador daquele tribunal, o incluiu dentre os cinco mais relevantes julgados nos 233 anos da corte, ao lado de Marbury v. Madison, Dred Scott v. Sanford, Brown v. Board of Education e Roe v. Wade. A decisão definiu os rumos do direito constitucional americano em boa parte do século 20 (inclusive e principalmente em relação aos que o contestaram com veemência), sendo responsável por definir a jurisprudência daquele tribunal em matéria econômica durante décadas, afetando o próprio equilíbrio entre Legislativo, Executivo e Judiciário ao longo do século 20, com repercussões que perduram até os dias de hoje.
  2. O grande debate por trás do caso Lochner retrata o maior dilema do direito após o advento da Revolução Industrial, que remanesce até hoje: até que ponto e em quais circunstâncias o Estado deve intervir nas relações privadas de um sistema capitalista? Como demarcar, em atenção às necessidades da economia e de uma sociedade justa e equilibrada, os limites entre o direito público e o direito privado? O caso Lochner envolve, portanto, não apenas as teorias sobre direito, mas as próprias concepções econômicas que as conformam.
  3. O caso Lochner surge no alvorecer do Estado Administrativo, responsável pelo aparecimento do poder de regulação das atividades econômicas produtivas no sistema capitalista. O tamanho do Estado Administrativo, seu modelo, funções e limites decorrem de opções legislativas, executivas e judiciais que moldaram e ainda moldam o debate político ao longo do último século e meio. Há, portanto, uma clara interface do julgamento com o estudo das teorias políticas que dominam o debate público desde o início do século 20, até os dias de hoje, especialmente na contenda liberalismo versus social democracia.
  4. O caso Lochner suscita até hoje questionamentos fundamentais à hermenêutica constitucional. Como os juízes de uma corte constitucional devem interpretar uma norma constitucional em face de condições cambiantes da realidade? A intenção original dos redatores de um texto constitucional deve ser prestigiada? Os juízes podem aplicar suas concepções ideológicas para resolver conflitos constitucionais? A “razoabilidade” da norma infraconstitucional pode ser aferida sem descambar para a mera discricionariedade? O devido processo legal substancial pode ser um critério seguro de hermenêutica constitucional? São questões que atormentam qualquer operador do direito diante de casos difíceis de controle de constitucionalidade.
  5. Um dos temas mais relevantes do direito constitucional no século 21 é o “ativismo judicial”. O caso Lochner é reconhecido por grande parte da doutrina (no Brasil e nos Estados Unidos) como um caso clássico de ativismo judicial conservador, que provocou efeitos deletérios, ao retardar o desenvolvimento da legislação social nos Estados Unidos por mais de 30 anos, com efeitos diretos sobre a distribuição de riqueza no país. A decisão comporta altos debates sobre o grau de deferência ao legislador que os juízes devem ter, quais os limites da intervenção judicial diante de disputas políticas legítimas e como evitar o excesso de poder do Judiciário diante dos demais ramos do poder em um sistema de freios e contrapesos. O voto vencido do juiz Oliver Wendel Holmes Junior, por muitos considerado como a mais culta e sábia divergência da história da Suprema Corte, oferece muitas pistas, úteis e válidas para os dias que correm.
  6. Por fim, o caso Lochner é fundamental para se compreender a própria existência e razão de ser do direito do trabalho, a partir, sobretudo, de sua própria ontologia: como equilibrar as forças produtivas do capitalismo industrial em face das necessidades da classe trabalhadora, sobretudo em circunstâncias de grande concentração empresarial, como, aliás, se verifica nos dias que correm? Ao contrário do que muitos pregam, o caso Lochner mostra a atualidade e importância do direito do trabalho no século 21, pois o debate capital/trabalho, na sua essência, segue sendo exatamente o mesmo do início do século 20.

Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022).

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