Os direitos sociais sem futuro e a regeneração da solidariedade

Legenda

Recuperar o sentido da solidariedade de uma forma mais ampla: transformar o mito generoso da solidariedade proletária numa “real política” do internacionalismo democrático, em defesa dos direitos sociais conquistados progressivamente desde o Século XVIII.

Tarso Genro

O processamento da política nos dias que correm está praticamente autorizado por uma lógica (ou uma dialética política, se quisermos) cujos novos modos de reprodução estão centrados no movimento desordenado do “dinheiro sem produção”. Tal qual foi concebido por Bobbio, ao longo da sua obra, a melhor e a máxima possibilidade de uma constituição democrática, para ser coerente com a sua hipotética “norma fundamental”, seria vincular o método democrático de composição da ordem com suas premissas. E estas premissas, com as normas infraconstitucionais.

A questão do “futuro” dos direitos sociais está submetida à continuidade ou não, dos avanços do poder do capital financeiro sobre as decisões dos Estados, no que diz respeito aos bloqueios da organização funcional de um Estado Social que consiga, nos seus níveis distintos de legitimação, um amplo consenso social. A reversão destes “bloqueios”, todavia, depende – de uma parte – da possibilidade das forças do trabalho organizarem uma resistência à supressão dos seus direitos, que ocorreram nos últimos 5 anos e – de outra – dos juristas do Estado Social demonstrarem capacidade, no plano do direito, de compor uma nova escala de valores, tanto no campo da hermenêutica constitucional, quanto na legislação específica do mundo do trabalho.

Em 1996, há quase três décadas, publiquei um texto cuja denominação era A Crise do Sindicalismo Urbano e a Regeneração da Solidariedade” [1], no qual eu dizia que “as mudanças (…)  principalmente nos  últimos vinte anos,  aumento crescente no setor de serviços, globalização acelerada, dissolução do velho conceito de Estado Nacional, informatização/robotização(…), mudança estrutural nas categorias profissionais, horizontalização e terceirização do processo produtivo, criação de tecnologias de serviços no âmbito doméstico (….) radicalizaram a separação da sociedade formal em relação à informalidade e levaram o movimento sindical (…) a uma crise sem precedentes.” (…) “É uma época que pela velocidade das suas transformações, não só se torna “estranha ao Direito que a rege”, mas (…) que sofreu alterações qualitativas importantes” ( …): “a perda da credibilidade das Constituições que garantem direitos sociais e a cultura das “virtudes do egoísmo” dominou o cenário”. (…) no qual os dominados ainda não encontraram novos caminhos (…), vazio que permitiu que o capital se apropriasse da crescente produtividade originária da terceira revolução científico-tecnológica”(…) e que emergisse “o tribalismo e o nacionalismo fascista, ressurgido em inúmeros países decorrentes, contraditoriamente, do estranhamento com a referida globalização(…)”.

A articulação global das agências financeiras, públicas e privadas, com as agências de risco, as bolsas de valores e os governos neoliberais, conseguiram reduzir a “força normativa” que faz a razão o poder constituinte [2] – dentro da própria ordem formal do Estado Social, que dele resultou. Os direitos sociais, mesmo nos Estados mais democráticos e “garantistas”, nunca tiveram um suporte eficaz na infra constitucionalidade do Estado capaz de reduzir os efeitos sociais negativos das novas tecnologias, sobre o mundo do trabalho, diferentemente do que ocorreu nos 30 anos “gloriosos” pós 2ª guerra, nas experiências social democratas europeias.

Para ser eficaz, o novo e eficaz ordenamento protetivo laboral  deverá estar assentado, então, sobre o Estado presente, dialogando com as mudanças reais já determinadas pelos novos elos de dominação, inclusive, no que refere à novas tecnologias informacionais e infodigitais de controle do trabalho pelo resultado. Estes novos ordenamentos devem ser fortes, para serem capazes de desenterrar os fundamentos modernos da “epopeia” social democrata do início do século passado, que estão sendo soterrados como “capital subjetivo morto”, hoje já ensejado pelo avanço da comunhão do fascismo com ultraliberalismo pervertido. 

Assim, o poder constituinte como poder básico originário, da hipótese de Kelsen, deve pressupor a norma que “atribua (seu surgimento) ao poder constituinte (para ter) a faculdade de produzir normas jurídicas: essas normas estariam assentadas numa fundamental (…) norma ao mesmo tempo atributiva e imperativa, segundo se considere do ponto de vista do poder ao qual dá origem ou da obrigação que dele nasce. E pode ser formulada da seguinte maneira: “o poder constituinte está autorizado a estabelecer normas obrigatórias para toda coletividade” ou “a coletividade é obrigada a obedecer às normas estabelecidas pelo poder constituinte”(..)”. A obrigação da coletividade em obedecê-las, todavia, é diretamente proporcional ao consenso que elas geram no meio social a uma certa hegemonia política e cultural, à capacidade do Estado fazer respeitá-las, para que as normas sejam legitimadas no próprio consumo social dos seus conteúdos, pela aceitação que elas geram. Eis o terreno de ação intelectual e moral dos juristas do Estado Social.

Como foi estruturada materialmente essa “fundamentalidade” na época social democrata de formação do Estado Social? No Brasil, parece que ela ainda é uma promessa. Considerando a existência evidente de relevante interesse coletivo, a intervenção do Estado está autorizada expressamente pela nossa Constituição. O artigo 170, que abre o Título VII, dedicado à ordem econômica, estabelece que ela “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” e consagra entre os seus todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” e consagra entre os seus de princípios “VIII – a busca do pleno emprego”. E o artigo 173 autoriza a exploração direta de atividade econômica para atender a “relevante interesse coletivo”[3].

No sistema constitucional italiano, em que o princípio da solidariedade é um critério fundamental de interpretação da Constituição, foi estabelecido que: “a República reconhece a garantia dos direitos invioláveis do homem, seja como indivíduo, seja nas formações sociais onde se desenvolve a sua personalidade e exige o cumprimento dos inderrogáveis deveres de Solidariedade política, económica e social”. 

Veja-se que esta formulação do princípio constitucional da solidariedade é única no direito constitucional comparado, o que obrigou que a doutrina constitucional italiana desenvolvesse uma forma pelo menos quantitativamente mais ampla, do que a de outros países europeus.” [4] Mas lá também isto vem morrendo, com a ferrugem global que o capital financeiro impõe aos direitos humanos em geral e ao Estado Social na sua totalidade concreta.Foi-se o tempo, também, em que as questões mais importantes de uma sociedade medianamente democrática poderiam decidir seus problemas mais graves de maneira isolada dos contextos internacionais aos quais elas estão inseridas. As transnacionalidades econômicas e culturais, as dissoluções das diferenças entre o interno e o externo –  ligados através do controle que os países mais ricos exercem sobre a dívida pública dos estados mais pobres – ligam os destinos de um, ao destino de todos. Isso implica recuperar o sentido da solidariedade de uma forma mais ampla: quem sabe transformar o mito generoso da solidariedade proletária numa “real política” do internacionalismo democrático, em defesa dos direitos sociais conquistados progressivamente desde o Século XVIII. Temo que, se isso não ocorrer, a unidade perversa do fascismo com a lumpemburguesia[5] dos países periféricos, saberá construir a milícia do desastre final do liberal-democratismo em crise. E tudo será pior sem ele.

Notas

[1] GENRO, Tarso. A CRISE DO SINDICALISMO URBANO E A REGENERAÇÃO DA SOLIDARIEDADE.  CAMARGO COELHO & MAINERI S/C ADVOGADOS TRABALHISTAS ASSOCIADOS. Porto Alegre, 1996, p.2-6. (texto revisto na sua forma).

[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Trad.Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos; Ver.téc.Claudio de Cicco; apres. Tércio Sampaio F.Junior. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª ED., 1999, p.58-59

[3] COELHO, Rogério Viola. Diretrizes para um projeto de um novo Estado Social fundado no direito. In:  Genro, Tarso. et tal. Estado Social do Trabalho e do Empreendimento: ensaios e propostas.Porto Alegre: Editora Libretos,2022, p.20.

[4] MARTÍN, Carlos de Cabo. Teoría constitucional de la solidaridad. Madrid: Marcial Pons, 2006, p.58

[5] Termo de inspiração marxista que se aplica a setores da burguesia de países periféricos ou colonizados (comerciantes, advogados, industriais, etc.) que se associam, de maneira subalterna ou dependente, à burguesia dos países centrais, fortalecendo as relações de dependência em relação a esses países.

Tarso Genro é advogado, ex-prefeito de Porto Alegre, ex-governador do RS e ex-ministro do Governo Lula.

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