O Tribunal Superior do Trabalho e a insustentável doutrina da “greve política”

Regiane de Moura Macedo e Alexandre Henrique Podadera De Chiara

Fonte: Conjur
Data original da publicação: 18/02/2019

No último dia 11, a Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho proferiu decisão em que considerou abusiva a greve contra a privatização de empresas do sistema Eletrobras, deflagrada em junho de 2018. Abrindo a divergência que acabou vencendo a sessão, o ministro Ives Gandra afirmou que “não cabe discutirmos greve quando não está em jogo um conflito entre empresa e trabalhadores, mas entre trabalhadores e governo”[1], julgando abusiva a greve de trabalhadores contra a privatização de empresas estatais, por considerá-la política.

O centro da argumentação reside na compreensão de que a greve, como instituto jurídico, somente é oponível face ao empregador, devendo restringir-se a reivindicações econômicas e sociais imediatas, pertinentes ao contrato de trabalho.

Partindo de uma leitura estritamente dogmática, temos que, ao contrário do posicionamento expresso no voto divergente, que acabou vencendo a sessão, o ordenamento pátrio não impõe a restrição criada pelo TST à pauta grevista. O artigo 9º da Constituição Federal é enfático em preconizar que “é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.

Trata-se um direito assegurado no título II da Constituição da República, pertinente aos direitos e garantias fundamentais, de modo que a hermenêutica jurídica em relação ao alcance do direito de greve é, mesmo sob o ponto de vista legal, norteada pela busca da maior efetividade, não cabendo, então, interpretação restritiva, quiçá inovação de seus termos.

A questão foi enfrentada outrora pelo Supremo Tribunal Federal[2], posicionando-se no sentido de que a Constituição da República não impôs restrições quanto ao tipo de greve, bem como pelo próprio Tribunal Superior do Trabalho[3], que entendeu que não poderia considerar como política a paralisação de funcionários de um banco contra a mudança de estrutura e natureza jurídica da instituição, porque, ainda que indiretamente, seria uma greve trabalhista.

Ademais, a Comissão de Peritos em Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho, em diversos verbetes, tem admitido a viabilidade da greve política, e sua compatibilidade com os primados da liberdade sindical[4].

Tendo em vista que o artigo 1º da lei maior brasileira consagra o valor do trabalho como um valor social que fundamenta o Estado Democrático de Direito, a interpretação necessária a respeito do texto legal é que a greve é permitida mesmo fora dos limites do “econômico”. No âmbito do “político” também pode haver a desvalorização social do trabalho. E, numa perspectiva histórica, não podemos nos furtar em registrar que a carta maior é fruto do processo de redemocratização da sociedade brasileira, fortemente marcada pelos conflitos classistas que originaram o novo sindicalismo. As conquistas democráticas e trabalhistas ali impressas foram forjadas nas dezenas de dias de greves, assembleias plebiscitárias, congressos, seminários, reuniões clandestinas, todas realizadas pela resistência operária e conquista da consciência de classe, ao largo da legislação que então cristalizava os pressupostos do regime militar ditatorial.

As greves metalúrgicas de 78/80, que inauguraram uma etapa de reorganização da classe trabalhadora brasileira, denunciaram a falácia presente na separação arbitrária entre o político e o econômico, Estado e sociedade civil, fundamento que conduz a doutrina e jurisprudência a aceitar e reproduzir o entendimento de que a liberdade sindical somente tutelaria a greve econômica/profissional. As greves metalúrgicas de 78/80 foram desencadeadas pelo enfrentamento do arrocho salarial, sentido na pele pelo operariado do ABC paulista. Sua causalidade imediata foi a luta contra a superexploração e a identificação dos trabalhadores de que o motivo da greve se encontrava inevitavelmente na relação capital x Estado. As greves logo se converteram em uma luta que questionou a políticaeconômica do Estado ditatorial, demonstrando, na prática, que não existe luta econômica divorciada da luta política, e que não há luta política divorciada da luta econômica[5].

Esse ponto é bastante explorado na obra do sociólogo americano Michael Burawoy[6], que aplica a ideia de Política da Produção para identificar e analisar a dimensão política das relações de produção, tanto dentro quanto fora do ambiente de trabalho. Como um dos organizadores da vida social, o próprio ato de trabalhar está envolvido direta ou indiretamente nos inúmeros atos do cotidiano, como o traçado das linhas de transporte público, ou as competências ensinadas nas escolas — e suas transformações.

Refletindo o processo riquíssimo que marcou a reorganização da classe trabalhadora brasileira, não sem disputa com as forças conservadoras, os trabalhadores conquistaram o direito de greve sem as restrições criadas pela jurisprudência e pela doutrina.

Não se pode sustentar, portanto, que a restrição imposta ao direito de greve, por mera atividade interpretativa, encontra qualquer respaldo constitucional. Essas restrições foram afastadas pelo constituinte originário, não podendo ser impostas por lei ordinária, tampouco por atividade interpretativa, ainda mais se tratando de direito fundamental, cuja interpretação, reitere-se, deve ser extensiva.

Ademais, além da expressa previsão do artigo 9º da Constituição, sem grande esforço hermenêutico podemos concluir que as greves motivadas por razões outras que não especificamente reivindicações oponíveis aos empregadores e traduzíveis em normas autônomas, encontra guarida no disposto pelos artigos 1º, III, IV, 3º, III, 5º, II, IV, XVI, XVII, XXIII da Constituição Federal.

Passado esse ponto, gostaríamos de propor mais algumas reflexões, em nosso sentir centrais, a respeito do núcleo argumentativo da decisão do TST deste mês, especialmente quanto à caracterização da greve como política, e o significado do julgado.

A intenção dos grevistas foi barrar a tramitação de projetos que tratem da privatização da Eletrobras: o Projeto de Lei 9.463/18, que trata da desestatização da Eletrobras; o Decreto 9.188/2017, sobre desinvestimento das empresas de economia mista, e o PL 1917/2015, que abrange a portabilidade da conta de energia.

Via de regra, privatizações impactam a vida dos trabalhadores, representando demissões, precarização e aumento do custo de vida.

No caso, o fato é ainda mais preocupante, em primeiro lugar porque se trata de uma empresa de grandes proporções, que contém quantia de funcionários que deve ser capaz de manejar 47 hidrelétricas, 114 termelétricas, 69 usinas eólicas e duas usinas nucleares. A empresa possui, ainda, 70 mil km de linhas de transmissão e detém 10% do mercado de distribuição.

Em segundo lugar porque a privatização das empresas estatais é acompanhada, ainda, pela terceirização dos postos de trabalho, situação que em nenhum aspecto traz melhorias nas condições sociais dos trabalhadores brasileiros, não só pela fragilidade de direitos, mas pela precarização das condições de trabalho. Pesquisas demonstram que os trabalhadores terceirizados recebem os menores salários, possuem maior rotatividade nos postos de trabalho, menos acesso à proteção previdenciária e social e, sobretudo, são as maiores vítimas de acidentes de trabalho, especialmente acidentes fatais[7], o que é corroborado pelo sociólogo Ricardo Antunes, que alerta que a privatização do setor elétrico brasileiro indubitavelmente coloca em risco a vida dos trabalhadores, dada a natureza altamente periculosa do trabalho[8].

Não podemos nos furtar a mencionar os desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). São centenas de trabalhadores mortos, danos incalculáveis ao meio ambiente. Os eventos têm estreita ligação com a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, a Vale, em 1997, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, já que desde então o interesse público é subordinado aos interesses privados e econômicos de seus acionistas.

Enfim, o argumento de que a greve contra a privatização de empresas estatais não expressa um conflito trabalhista é absolutamente inócuo. A privatização atinge primeiramente as relações de trabalho, como demonstrado, de modo que é absolutamente legítima a resistência dos trabalhadores contra sua adoção e efeitos, através de seu instrumento máximo, a greve, o único capaz de resistir ao arbítrio do poder econômico que se encontra especialmente vinculado ao poder político. Aliás, buscar argumentos para impedir uma greve pela separação entre o poder político e o econômico, declarando-se abusiva a que possui caráter “político”, é o maior exemplo da separação liberal e arcaica entre sociedade civil e Estado, em face da qual o jurista e filósofo Bernard Edelman já criticava na década de 1960 na França ao tratar das teorias de abuso da greve. Tal como o TST em nosso dias, essas teorias que preconizavam a cisão entre separação entre profissional e econômico criaram na realidade uma tautologia que confinara as lutas de classe na legalidade burguesa, no “não político”, como se o poder político não fosse também um poder do capital. Lindo, não? — ironizava Edelman a respeito dessas teorias. O capital não é “responsável” por sua política, não é “responsável” por seu Estado[9]!

Ora, numa sociedade organizada a partir da mercantilização da força de trabalho, é falaciosa e artificial a cisão entre o político e o econômico sugerida pelo voto divergente do ministro Ives Gandra. Essa cisão absurda, como leciona Edelman, instrumentaliza a subtração da classe trabalhadora do único instrumento de disputa política que lhe é próprio, a greve[10].

Esse argumento de proibição da greve política resulta da concepção meramente contratualista das relações de trabalho. Os juristas reconhecem o trabalho como manifestação de relações privadas, atribuindo-lhe o sentido de profissional, em oposição ao político, traduzindo a distinção nuclear e constitutiva do poder político do capital, a distinção entre sociedade civil e Estado. A distinção se traduz na cisão entre a figura do trabalhador e a figura do cidadão, como se ambos não fossem a mesma pessoa. Ao trabalhador, adstrito às relações privadas, cabe atuar na esfera econômica, enquanto, ao cidadão, compete à “participação política”. Aos trabalhadores, enfim, imersos no “apolítico” mundo das relações contratuais de trabalho, somente é permitida a luta econômica.

“Pudemos perceber: a política, para o direito, é o fundamento das instituições constitucionais, o que exclui a classe operária enquanto classe, e a transforma em uma soma de cidadãos. E pudemos perceber o que escondia a distinção profissional/político: a proibição legal ao trabalhadores de considerar a luta ‘econômica’ uma luta ‘política’” (Op. Cit. Pag. 59).

A incursão no tema, a partir de sua materialidade, traz à luz o cerne do debate sobre o Direito e as instituições no capitalismo. O voto suscitado pelo ministro Ives Gandra leva à terra a aludida imparcialidade do Poder Judiciário. Desnuda a dinâmica da luta de classes, força motriz dessa sociedade. O Estado revela-se, mais uma vez, mero gestor dos interesses do grande capital.

Notas:

[1] http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24793939

[2] “A Constituição, ao dispor sobre os trabalhadores em geral, não prevê limitação do direito de greve: a eles compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela defender. Por isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve.” (MI 712, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007, DJe-206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL02339-03 PP-00384).

[3] “Em tal contexto, é óbvio que a mudança na estrutura do Banco interessa e muito aos empregados, pois não se cuidará de uma mera troca de empregadores, mas de alteração da própria natureza jurídica do Banco, tendo em vista que o empregado deixará de fazer parte da administração pública indireta para se vincular a um empregador privado, cuja política de pessoal costuma ser menos favorável ao trabalhador. Tais fatos demonstram o legítimo interesse dos empregados em discutir esse processo e procurar formular reivindicações para protegê-los. Nesse contexto, a greve deflagrada não tem nenhum caráter político, e sim trabalhista, estando autorizada, em consequência, pelo art. 14, parágrafo único, II, da Lei de Greve” (TST-RODC 781712 DJ – 23/04/2004 Relator José Luciano Castilho Pereira).

[4] 527. As organizações responsáveis pela defesa dos interesses socioeconômicos e profissionais dos trabalhadores deveriam, em princípio, poder recorrer à greve para apoiar suas posições na busca de soluções para os problemas criados pelas grandes questões de política econômica e social que tem consequências imediatas para seus membros e para os trabalhadores em geral, especialmente em matéria de emprego, de proteção social e de nível de vida. (Ver Recompilação de 1996, parágrafo 480; informe 305º, caso n. 1870, parágrafo 143; informe 320º, caso n. 1865, parágrafo 526, caso 2027, parágrafo 876; informe 336º, caso n. 2354, parágrafo 682; e informe 337º, caso n. 2323, parágrafo 1039)
531. O direito de greve não deveria limitar-se aos conflitos de trabalho suscetíveis de terminar numa determinada convenção coletiva: os trabalhadores e suas organizações devem poder manifestar, caso necessário, num âmbito mais amplo, seu possível descontentamento com questões econômicas e sociais que guardem relação com os interesses de seus membros. (Ver Recompilação de 1996, parágrafo 484; informe 300º, caso n. 1777, parágrafo 71; e informe 320º, caso n. 1865, parágrafo 526)
542. A declaração de ilegalidade de uma greve nacional de protesto pelas consequências sociais e trabalhistas da política econômica do governo e sua proibição constituem grave violação da liberdade sindical. (Ver Recompilação de 1996, parágrafo 493)
O Direito coletivo, a liberdade sindical e as normas internacionais: volume II / revisão técnica Sandro Lunard Nicoladeli e Tayana Sheila Friederich – São Paulo: LTr, 2013. Título original: La libertad sindical OIT.

[5] Sobre o tema, destacamos os trabalhos A Rebeldia do Trabalho: O confronto Operário no ABC Paulista: As Greves de 1978/80, São Paulo: Ensaio: Campinas, SP: Editora Universidade Estadual de Campinas, 1988 e O Novo Sindicalismo no Brasil, 2 ed. rev e ampl, Campinas, SP: Pontes, 1995, todos de Ricardo Antunes. Destacamos o ensaio O Novo Sindicalismo no Brasil: “É importante adicionar, também, que esta causalidade econômica, motivadora de enorme volume dentre as greves desencadeadas nesta década, é constantemente permeada de significativa e imediata dimensão política. Este é outro traço distintivo de nossas lutas sociais: como as greves, ao reivindicarem melhores salários, fim do arrocho e da superexploração, tocam no pilar que fundamenta a política econômica vigente, em especial a sua especificação salarial, esta luta acaba assumindo uma forma de confronto político (mais ou menos intenso, em decorrência da greve, do setor que ela ocorre, do papel deste setor no processo de valorização do capital etc).”— pág. 25.

[6] BURAWOY, Michael. A transformação dos regimes fabris no capitalismo avançado.Revista Brasileira de Ciências Sociais. No 13. ANPOCS: 1990.

[7] Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha: / dossiê acerca do impacto da terceirização sobre os trabalhadores e propostas para garantir a igualdade de direitos / Secretaria. Nacional de Relações de Trabalho e Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. – São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2014.

[8] Ricardo Antunes. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018. pag. 160.

[9] A legalização da classe operária. Coord. Tradução Marcus Orione. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. pag. 52.

[10] A legalização da classe operária. Coord. Tradução Marcus Orione. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. pag. 49 -59.

Regiane de Moura Macedo é advogada e mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Integra o Núcleo de Estudos sobre Teoria e Prática de Greve no Direito Sindical Brasileiro Contemporâneo – NetepGreve e o DHCTEM (Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo).

Alexandre Henrique Podadera De Chiara é advogado, mestrando em Direito do Trabalho e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Teoria e Prática de Greve no Direito Brasileiro Contemporâneo e pesquisador do DHCTEM (Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo).

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