Dentro da produção cinematográfica dos últimos dez anos, analiso alguns dos filmes que melhor ilustram as dinâmicas que afetam mais drasticamente a vida dos trabalhadores na atualidade. Entre estas, destaco – a financeirização que tomou conta do capitalismo, o desemprego e o subemprego (inclusive nos novos formatos do pseudo auto-empresariamento) e as novas tecnologias que estão expandindo o espaço de atuação de robôs e inteligência artificial.
Glaúcia Campregher
O mundo do trabalho interessa ao cinema desde “Empregados deixando a Fábrica” de Lumière, a primeira exibição da história. Desde então, inúmeras produções (vou citar as minhas preferidas) acompanham os dramas vividos por grupos e indivíduos nas minas (“Como era verde o meu vale” de John Ford), fábricas (“A classe operária vai ao paraíso” de Elio Petri), fazendas (“Vinhas da ira” também de Ford), escritórios (“O sucesso a qualquer preço” de James Foley), igrejas (“Entre Deus e o Pecado/Elmer Gantry” de Richard Brooks), moda (“O diabo veste Prada” de David Frankel), limpeza (“Pão e rosas” de Ken Loach) e em tantos outros espaços como hospitais, tribunais, gabinetes políticos, imprensa, e a própria indústria do cinema.
Além do interesse do público em geral, este tipo de produção cinematográfica voltada ao trabalho ganhou também a academia e há variados estudos a esse respeito[1], sendo que atualmente o uso de data science tem prometido nos dar elementos para responder perguntas como – quantos filmes foram realizados quando, onde e por quem sobre este tema (e subdivisões dele), por quantos foram vistos, quanta atenção ganharam na mídia e em outros espaços públicos, etc, de modo a podermos comparar épocas, entendimentos, significados e mesmo repercussões destes filmes nas lutas dos trabalhadores.
O uso de um estudo assim poderia ajudar na tarefa de mostrar como (e qual) cinema , oriundo de que país, com que tamanho de orçamento, com que viés de autor, entre outros fatores, retratou os dramas dos trabalhadores nos últimos dez anos. Mas o que proponho não requer este rigor e detalhamento. Até por limitações profissionais, proponho uma reflexão política mais que científica ou artística. Intento identificar e analisar uns poucos filmes que aprofundaram pontos nevrálgicos da realidade atual dos trabalhadores mundo afora, e da nossa particularmente.
As questões centrais a que me refiro, e seus referidos filmes são: i) o processo de financeirização da riqueza que deu lugar a grande crise de 2008 e que chegou ao cinema com vários filmes nos anos seguintes por motivos óbvios (“Lobo de Wall Street”/2013 de Martin Scorsese; “Trabalho interno”/2013 de Carles Ferguson; “O capital” de Costa-Gravas/2013; “A grande aposta”/2015 de Adam McKay; “A lavanderia”/2019 de Steven Soderberg); ii) o fenômeno do desemprego e do subemprego em suas formas antigas e na sua forma atual ainda mais perversa (“Amor sem escalas”/2010 de Jason Reitman; “Que horas ela volta?”/2015 de Anna Muylaert; “Parasita”/2019 de Bong Joon-ho; “Eu, Daniel Blake”/2016 e “Você Não Estava Aqui”/2019 de Ken Loach; “7 prisioneiros”/2021 de Alexandre Moretto; “Nomadland”/2021 de Choé Zhao); e iii) os robôs e a inteligência artificial, que cada vez são menos parecidos com a velha “ficção científica” trazendo muito ansiedade sobre o que será que nos sobrará como trabalho no futuro (“Ela”/2013 de Spike Jonze; “Ex machina”/2015 de Alex Garland; “Blade Runner 2049″/2017 e “Dune”/2023 de Denis Villeneuve).
Financeirização
Nós, economistas, chamamos de financeirização da riqueza a preponderância das finanças no processo de acumulação capitalista dos anos 80 para cá. Por mais complexo que seja este tema, é incrível como muitos filmes, particularmente depois da crise de 2008, tomaram a si o trabalho de explicá-lo didaticamente aos seus espectadores, inclusive do ponto de vista do “trabalho” objetivo que executam os que operam a máquina financeira. Em “O lobo de Wall Street”, vemos o (anti)”herói” da história (baseada em fatos reais) operar como enganador numa escala jamais vista em vendedores comuns, ou mesmo vendedores de papéis em bolsas. O negócio das bolsas é vender apostas e isso não seria tão ruim se estas tivessem por base tão somente perspectivas realistas e históricas das empresas e exigissem uma permanência mínima do apostador. Este filme mostra, sem precisar explicar a mecânica do processo, que o fundamental é vender “gato por lebre” – no caso, papéis de baixo valor a gente desavisada.
Na real, “o lobo” só fez antecipar o que anos depois todos fariam e que acabou por levar à crise de 2008 – quando o tal subprime (papéis de baixo valor ligados ao setor imobiliário) foram misturados com outros e vendidos como se seguros fossem, como bem mostrado em “Trabalho interno” e “A grande aposta”. “Trabalho interno”, até porque é um documentário, mostra o fazer dos vendedores de apostas, dos bancos intermediários, e ainda dos agentes públicos e cientistas (economistas) que dão sustentação legal e ideológica a todo o negócio. Mas a melhor explicação da dinâmica toda do negócio está em “A grande aposta” (também baseado em fatos reais). Ali,o conjunto da operação que tem lugar desde o aparecimento dos “mercados de futuros”, da expansão dos chamados “derivativos”, da “securitização” (hedges) e proteção (swaps) das apostas, e de tudo o que permite que a antecipação de resultados se torne manipulação de expectativas para que estes se confirmem, fica melhor representado. Vemos os agentes – vendedores de papéis que operam na ponta, operadores de seguros e auditorias para as firmas (bancos, corretoras, gestoras de fundos) no meio, reguladores que não regulam em cima e consumidores ludibriados na ponta oposta, embaixo. Curiosamente, neste filme, até parece que há “mocinhos” na história – o matemático genial, o banqueiro tradicional, o funcionário menor da firma maior, o apostador crítico aposentado e os jovens ambiciosos mas com caras de “do bem” – mas não disfarça que estes estão ali tão apenas para ganhar apostando contra o sistema que perceberam que vendia “gato por lebre”, em uma escala exageradamente perigosa. Talvez eles sejam considerados mocinhos porque ao menos apostam na verdade. Pois é, a financeirização aposta em tudo, até na verdade…
Não devemos, contudo, olhar para “a banca” (o mundo das finanças, a “Faria Lima” aqui no Brasil) como algo externo a nós, por maior que seja a distância. Atentemos para a grande quantidade de jovens sonhando em trabalhar nas corretoras, para aquelas pessoas que, quando “sobra algum”, vão esperançosas às compras de títulos e ações tornando-se, como dizia Hobson[2], “proletários das bolsas”. Não estou dizendo para não fazerem isto; aliás, pelo contrário, mas há que saber fazer. O principal seria fazê-lo coletivamente, mas isso não é assunto para este momento. Aqui e agora, o que quero marcar é que o trabalho executado pelos agentes financeiros não cria bens reais, mas nem por isso é “do mal”. Trata-se de um trabalho de mediação, como tantos outros, para auxiliar na criação de riqueza real. O trabalho de reunir pequenos capitais dispersos é fundamental para todo investimento grandioso, de construir um hospital ao reflorestamento de todo um deserto. Já o trabalho de especular, iludir e ludibriar é urgentemente dispensável! E este “trabalho sujo”, que prejudica os mais fracos na ponta, é feito por”gente como a gente”. Vejam que o setor de serviços, dito desenvolvido no primeiro mundo, é em grande parte formado pela “indústria da finança”, especializada em tornar a riqueza real em riqueza de papel e vice-versa, mudando-a de tempo e lugar (afinal, o capital pode ir e vir livremente, ao contrário do trabalho). Este setor emprega muita gente para fazer propaganda (frequentemente enganosa), relatórios de desempenho e projeções (frequentemente falsos), auditorias (frequentemente viciadas), até a facilitação explicita de lavagem de dinheiro (como bem mostrado em “A lavanderia” baseado no caso real do escritório de advocacia Mossack/Fonseca, onde muitos milionários brasileiros fizeram bela figuração.
Ora, se muitos de nós somos empregados desta “indústria”, quem nos emprega? Com que motivação além da acumulação financeira? Um filme que mostra bem a paixão pelo jogo e pelo risco dos donos do dinheiro na atualidade é “O capital”. Vemos ali um professor mudando de trabalho, se aproximando de um banqueiro e se apaixonando pela adrenalina envolvida no jogo especulativo – que o filme mostra como “brincadeira de crianças” jogada por “velhos brancos ricos” que se divertem irresponsavelmente com poder desmesurado. Aqui e ali o professor flerta com a possibilidade de denunciar os esquemas, de voltar aos prazeres e responsabilidades da sua vida passada, mas não consegue. O que o filme denuncia, acima de tudo, é que temos no leme das economias modernas não mais o “capitão da indústria”, mas os típicos “barões ladrões” da história norte-americana (mas não restrito a esta)[3], homens cuja paixão pelo risco e pela distinção social os tornam nada admiráveis e sim perigosos na sua capacidade de gerarem caos e sofrimento.
Desemprego e subemprego
Uma das formas de sofrimento que mais nos sensibiliza é a causada pelo desemprego (quem não se lembra de “Ladrões de bicicleta” de Vitório De Sica?). No capitalismo, perder o emprego é perder tudo, todas as possibilidades de ser e fazer qualquer coisa. E, pra piorar, o desemprego é normal e necessário neste sistema. Não que lucros altos dependam de salários baixos garantidos por altas taxas de desemprego (ainda que sim em alguns lugares e épocas), mas porque o capital deve queimar frequentemente seus próprios excessos (daí as crises). Que outra realidade justificaria demandar especialistas em demissões? Pois o cinema mostrou pra muita gente que tal profissão existia. Vemos na comédia romântica (?) “O amor sem escalas” que há gente cujo trabalho é aplacar (ou fingir que se pode aplacar) a preocupação e o desespero de quem está sendo dispensado[4]. Desespero este que chega às raias da loucura quando falha o Estado de bem-estar (até porque foi grandemente desmontado) como mostrado no magistral “Eu, Daniel Blake”. Onde o Estado de bem-estar nunca se deu efetivamente, a falta de esperança em conseguir emprego faz jovens do interior migrarem para a cidade grande e serem presos e escravizados por bandidos no brasileiro “7 prisioneiros”. Se jovens vivendo presos num galpão forçados pela violência armada a trabalhar é um extremo, um outro é idosos forçados pelas circunstância a trabalharem em condições precárias e morarem mais precariamente ainda, como em “Nomadland”. Estes se submetem a viver em terrenos públicos onde é permitido estacionar sem custo seus trailers, desde que se mudem a cada duas semanas.
O subemprego, frequentemente disfarçado de auto-emprego ou melhor de auto-empreendimento, veio pra ficar na vida e na arte que a imita. As novas legislações que vieram para “flexibilizar” o trabalho apenas fizeram precarizar os direitos e a vida de quem tem apenas seu trabalho (e uns poucos bens precariamente transformados em capital) para viver. O filme de Loach, “Você não estava aqui”, sobre o casal que compra uma van para entregas, atraídos pela ladainha do seja empresário de si mesmo, é o melhor exemplo que conheço disso. Para mim, assistí-lo foi quase uma sessão de tortura. Passei toda a sessão esperando uma desgraça (um acidente, um roubo) até perceber que nada poderia ser pior que o dia a dia daquele casal. Marx pensava que os trabalhadores ao perderem a propriedade de seus meios de trabalho já tinham perdido tudo. A cada filme de Loach enxergamos novas perdas – tempo livre, sentido de comunidade, perspectiva de futuro, amor próprio, dignidade básica.
A falta de dignidade é, por sua vez, absolutamente bem ilustrada em “Parasita”. Já nas primeiras cenas vemos uma família vivendo abaixo do chão, sua janela é rente à calçada e eles são efetivamente “mijados” pela sociedade. Vivem de fazer embalagens para pizzas até que acessam uma família cuja janela/porta gigantesca da sala deixa ver um lindo jardim. O emprego doméstico neste filme é porta para o paraíso, dado que a família consegue colocar ali seus quatro membros. A convivência diária com os patrões, no entanto, é traumatizante, pois rememora insistentemente aos empregados que seu “lugar” não é ali. Na ausência dos patrões, os sonhos se tornam perigosamente realidade, e o acordar trágico. Já em “A que horas ela volta” o mesmo emprego doméstico aparece sob cores menos sombrias, até porque, mesmo na ausência da mãe, a filha da empregada consegue sucessos não alcançados s pelo filho dos patrões. Ainda assim, e como nos filmes de Loach, o fato é que a mãe perdeu o mais importante, o crescimento de sua filha. Fundamentalmente, o que fica de todos estes filmes é que o capitalismo atual mantém a precariedade de velhos trabalhos, como o doméstico, e precariza outras tantas. Na fila, profissões mais nobres como advogados, médicos, consultores e outras.
Robôs e inteligência artificial (IA)
Já dizia John Stuart Mill que: “é questionável que todas as invenções mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser humano”[5]. “Duna” ilustra esse princípio. Não vemos ali nenhum robô ou inteligência artificial empregados para aliviar o trabalho de extração do povo de Arrakis[6]. Povo este que funciona perfeitamente como metáfora para os povos africanos cujos trabalhos de colheita de cacau, de extração de lítio, ouro, ou diamantes, não difere muito dos que no filme extraem a “especiaria” mágica.
Já no novo “Blade Runner”, vemos o trabalho árduo aparecer substituído por robôs sofisticados (a ponto de poderem engravidar). Desde o filme original é possível perceber que os ‘replicantes’ substituem os humanos no trabalho de extração mineral nas colônias planetárias. Philip K. Dick parece, contudo, familiarizado com a regra de Marx – humanos podem ser substituídos por máquinas se e quando elas se tornam mais baratas que o trabalho que substituem. O interessante em “Blade Runner” é ver os trabalhadores do setor de serviços também sendo substituídos (como policiais e dançarinas), mesmo que na ciência e nas atividades de direção ainda caibam humanos. Ou melhor, alguns humanos…
Esta substituição dos humanos em atividades complexas é bem mostrada também em “Ela” e em “Ex machina”. Nestes dois filmes, vemos em operação os tais algoritmos que “aprendem”. Perigosamente, para nós, além de poderem fazer o que fazemos, estas “inteligências” podem nos influenciar no que pensamos e sentimos. Esse alerta é fundamental, e esta é mais uma perda a somarmos às demais – a da privacidade, a do acesso exclusivo ao nosso corpo e consciência. O que “Ela” e “Ex machina” leva ao extremo é o que vemos acontecer na realidade muito bem filmada no documentário “Privacidade hakeada” de Karim Amer e Jehane Noujaim. De forma curiosa, ou trágica, um dos trabalhos que continuamos a fazer – e hoje talvez mais do que nunca, e de graça – é alimentar de informações às inteligências que nos vão submeter.
Por fim, eu gostaria de comentar que há inúmeros filmes deixados de fora nesse artigo (também pela exiguidade do espaço) relacionados aos temas tratados (como “Margin Call” de Chandor ou “Grande demais para quebrar” de Hanson, no tema da financeirização; “Estou me guardando pra quando o carnaval chegar” de Marcelo Gomes, no tema da precarização; bem como os fantásticos episódios de Black Mirror (mesmo não se tratando de filmes para a telona) no tema robôs e IA), só para citar alguns. Um destes últimos que considero de fundamental importância é o das reações dos trabalhadores. Neste quesito, até porque não há tantas produções (alguém sabe de algum filme sobre o ocorrido na Islândia logo depois da crise de 2008?), é importante citar o documentário colaborativo “99%” (99 cineastas o dirigiram) sobre a resposta dada pelos trabalhadores em Nova York no Occupy Wall Street. Importa salientar também que, embora menos frequente que em décadas passadas, o tema das greves não deixou de aparecer nas telas ainda que estrelando greves passadas (como “Orgulho e esperança”,de Mattew Warchus, sobre a greve dos mineiros na Inglaterra em 1984 ou o “Batalha incerta”, de James Franco, sobre a greve agricultores de maçã nos Estados Unidos nos anos 30). Estou aguardando ansiosa algo sobre a greve dos roteiristas de 2007/2008 em Hollywood e a que está ocorrendo nesse exato momento, dos roteiristas e atores, e contra justamente as formas de apropriação indébita do seu trabalho pela inteligência nada artificial do capital.
Notas
[1] Apenas a título de exemplo, vide https://link.springer.com/book/10.1057/9781137370860. [2] Hobson, J. “A evolução do capitalismo moderno”. São Paulo: Nova Cultural, 1985, se refere com esse termo ao fato de que o dinheiro dos pequenos aplicadores está a serviço da manipulação e exploração dos grandes. [3] Algo como se se mudasse o tipo ideal weberiano de Benjamin Franklin para Logan Roy. [4] Verdade que trata-se de profissão mais comum lá fora, mas existe serviço similar já no Brasil. Um psicólogo relatou em matéria à Veja que “o choro é uma constante em boa parte dos casos, não importa o sexo, idade ou posição hierárquica do demitido. Já presenciei também alguns desmaios. Raramente acontecem ameaças ao responsável pelo desligamento”. Vide https://veja.abril.com.br/economia/a-arte-de-demitir-funcionarios. [5] Citado por Marx, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo, Boitempo. Livro 1 – pg 303. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo..pdf. [6] Os fãs gostam de lembrar que já no primeiro livro que inspirou os filmes, houve uma cruzada contra computadores, máquinas pensantes e robôs conscientes. Contudo, por mais que vejamos ali cavalheiros lutando com espadas, comunicações, transportes, etc. requerem uma super tecnologia que lhes é garantida, enquanto não ao trabalho de extração intencionalmente reprimida para manter as pessoas protegidas dela.Glaúcia Campregher é professora de Economia na UFBA.