Cristiano Paixão e Ricardo Lourenço Filho
Fonte: Jota
Data original da publicação: 28/09/2018
Estamos próximos da data de aniversário dos 30 anos da Constituição. Como sempre ocorre nessas ocasiões, serão produzidas matérias em órgãos da imprensa escrita, reportagens especiais em telejornais e textos em veículos especializados. Será interessante observar se um aspecto será ressaltado: a centralidade dos direitos sociais e do mundo do trabalho na elaboração da Constituição. Não é apenas um interesse acadêmico. O sistema de proteção do trabalho humano está sendo inteiramente reescrito nos últimos dois anos. E o autor dessa narrativa é o Supremo Tribunal Federal. Por esse novo enredo, o trabalhador não é o protagonista do mundo do trabalho.
Alguns poderiam dizer que se trata de uma consequência da reforma trabalhista. Ocorre, contudo, que dois dos três casos que apresentamos abaixo sequer são regidos pela Lei nº 13.467/2017. Apenas o terceiro, com julgamento ainda inconcluso, diz respeito à reforma. Isso quer dizer que, mesmo antes do Parlamento, o STF se encarregou de modificar o elenco do mundo do trabalho no Brasil.
Como essa mudança ocorreu?
Uma decisão que revela com todas as suas tintas a postura do STF em defesa do mercado envolve o tema da terceirização.
Ao concluir o julgamento da ADPF 324 e do RE 958.252-MG, no último dia 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal firmou, com repercussão geral, a tese de que “é licita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. O resultado é a permissão, sem restrições, à utilização da terceirização de serviços como dinâmica empresarial, inclusive com relação às atividades fim do empreendimento.
Para o Supremo Tribunal Federal, o trabalhador e os direitos trabalhistas surgem como entraves ao desenvolvimento econômico, ameaçando o conjunto da sociedade.
A ameaça se volta, inclusive, ao próprio trabalhador, pois a restrição à terceirização teria por consequência a redução de empregos. E o empresário, segundo a Corte, é livre para usar a força de trabalho e contratá-la como bem entender.
A consequência é a redução do trabalho e da pessoa do trabalhador a uma mera mercadoria, a ser consumida de acordo com as necessidades econômicas do empresário (“empreendedor”) e em proveito útil à sociedade como um todo. Os desdobramentos nocivos dessa decisão já foram ressaltados em artigos publicados no JOTA por Gabriela Delgado e Renata Dutra e também por Paulo Joarês Vieira e Rodrigo Carelli.
A decisão proferida na ADPF 324 e no RE 958.252 é, no entanto, coerente com outros posicionamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal.
No dia 27 de outubro de 2016, no julgamento do RE 693.456-RJ, o STF deliberou, também com repercussão geral, que o administrador público tem o dever, e não mera faculdade, de cortar o ponto de servidores grevistas. Um dos fundamentos da decisão foi o de que, na administração pública, vigora o princípio do interesse público. Para a Corte, as regras sobre o direito de greve podem ser agravadas em atenção à necessidade de continuidade dos serviços públicos, que decorre daquele princípio. Limites e sacrifícios aos direitos trabalhistas podem ser impostos em benefício da coletividade e de um (suposto) interesse público. Em texto publicado à época, classificamos essa concepção como um “direito do trabalho do inimigo”, ou seja, uma argumentação que inverte inteiramente a lógica do sistema de proteção do trabalho, pois pressupõe, de início, que a greve é algo perigoso, que deve ser evitado de todas as formas – daí o “dever” de cortar o ponto dos grevistas.
O STF ainda não concluiu o julgamento da ADI 5766, que impugna dispositivos da “reforma trabalhista” sobre o direito à gratuidade de justiça. O relator, min. Luís Roberto Barroso, votou pela procedência parcial, propondo que o direito à gratuidade de justiça pode ser regulamentado para “desincentivar a litigância abusiva”. Entendeu possível a cobrança de honorários e de custas do hipossuficiente, mesmo se beneficiário da justiça gratuita. Justificando sua posição, o ministro sinalizou que a questão era decidir o que seria melhor para os trabalhadores, para a sociedade e para o país.
Após o voto do relator e do min. Edson Fachin (esse último julgando procedente o pedido), o processo foi suspenso em razão de pedido de vista. Caso prevaleça a posição do ministro relator, o STF dará mais um passo no sentido de se impor limites a direitos trabalhistas – dessa vez com relação ao acesso à justiça – em prol da sociedade.
Nos três processos aqui referidos, é possível identificar uma linha argumentativa coesa: as proteções que o ordenamento jurídico destina aos trabalhadores são aplicadas de acordo com seu potencial de ameaça ou não à sociedade e às demandas e necessidades do mercado. Há, no pano de fundo, uma redução da sociedade ao mercado: o que interessa à sociedade e, curiosamente, aos próprios trabalhadores, é tão somente o que interessa ao mercado, nada mais.
A Constituição e o lugar dos direitos sociais
As decisões do STF significam uma reescrita da Constituição de 1988. É necessário compreender o alcance desse ato radical de ressignificação do texto.
Um dado muito importante no estudo do constitucionalismo contemporâneo está ligado ao que se pode chamar de “topografia constitucional”. Qual é o lugar dos direitos na arquitetura do texto? Que tipo de sequência ordenada caracteriza a narrativa constitucional? Já no art. 1º da Constituição, para além da presença da expressão “trabalho” (que vem acompanhado da “livre iniciativa”, numa típica solução de compromisso de uma Assembleia composta por representantes com interesses bastante distintos), é possível aferir a presença do trabalho humano (e da necessidade de sua proteção) no inciso III, referente à dignidade da pessoa humana, assim como no art. 3º, inciso I, voltado à construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e também no inciso III, cujo objetivo é o de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Logo adiante, no art. 6º, o direito ao trabalho é apresentado como um dos direitos sociais, sendo que o art. 7º enumera o catálogo dos direitos de todos os trabalhadores urbanos e rurais. O art. 8º cuida da organização sindical e o art. 9º estabelece, de forma clara e insofismável, o direito de greve. Todos esses dispositivos estão inseridos no Título II da Constituição, destinado aos direitos e garantias fundamentais.
Essa centralidade da proteção ao trabalho humano modifica substancialmente o tratamento do tema na história constitucional brasileira. Os direitos conectados ao mundo do trabalho vinham sendo apresentados, nas constituições anteriores, na seção destinada à ordem econômica, da qual eram parte indispensável. Essa transformação, contudo, não chega a ser inédita. Ela está inserida num contexto internacional do constitucionalismo pós-1945, que se manifestou especialmente em países europeus que ressurgiam da experiência da guerra (Itália e França) ou que lograram superar regimes ditatoriais (Espanha e Portugal). As constituições desses países – em pleno vigor nos dias atuais – se caracterizam pelo protagonismo da proteção ao trabalho humano.
Todos esses países têm constituições mais antigas do que a brasileira. E neles não se manifestou a necessidade, ou o desejo, de ressignificar a opção pelo mundo do trabalho. Essa tarefa, no Brasil, foi assumida pelo STF, antes mesmo da reforma trabalhista, como pudemos observar. Por razões que ainda precisam ser estudadas, o STF passou a se ocupar, de modo ativo, do mundo do trabalho, sempre com o fundamento da valorização da livre iniciativa, sem consideração efetiva do valor social do trabalho. Quando a história desse turbulento período compreendido entre 2016 e 2018 for escrita, uma designação será a mais apropriada para descrever a atuação do órgão de cúpula do Judiciário brasileiro. Entre 2016 e 2018, o STF foi o tribunal do mercado.
Cristiano Paixão é professor adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.
Ricardo Lourenço Filho é juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região; doutor e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; Integrante do grupo de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” (CNPq/UnB).