
Essa crise se ampliou entre 2008 e 2009 e se agravou, mais recentemente, com a eclosão da pandemia de covid-19. Os resultados desse cenário se espalham como praga.
Ricardo Antunes
Fonte: Jornal da Unicamp
Data original da publicação: 16/09/2025
estes tempos de expansão ilimitada das grandes plataformas digitais, um novo espectro ronda o mundo do trabalho: o espectro da uberização. O que levou à emergência desse novo fenômeno global, que afeta tão profundamente o trabalho?
Sua gênese tem várias causas, mas remonta sobretudo à crise estrutural do capital, desencadeada em 1973, depois da derrota das lutas operárias e sociais de Maio de 68 na França (ações que se espalharam por vários países) no ano que abalou o mundo. Essa crise se ampliou entre 2008 e 2009 e se agravou, mais recentemente, com a eclosão da pandemia de covid-19.
Os resultados desse cenário se espalham como praga. Embaladas por uma tríade destrutiva que combina neoliberalismo, reestruturação produtiva permanente e financeirização, vimos a explosão do desemprego e a expansão das grandes plataformas digitais, numa simbiose responsável pelo advento da uberização.
Seus resultados estão evidenciados: informalidade ilimitada e desproteção social absoluta em relação à legislação do trabalho, que nos empurraram para o trabalho uberizado, variante laborativa que caiu como um bálsamo para as grandes plataformas digitais, uma vez que reintroduziram jornadas ilimitadas de trabalho que remetem aos séculos XVIII e XIX, acarretando, dentre tantas consequências nefastas, uma sistemática destruição do corpo produtivo de trabalhadores e trabalhadoras.[1]
Basta ver o número de acidentes e mortes por dia na cidade de São Paulo, ou ainda a precariedade de suas condições de alimentação: uma aberração, sintetizada no fato de que trabalhadores entregam a alimentação da qual só conseguem sentir o cheiro.
Foi assim que, pouco a pouco, silenciosamente e sem alvoroço, as “novas” modalidades de trabalho foram sendo paridas. O golpe de mestre veio na sequência, pois urgia deslanchar uma “nova” fase ainda mais precarizada, urdida em grandes escritórios de advocacia corporativa global, sem esquecer da compulsão celerada dos CEOs, associação que acabou por consumar o embuste.
Para o golpe se efetivar, foi preciso criar uma aparência de autonomia, de modo que o assalariamento fosse mascarado, para obliterar sua real condição. Foi assim que se gestou a uberização do trabalho.
Beneficiadas diretamente pela expansão dos algoritmos e do trabalho digital, as grandes plataformas estampavam, ao mesmo tempo, a heterogeneidade presente nas distintas modalidades de trabalho, para melhor “esconder” o nefasto traço de homogeneidade que as particulariza: a de exercitar uma precarizaçãoilimitada da força de trabalho.
Compreende-se, então, porque as plataformas da predação “moderna” se recusam a aceitar o cumprimento dos direitos do trabalho e, assim, aviltam atividades que já eram limitadas e intensificam ainda mais seus níveis de exploração.
Veja-se o depoimento de um motoboy do Rio de Janeiro sobre o trabalho em plataformas:
[…] as empresas eram terceirizadas e prestavam serviço para as grandes redes delivery, como Bob’s, McDonald’s, Girafas, então nós tínhamos os direitos trabalhistas, nós tirávamos aí por quinzena R$ 4,5 mil. Hoje, pra eu tirar R$ 4 mil reais, eu tenho que trabalhar em dois turnos, (…) eu trabalhei até quatro horas da manhã. Por quê? Porque, hoje, a gente ganha o valor de uma gorjeta. Para tu vê, ontem eu peguei uma entrega no Centro do Rio de Janeiro para levar lá no Humaitá, na Lagoa, na Zona Sul por R$ 4,90.[2]Ou, ainda, o depoimento de uma motorista de aplicativo:
“Hoje eu trabalho, no mínimo, 12 horas. Geralmente, ultrapassa e chega a 16 ou 18 horas. Já teve dia de chegar a 32 horas direto. Mas isso é uma questão às vezes de meta, uma semana você tem uma conta a mais, você tem alguma coisa com propósito e eu acabo dobrando um pouco mais. Mas no mínimo é 12 horas.[3]
O que as grandes plataformas digitais não imaginavam é que,ao introduzir a escravidão digital,[4] em pleno século XXI, pudessem impulsionar ações e lutas deflagradas pelo novo proletariado de serviços da era digital, de que são exemplos o breque dos apps de 1º de julho de 2020, deflagrado em plena pandemia, e, mais recentemente, dos dias 31 de março e 1 de abril de 2025, sendo esta última data simbolicamente escolhida por ser o Dia da Mentira!
Se o novo espectro da uberização impregna o mundo do trabalho, ele faz aflorar um outro espectro, o da insubmissão presente no breque dos apps.
Aqui e alhures.
[1] Ver as pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa Metamorfoses do Mundo do Trabalho (GPMT) do IFCH/UNICAMP, em Antunes, R. (org.), Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (São Paulo, Boitempo, 2023) e Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 (São Paulo, Boitempo, 2020).
[2] Antunes, R.; Gonsales, M.; van der Laan, M. Platform Capitalism: Experimental Laboratories and the Struggles for the Regulation. Inequalities, vol. 2, maio 2025.
[3] Antunes, R.; Gonsales, M.; van der Laan, M. Capitalismo de plataforma: los laboratorios de experimentación y las luchas por la regulación del trabajo uberizado. In Stecher, A.; Morales, K. (Orgs). Plataformas digitales de trabajo en América Latina: Organización productiva, desafíos regulatorios, acción colectiva y subjetividades. LOM, abril, 2024.
[4] Antunes, R.; O Privilégio da Servidão. (São Paulo, Boitempo, 2020).
Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp e autor de livros publicados em 14 países, dentre os quais estão O privilégio da servidão, Os sentidos do trabalho e Adeus ao trabalho? Foi professor visitante na Universidade Ca’ Foscari em Veneza, na Universidade de Coimbra e Visiting Research Fellow na Universidade de Sussex. Recebeu recentemente o título de Doutor Honoris Causa na Universidade Nacional de Rosário na Argentina (junho de 2025)