Impactos do Direito das Mulheres no Direito Previdenciário e do Trabalho

Aplicação da perspectiva de gênero pelos Tribunais Superiores.


Thimotie Aragon Heemann

Fonte: Jota
Data original da publicação: 21/11/2022

Dando prosseguimento ao estudo dos influxos do Direito das Mulheres em outros ramos da ciência jurídica, o texto desta edição da coluna Direito dos Grupos Vulneráveis analisará a aplicação da perspectiva de gênero, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), em temas clássicos do Direito Previdenciário e do Trabalho, tais como auxílio-doença, pensão por morte, licença maternidade, atividades insalubres etc.

De uns tempos para cá, as Cortes de Vértice passaram a analisar a concessão de benefícios previdenciários, condições para o exercício da atividade laboral e outros assuntos atinentes à segurança sanitária e financeira da mulher a partir das lentes de gênero, concretizando, assim, a dignidade de mulheres brasileiras inseridas no mercado de trabalho ou necessitadas da previdência social.

Feita essa pequena introdução, convido-os a analisarmos juntos cinco casos nos quais os Tribunais Superiores brasileiros foram instados a reconhecer o impacto do Direito das Mulheres no Direito Previdenciário e do Trabalho.

Mulheres vítimas de violência doméstica, afastamento do trabalho e aplicação analógica do auxílio-doença

Inaugurando a análise de situações específicas envolvendo a aplicação da perspectiva de gênero pelos Tribunais Superiores no âmbito do Direito Previdenciário e do Trabalho, o STJ analisou, em meados do ano de 2019, uma situação prática deveras importante às mulheres vítimas de violência doméstica: quais são as consequências jurídicas do deferimento da medida protetiva de urgência que determina a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses, em razão de situação de violência doméstica? (artigo 9º, §2º, inciso II, da Lei Maria da Penha)

Para responder a referida indagação, o Tribunal da Cidadania precisou enfrentar preliminarmente outros dois pontos controvertidos: a) Qual a natureza jurídica – para fins de contrato de trabalho – da medida protetiva que impõe ao empregador a manutenção do vínculo trabalhista em decorrência de afastamento do emprego por situação de violência doméstica? b) Quem deve custear o pagamento do período em que a mulher vítima de violência permanece afastada do trabalho?

De nada adianta os juízes aplicarem a medida protetiva de manutenção do vínculo empregatício sem que seja esclarecida na decisão exarada de que forma e quem dará guarida à mulher vítima de violência doméstica durante o período de afastamento das atividades laborais. Nesse sentido, é oportuno lembrar que o art. 9º, §2º, inciso II foi insculpido no texto da Lei 11.340/2006 justamente para dar assistência segurança às mulheres.

Em relação à natureza jurídica da manutenção do vínculo empregatício, entendeu acertadamente o STJ se tratar de hipótese de interrupção do contrato de trabalho.[1] A conclusão é, na verdade, a única possível diante do ethos protetivo da Lei Maria da Penha, afinal, caso a manutenção do vínculo de emprego fosse reconhecida como espécie de suspensão do contrato de trabalho, a mulher vítima de violência doméstica e familiar não receberia salários, tampouco teria computado o período de afastamento como tempo de serviço, o que iria de encontro ao próprio vetor interpretativo previsto no artigo 4º da Lei 11.340/2006 (“Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”).

Uma vez reconhecido o afastamento das funções laborais em razão de situação de violência doméstica como interrupção do contrato de trabalho, a vítima faz jus ao recebimento de valores durante o período em que se encontra afastada. Nesse ponto – e novamente de forma acertada –, o STJ encontrou solução adequada para a questão, aplicando analogicamente, diante da ausência de previsão legal, a incidência do auxílio-doença, mediante uma interpretação extensiva da Lei Maria da Penha, “pois tal situação advém da ofensa à integridade física e psicológica da mulher e deve ser equiparada aos casos de doença da segurada”,[2] cabendo ao empregador o pagamento dos quinze primeiros dias, e ao Instituto Nacional do Seguro Social o pagamento do restante do período estabelecido pelo juiz.[3]

Crime de feminicídio e cobrança regressiva pelo INSS dos valores pagos a título de pensão por morte

Em agosto de 2016, o STJ se deparou com a seguinte controvérsia: pode o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) cobrar regressivamente, do homem autor de feminicídio, os valores pagos a título de pensão por morte aos dependentes de segurada vítima do crime?

Basicamente, o Tribunal da Cidadania foi instado a definir se a autarquia previdenciária faz jus ao ressarcimento de valores pagos a título de benefícios previdenciários cuja origem do fato gerador é diversa daquela expressamente autorizada pelos artigos 120 e 121 da Lei 8.213/91 (direito de regresso em casos de acidente de trabalho).

A resposta oferecida pelo STJ foi lastreada em uma interpretação sistemática das normas previdenciárias já mencionadas, em conjunto com os artigos 186 e 927 do Código Civil, dispositivos que regulamentam o tema da responsabilidade civil. Para o STJ, interpretar a quaestio iuris com base exclusivamente nos artigos previstos na legislação previdenciária seria negar a própria vigência do Código Civil brasileiro.

Dessa forma, concluiu o STJ no sentido de que “o agente que praticou o ato ilícito do qual resultou a morte da segurada deve ressarcir as despesas com o pagamento do benefício previdenciário, ainda que não se trate de acidente de trabalho, nos termos dos arts. 120 e 121 da Lei 8.213/91 c/c os arts. 186 e 927 do Código Civil”.[4]

Este articulista novamente entende como acertado o entendimento da Corte, já que a conclusão, além de prestigiar uma interpretação conglobante e permeada pelo diálogo de fontes, concretiza de forma simultânea dois valores facilmente extraídos do texto constitucional: o retorno de valores ao erário e a responsabilização daquele que pratica atos de violência contra a mulher.

Posteriormente ao precedente firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, a Lei 13.846/2019 alterou o art. 120 da Lei 8.213/91, acrescentando também como hipótese de cabimento de ação regressiva por parte do INSS contra os responsáveis, “nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher”.

Proibição da realização de atividades insalubres às mulheres gestantes e lactantes

A Constituição Federal de 1988 não define o que ou quais são as chamadas “atividades insalubres” para os fins do Direito do Trabalho, fazendo apenas menção ao pagamento de “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei” (art. 7º, inciso XXXIII). O tema é, em verdade, regulamentado pela Seção XIII da Consolidação das Leis do Trabalho.

O artigo 189 da CLT conceitua “atividades insalubres” como: “aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”. Cuida-se, portanto, do exercício de função laboral deletéria à saúde acima dos limites de tolerância admitidos.

Sem adentrar nas nuances do Direito do Trabalho, até para não extrapolar os fins colimados nesta coluna, chamamos desde logo a atenção para um caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal envolvendo a chamada “Reforma Trabalhista”.

Aprovada durante o governo Michel Temer, a Lei 13.467/2017 realizou uma série de modificações na Consolidação das Leis Trabalhistas, dentre elas, a inserção do artigo 394-A e incisos, que regulamentaram a possibilidade de mulheres gestantes e/ou lactantes se afastarem do exercício de atividades insalubres, desde que fosse apresentado atestado de saúde, emitido por médico de confiança da mulher, recomendando o afastamento durante a gestação (inciso II) ou lactação (inciso III). A constitucionalidade de ambos os incisos foi impugnada perante o Supremo Tribunal Federal.

Ao se deparar com o tema, a Corte Constitucional brasileira reconheceu que as expressões contidas nos dispositivos impugnados permitem – ainda que mediante uma interpretação a contrário sensu – a exposição de empregadas grávidas e lactantes a trabalho em condições insalubres. Ainda, o novel regramento introduzido pela reforma trabalhista impusera um ônus a própria gestante/lactante em demonstrar documentalmente a necessidade de afastamento do trabalho, subvertendo o próprio artigo 7º, inciso XX, da Constituição Federal (“proteção ao mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”).

Nesse sentido, foi reconhecido pelo STF o caráter irrenunciável inafastável da proteção contra a exposição da gestante e lactante a atividades insalubres e, ainda, a sua natureza como importante direito social instrumental protetivo tanto da mulher quanto da criança, sendo declarada a inconstitucionalidade das alterações promovidas pelo art. 394-A, incisos II e III da CLT.[5]

Não incidência do teto previdenciário sobre o salário-maternidade

Com a publicação da Emenda Constitucional 20/98, o STF foi provocado a se manifestar pela primeira vez sobre a proteção de direito das mulheres em matéria previdenciária. A controvérsia girava em torno da constitucionalidade da incidência do teto dos benefícios previdenciários estabelecidos pela EC 20/98 ao salário-maternidade, este último devido à mulher que se afasta do trabalho para usufruir de licença maternidade. Discutia-se, ainda, se o valor excedente ao teto dos benefícios deveria (ou não) ser pago pelo empregador.

Na oportunidade, a Corte Constitucional concluiu, por unanimidade, que caso se admitisse que o encargo excedente fosse pago pelo empregador – uma regra aparentemente neutra (teto previdenciário) –, isso ocasionaria um impacto desproporcional na empregabilidade da mulher, já que as estas seriam – em virtude desse custo adicional ao empregador – preteridas pelos homens no mercado de trabalho, ocasionando trangressão direta frontal ao art. 7º, XX, da Constituição Federal[6].

A partir daí, a ação direta de inconstitucionalidade foi julgada procedente e, mediante a utilização da técnica conhecida como “interpretação conforme a Constituição”, excluiu-se a aplicação do teto dos benefícios previdenciários ao salário-maternidade[7].

Termo inicial da licença-maternidade e do salário-maternidade em casos envolvendo bebês prematuros

Seria irresponsabilidade deste articulista finalizar o texto sem abordar um dos temas mais importantes (e recentes) em matéria de proteção de direito das mulheres no âmbito do STF: a fixação do dies a quo para fins de fruição da licença maternidade em casos envolvendo o nascimento de bebês prematuros.

Dentre os direitos trabalhistas esculpidos com quilate constitucional, a Constituição Federal de 1988 previu em seu art. 7º, inciso XVIII a chamada “licença à gestante”, popularmente conhecida como “licença maternidade”, pelo prazo de cento e vinte dias e sem prejuízo do emprego e do salário. Até aqui, sem maiores problemas.

Contudo, controvérsia interessante e com relevante aspecto prático chegou até a jurisdição constitucional brasileira: quando se inicia o prazo de cento e vinte dias para fruição da licença maternidade em casos envolvendo o nascimento de bebês prematuros? A indagação se justifica, especialmente, pelo fato de que, geralmente, bebês prematuros permanecem internados na unidade hospitalar por um período maior e privados de contato com a própria genitora.

Ao dirimir a questão a partir de uma sensibilidade ímpar, os ministros do STF concretizaram – mais uma vez e mediante a aplicação da perspectiva de gênero – a proteção a maternidade da genitora e o direito fundamental à convivência familiar da criança, concretizando a tese fixada em ADI no sentido de que: “o termo inicial aplicável à fruição da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade deve ser o da alta hospitalar da mãe ou do recém-nascido, o que ocorrer por último, prorrogando-se ambos os benefícios por igual período ao da internação”.[8]

Espero que tenham gostado. Até a próxima!

Notas

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.757.775/SP. Rel. Min Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/8/2019.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.757.775/SP. Rel. Min Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/8/2019.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.757.775/SP. Rel. Min Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/8/2019.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.431.150/RS. Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 23/8/2016.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5938. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2019.

[6] HEEMANN, Thimotie Aragon Heemann. Teoria do Impacto Desproporcional e proteção de grupos vulneráveisJota, 10 jun. 2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/teoria-do-impacto-desproporcional-e-protecao-de-grupos-vulneraveis-10062021. Acesso em: 16 nov. 2022.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1946. Rel. Min. Sydney Sanches, julgado em 03/04/2003.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6327. Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 24/10/2022.

Thimotie Aragon Heemann é Bacharel em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP). Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, atualmente na Comarca de Santo Antônio do Sudoeste/PR. Colaborador no Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado do Paraná (CAOPJDH). Colaborador do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (NUPIER) do Ministério Público do Estado do Paraná. Colaborador no Centro de Apoio Operacional às Promotorias Cíveis, Fundações e com Atuação no Terceiro Setor (CAOPCFT) Palestrante. Professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos do Curso CEI, da Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR) e da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Autor de livros e artigos jurídicos

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