Força normativa da Constituição e irredutibilidade salarial ou a distopia sacaneando os direitos fundamentais

O presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães, apresenta a Constituição em 5 de outubro de 1988. Ele a chamou de ‘Constituição Cidadã’. Fotografia: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados

As sacanagens jurídicas da distopia esvaziam o Estado Social e assassinam os direito mais elementares da cidadania do mundo do trabalho em crise.

Tarso Genro

Fonte: DDF
Data original da publicação: 09/08/2022

Esse pequeno artigo de doutrina constitucional trata de um caso concreto: uma grande empresa multinacional promove – sem negociação coletiva – uma alteração na prestação de serviços por turnos contínuos. Sem negociação coletiva, com dura redução salarial para os seus trabalhadores.

A empresa supostamente se abriga no direito de “comandar a organização” da instituição privada e no direito de “gestão” livre dos seus negócios. O Juízo de Primeira Instância, desconhecendo o previsto no art. 7 da CF, inciso VI, sustenta ser um direito do empregador proceder como procedeu, assestando um duro golpe na Constituição do Estado Social, “fato” caraterístico do atual período distópico que vivemos no país. Não o Führer diretamente, mas a distopia comanda o direito.

Penso que a década de 70 foi o grande período de afirmação da Justiça do Trabalho no Brasil, como sistema protetivo fundado no propósito de igualar os desiguais. O sistema não nascera no Brasil, pois inspirado nas conquistas da República de Weimar vinha de um conjunto de doutrinas emergentes, através de uma dialética política viva no conflito entre classes, da qual energia a institucionalização de uma Justiça “novo tipo”, para o apaziguamento das lutas revolucionárias da época.

Em plena ditadura militar a Justiça do Trabalho, a duras penas, vai conquistando espaços democráticos, tanto dentro do Direito Individual do Trabalho, reduzindo o arbítrio empresarial para a configuração das justas causas – por exemplo – como no Direito Coletivo do Trabalho, com a emergência das “greves ilegais”, que passam ser consideradas “fatos”, dos quais cautelosamente poderiam emergir direitos.

Deveali dizia que a “força normativa dos fatos” não era um mero instrumento de composição de um sistema, mas categoria através da qual o direito poderia se reformatar e alterar-se, inclusive institucionalmente, em determinadas circunstâncias históricas. Hoje, Luigi Ferrajoli – que acaba de publicar um livro sobre a necessidade de uma Constituição Mundial – diz que os poderes fáticos, ou seja, a “força normativa” dos fatos, que interessam exclusivamente às grandes corporações empresariais globais, só pode ser bloqueada pela força normativa das Constituições, futuramente projetadas numa Constituição Mundial.

Esta visão de Ferrajoli se ampara – na conjuntura atual – em dois fatos históricos importantes: a guerra da Ucrânia (provocada pela força normativa do processo de globalização econômica), que traz oportunidades e muitos desafios; e a força normativa da economia global (naturalmente opressiva), cuja resistência vem da força da subjetividade libertária, modeladora de uma “busca de Justiça” para os desiguais.

Este processo de submissão às leis da economia reflete nas atitudes e decisões, em escala global, tomadas pelas empresas para se recolocarem no mercado mundial, de forma a suportar as pressões competitivas: é uma das forças normativa dos fatos integram a economia e a política e fazem o direito, obrigando que cada fato jurídico-político importante, em uma determinada região, seja também um fato universal.

Quando uma empresa multinacional toma uma atitude qualquer para defender-se na concorrência mercantil, ela está inserida dentro de um macro contexto previsível na doutrina econômica, que tem repercussões dentro da ordem jurídica. Exemplo: a implementação, de maneira unilateral – por uma empresa global que opera 24 horas por dia com turnos ininterruptos em revezamento – de um novo sistema de prestação dos serviços, para torna-se desta forma mais rentável perante a concorrência, é um “fato natural” da globalização.

Entretanto esta decisão tomada pela empresa, que visa substituir – por exemplo – um sistema vigente na comunidade e na vida familiar dos trabalhadores há mais de 40 anos, não pode ser aplicada de maneira abrupta e unilateral, pois é necessário olhar o conjunto das normatividades que incidem sobre a comunidade da empresa, como integrante do sistema do capital (com suas forças “fácticas”), e o conjunto de direitos da comunidade dos trabalhadores (abrigados num determinado sistema de proteção da dignidade do trabalho), pois as alterações na vida contratual podem, também, reduzir salários, ferindo de morte o princípio da irredutibilidade salarial, que é dogma inscrito na Constituição Federal.

Não é possível adotar uma dogmática meramente negativa e simplificadora, dizendo que o poder organizador do empresário e poder de gestão dos seus gerentes, pode se sobrepor à norma constitucional da irredutibilidade salarial, pois temos aqui – na verdade – já uma discussão sobre os fundamentos do direito social e os próprios fundamentos do direito do trabalho.

Se formos procurar quais foram os argumentos da sentença para resolver a controvérsia a favor da tese do empregador, veremos que o juízo se firmou a partir da seguinte convicção: a alteração lesiva na vida comum do mundo do trabalho pode ser feita pelo empregador com redução dos salários, pois ele tem a força dos fatos, que lhe permite afastar a força normativa da Constituição.

Quais são os dois fundamentos principais da sentença? O empregador tem o direito de gestão dos meios de produção e o direito de organizar o seu negócio, de maneira irrestrita. Ora, estes fundamentos da sentença – no caso em exame – omitem as mediações necessárias da ordem jurídica infraconstitucional para o uso (e não para o abuso destes direitos de “gestão” e “organização”), através do direito de negociar.

O direito de negociar, todavia, também implica no direito de “não negociar”: ele é um instrumento de composição de interesses, não um mero ritual para – se não exercido por qualquer das partes – permitir que qualquer delas viole a Constituição, aniquilando o Estado de Direito sobretudo como um Estado de competências.

A sentença que decide que é legal a alteração do sistema de turnos sem acordo coletivo, está transferindo aos trabalhadores, no caso de uma grande empresa multinacional, os riscos das suas atividades econômicas na concorrência global, já que ao reduzir os salários dos seus empregados, de forma combinada com alteração do seu modo de vida vigente há mais de 40 anos, atinge a sua vida social e a sua vida laboral como um todo.

Estamos aqui, assim, falando da existência do Direito do Trabalho e da existência da própria Justiça do Trabalho, destinada a corrigir os atos arbitrários de um empregador global que, se prosperarem, proporcionarão uma lesão brutal no sistema protetivo.

A dogmática coerente com os princípios do Direito Laboral está inscrita no Preâmbulo da Constituição, não na força normativa da globalização financeira: este é o divisor de águas que separa a força normativa da Constituição das sacanagens jurídicas da distopia, que esvaziam o Estado Social e assassinam os direito mais elementares da cidadania do mundo do trabalho em crise.

Tarso Genro é advogado e ex-governador do RS

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