A precarização da ocupação doméstica e a falta de políticas voltadas para este setor impacta toda a sociedade brasileira, mas principalmente as mulheres e meninas pobres e negras.
Cristina Pereira Vieceli
Em 2023, comemoram-se dez anos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 72, apelidada de PEC das domésticas. A PEC somente foi regulamentada dois anos depois, em 2015, com a Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Os avanços na legislação trabalhista, concernentes às domésticas, foram comemorados pelos setores progressistas da sociedade brasileira, movimentos sindicais ligados às trabalhadoras domésticas e movimentos sociais, em especial o movimento negro e feminista. A PEC representou, na época, uma “segunda Lei Áurea” para as trabalhadoras domésticas brasileiras, devido tanto ao perfil das trabalhadoras, constituído principalmente por mulheres negras de baixa renda, como também à restrição de direitos legais até então assegurados à categoria.
O trabalho doméstico é de extrema importância para a classe trabalhadora brasileira, empregando aproximadamente seis milhões de pessoas, o que corresponde a 5,87% do total da população ocupada, 12,5% da força de trabalho feminina ocupada e 16% do total das ocupações das trabalhadoras negras em 2022[1]. O Brasil possui o maior número absoluto de trabalhadoras domésticas[2] no mundo (OIT, 2013)[3], correspondendo a 13,7% do total de pessoas empregadas mundialmente na ocupação.
A despeito dos impressionantes indicadores, o trabalho doméstico foi excluído de importantes marcos legais trabalhistas, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, e incluído parcialmente na Constituição Federal de 1988. Os direitos das trabalhadoras foram conquistados de forma paulatina e parcial. A exemplo disso, somente em 1972, com a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro, as trabalhadoras domésticas tiveram direito a carteira assinada e a inclusão no sistema previdenciário, ou seja, quase 30 anos após a vigência da CLT. Posteriormente, em 1988, houve avanços constitucionais, porém somente em 2013, com a PEC das domésticas, elas passaram a ter assegurado o recolhimento ao FGTS obrigatório e a regulamentação da jornada de trabalho[4].
Os argumentos para a exclusão das trabalhadoras domésticas da igualdade de direitos se repetiram ao longo de toda a história dos avanços legislativos, entre os quais a hipossuficiência dos(as) empregadores(as) e a relação de emprego diferenciada, por ser um trabalho exercido dentro do domicílio e, por conseguinte, permeado por relações afetivas. A Lei das Domésticas, nesse sentido, foi também motivo de mobilização contrária por parte de camadas conservadoras da população. Estas argumentavam que os avanços legislativos, por onerarem os empregadores e burocratizarem as relações de emprego, implicariam em demissões e, consequentemente, maior informalidade. O resultado dessa queda de braço foi uma lei com avanços importantes para a categoria, ainda que não tenha de fato igualado a legislação com a das demais.
Dentre outros avanços trazidos pela Lei Complementar nº 150 de 2015, destacam-se: a regulamentação da jornada de trabalho, inclusive para as trabalhadoras em tempo parcial, com obrigatoriedade de registro em livro ponto, remuneração do trabalho noturno superior ao diurno; o recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); e o acesso ao seguro desemprego. A lei trouxe também a previsão do sistema Simples Doméstico, visando facilitar o pagamento de tributos, contribuições e encargos[5].
Sobre as críticas à legislação por parte dos movimentos ligados às trabalhadoras domésticas estão: a exclusão das diaristas no escopo da lei, considerando que a legislação define, em seu artigo primeiro, o tempo mínimo de mais de dois dias por semana para ser considerado trabalho doméstico e, portanto, ter proteção legal; o acesso ao seguro desemprego diferenciado, considerando que as trabalhadoras domésticas passaram a ter direito a três meses do benefício, limitados a um salário mínimo, enquanto aos demais trabalhadores a legislação assegura cinco meses com valores proporcionais ao tempo de contribuição. Outra crítica à legislação é que ela prevê a regulamentação no local de trabalho, porém somente mediante o aviso prévio e em caráter disciplinador.[6]
Quando se analisa os impactos da lei, dez anos depois da sua aprovação, é importante ter em vista a conjuntura política econômica anterior e posterior ao progresso legislativo. Os anos que antecederam a aprovação da PEC das domésticas foram de forte crescimento econômico e aumento do número de postos de trabalho formais nos setores de serviços, que foram ocupados principalmente por jovens mulheres negras. Essa conjuntura, somada às mudanças demográficas, com a redução do número de membros das famílias, levou tanto a uma redução na oferta de trabalhadoras domésticas como também na demanda.
Além disso, o perfil das trabalhadoras domésticas modificou-se profundamente. Até o final dos anos 1990, uma trabalhadora doméstica típica era uma jovem mulher negra migrante, vinda de regiões pobres do país e, muitas vezes, trabalhava em troca de moradia e alimentação. Essa atividade, nos anos 2000, passou a ser exercida principalmente por mulheres maduras, com mais de 40 anos e chefes de família[7][8]. Previa-se, portanto, que a queda na oferta das trabalhadoras domésticas pressionaria para a ampliação de serviços de cuidados e avanços nas legislações “amigas à família” como, por exemplo, a licença parental, licenças para cuidados de idosos, entre outras. Apostava-se, por conseguinte, em avanços no sistema de relações de cuidados no Brasil. A PEC das domésticas, por sua vez, levaria a uma maior formalização da categoria e melhoria na qualidade do emprego.
Os anos que sucederam a Lei das Domésticas, entretanto, foram de interrupção da ampliação de direitos trabalhistas e crescimento do nível de emprego formal. Houve uma ruptura política importante com o impeachment da então presidenta Dilma, em 2015, que foi sucedido pela implementação de um projeto de cunho neoliberal, descrito no documento “Ponte para o Futuro”. Este teve como principais motes a flexibilização dos direitos trabalhistas e previdenciários, além da redução do tamanho do Estado. Dentre as reformas implementadas, destacam-se a Trabalhista, em 2017, e o Novo Regime Fiscal, aprovado em 2016. Além das amplas mudanças legislativas, a economia mundial foi impactada profundamente pela pandemia da Covid-19 que, no Brasil, atingiu principalmente as ocupações exercidas pelas mulheres de baixa renda, entre as quais, a doméstica.
Os avanços na legislação das domésticas foram contrapesados com os retrocessos que a sucederam. Passados dez anos da aprovação da PEC, há tendências de permanências nas mudanças do perfil das trabalhadoras e na dinâmica do emprego vigentes ao longo dos anos 2000 até a aprovação da PEC, mas também retrocessos, principalmente em termos de formalização e remuneração da categoria.
Segundo estudo realizado pelo Dieese[9], com base nos dados da PNAD-C, o trabalho doméstico, em 2013, correspondia a 6,3% do total da população ocupada, e 14,2% dentre as mulheres ocupadas. Estes percentuais passaram para 5,9% e 12,5%, respectivamente, ao final de 2022. A tendência de amadurecimento das trabalhadoras se manteve, com redução das faixas etárias entre 14 a 17 anos em 50% e elevação das faixas entre 45 a 59 anos em 25%, e de 60 anos ou mais em 70%. A maior concentração de trabalhadoras deixou de estar na faixa de 30 a 44 anos, que representava 42,5% em 2013, alcançando 35,9% em 2022, e passou a faixa de 45 a 59 anos, que concentrava 32,1% das trabalhadoras em 2013, aumentando para 40,2% em 2022.
Por outro lado, o mesmo estudo aponta para a redução na qualidade da ocupação doméstica, com menor percentual de trabalhadoras com carteira assinada, que passou de 30,4% do total da categoria em 2013 para 24,7% em 2022, uma queda de 5,7 pontos percentuais (p.p.). A redução na formalização foi acompanhada pela queda das trabalhadoras domésticas contribuintes para a previdência social, que passaram de 37,9% em 2013 para 35,3% em 2022, uma redução de 2,6 p.p.. Concomitante, houve uma redução na remuneração média mensal das trabalhadoras domésticas, que passou de R$ 1.063,00, em 2013, para R$ 1.051,00, em 2022. Em 2013, a remuneração média das trabalhadoras domésticas correspondia a 47,6% do total das trabalhadoras ocupadas, passando a 44,9% ao final de 2022.
Os dados indicam, por conseguinte, que o cenário de retrocessos econômicos, políticos e trabalhistas na última década se sobrepuseram aos avanços legislativos alcançados pela PEC. O aumento da média de idade das trabalhadoras domésticas, concomitante à redução da formalização, coloca essas mulheres e suas famílias em situação de vulnerabilidade extrema, além de representar um sério problema previdenciário. Este cenário ficou explícito durante a pandemia da Covid-19, em que milhares de trabalhadoras foram demitidas e não tiveram acesso ao seguro-desemprego.
Há, portanto, grandes desafios para o governo, tanto no âmbito federal quanto no estadual e municipal, em que pese a tendência de crescimento das trabalhadoras diaristas, que passaram de 37,5%, em 2013, para 43,6%, em 2022[10], e estão desassistidas pela legislação atual. Além disso, apesar das mensalistas ainda serem maioria, 56,4%, a informalidade permanece em mais de 70%. Ou seja, seus empregadores estão em situação irregular, o que demonstra a falta de fiscalização dos domicílios. A reforma trabalhista também teve reflexos importantes nesse ínterim, considerando a possibilidade de contratações via microempreendedor individual (MEI) e a maior dificuldade de acessar a Justiça do Trabalho.
Esse cenário ocorre em um contexto de acelerado envelhecimento populacional no Brasil, o que acarreta maior demanda por cuidados. As trabalhadoras domésticas ofertam tanto atividades de cuidados diretos quanto indiretos, inclusive há uma tendência de crescimento das trabalhadoras de cuidados diretos[11]. A precarização da ocupação doméstica e a falta de políticas voltadas para este setor impacta, portanto, toda a sociedade brasileira, mas principalmente as mulheres e meninas pobres e negras. É necessário, para além dos avanços legislativos, mudanças profundas nas estruturas relacionadas à oferta de trabalhos de cuidados, para que estes sejam valorizados, reconhecidos e redistribuídos por toda a sociedade.
Notas
[1] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), média trimestral 2022.
[2] Ao longo deste texto iremos usar o termo trabalhadoras no feminino, ao se referir às trabalhadoras e trabalhadores domésticos no Brasil, porque a maioria absoluta é composta por mulheres (91,4% em 2022)
[3] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Domestic workers across the world:global and regional statistics and the extent of legal protection. Genebra: 2013. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/@publ/documents/publication/wcms_173363.pdf.
[4] VIECELI, C. P; WÜNSCH J. G; FREITAS, P. de; SANTOS, T. S. dos. Direitos parcelados: trajetória da legislação do emprego doméstico no Brasil. In: VIECELI, C. P.; WÜNSCH, J. G.; STEFFEN, M. W. (orgs); HORN, C. H. (coord.). Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, trajetórias e regulamentação. São Paulo: LTr, 2017. Cap. 6.
[5] Ver nota 4
[6] Ver nota 4
[7] HORN, C. H.; VIECELI, C. P. Continuidade e mudança no emprego doméstico no Brasil, 1996-2013. In: VIECELI, C. P.; WÜNSCH, J. G.; STEFFEN, M. W. (orgs); HORN, C. H. (coord.). Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, trajetórias e regulamentação. São Paulo: LTr, 2017. Cap. 4.
[8] Essa mudança foi ilustrada no cinema pelo aclamado filme “Que horas ela volta” de 2015, dirigido por Anna Muylaert e protagonizado por Regina Casé.
[9] https://www.dieese.org.br/estudosepesquisas/2023/estPesq106trabDomestico.pdf
[10] https://www.dieese.org.br/estudosepesquisas/2023/estPesq106trabDomestico.pdf
[11] As trabalhadoras de cuidados pessoais a domicílios e de crianças passaram de aproximadamente 14,3%, em 2013, para 23%, em 2022, dentre o total das trabalhadoras domésticas, conforme: https://www.dieese.org.br/estudosepesquisas/2023/estPesq106trabDomestico.pdf
Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre, doutora e pós-doutora em economia pela FCE/UFRGS, analista em gênero pelo Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é economista do DIEESE, colunista do site DMT, e professora da ESAG/UDESC.