México, Vietnã e Espanha desafiam receituários neoliberais apostam em processos participativos, ampliação de direitos e inovadora regulação do trabalho na Era Digital.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 30/05/2022
No início dos anos de 1990, o fim da Guerra Fria revelou a ausência de alternativas ao capitalismo ocidental que se despedia da Era Industrial. Na sequência, a realização de sucessivas reformas laborais buscou elevar a taxa de lucro das empresas na tentativa de conter o processo do deslocamento da produção manufatureira do Ocidente (desterritorialização) para o Oriente (reterritorialização).
Em grande medida, os países do Oriente trataram de adaptar suas legislações trabalhistas nacionais ao novo contexto da reestruturação capitalista ocidental. Na China, por exemplo, a regulamentação do recrutamento de trabalhadores por agências de emprego a partir de 1986 alterou o modelo contratual do emprego vitalício universal implementado em 1951.
Também no Vietnã, a promulgação do Código do Trabalho em 1994 esteve em linha com a trajetória das reformas econômicas iniciada ainda nos anos de 1980. No caso do desenlace da União Soviética, em 1991, o fracasso do reformismo parcial adotado por Gorbachev (Perestroica) em 1987 levou consigo o desmonte do sistema de remuneração e retribuição do trabalho adotado desde 1918.
Com o avanço das cadeias globais de valor conduzidas pelo poder privado das grandes corporações transnacionais, a difusão das reformas neoliberais laborais se mostrou negativa ao mundo do trabalho herdado pela sociedade urbana e industrial ocidental. De um lado porque o desmonte gerado no interior dos sistemas de relações de trabalho instituídos em simultânea resposta ao sucesso da Revolução Russa (1917) e ao retrocesso da grande Depressão de 1929, não garantiu ocupação decente prometida nos anos de 1990.
De outro porque o alastramento da Era Digital no capitalismo ocidental passou a transcorrer sem considerar e incorporar os interesses e demandas do novo mundo do trabalho. Em plena transição para a sociedade de serviços, o grau de exploração da mão de obra se expandiu consideravelmente através da extensão e intensificação do trabalho permitidas pelas novas tecnologias de comunicação e informação.
Ainda na primeira metade da década de 1980, por exemplo, duas significativas derrotas impostas pelos patrões ao sindicalismo de referência mundial serviram de efeito de demonstração às tentativas de reorganização da classe do trabalho frente ao curso da revolução informacional. Nos Estados Unidos, por exemplo, a greve dos controladores de voo, em 1981, sofreu enérgica e imediata reação do governo Ronald Reagan (1981-1989) que a declarou ilegal, assim como procedeu a primeira-ministra Margareth Thatcher (1979-1990) na Inglaterra em relação à greve dos mineiros de 1984.
Nesse contexto, o receituário neoliberal foi obtendo maioria política em vários países do Ocidente, validando a flexibilização e a terceirização laboral desconstitutivas dos sistemas de relações de trabalho próprios da Era Industrial. No Brasil, o revés patronal imposto à greve dos petroleiros em 1995, durante o governo FHC (1995-2002), abriu a via da flexibilização e terceirização precarizante das relações de trabalho que seguiu confirmada pelas deformas trabalhista (2017) e previdenciária (2019) dos governos Temer (2016-18) e Bolsonaro (2019-2022).
Isso porque a crise financeira global de 2008 terminou servindo de álibi para que outro surto de reformas negativas ao trabalho fosse implementado. Desde então, o movimento de flexibilização e terceirização se voltou mais fortemente à dissolução da centralidade da relação salarial vinculada à remuneração da totalidade do tempo disponível para o labor.
Assim, o modelo de retribuição do trabalho contido no exclusivo pagamento por peça, produto ou meta de produção se propagou em marcha com o processo de digitalização das economias e sociedades. Mais uma vez, o neoliberalismo se serviu da retórica de modernização das relações laborais para prometer o alargamento da ocupação, mesmo que sem direitos, difundido pela lógica do empreendedorismo de si mesmo.
Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a realidade dos 126 países que realizaram algum tipo de reforma trabalhista negativa desde o final da década de 2000 foi praticamente a mesma. Ou seja, a redução no custo do trabalho para as empresas, o enfraquecimento dos sindicatos e a generalização da precarização desorganizativa do mundo laboral.
Diferentemente disso, percebe-se que ao término do primeiro quinto do século 21, alguns países passaram a implementar mudanças laborais de novo tipo. Depois de muito tempo, reformas positivas ao novo mundo do trabalho começaram a se materializar.
As recentes experiências do México (Lei Federal do Trabalho, 2019), do Vietnã (Código do Trabalho, 2021) e da Espanha (Reforma Díaz, 2022), bem como o borrador em curso da nova Constituição do Chile, não representam, necessariamente, uma reviravolta no sentido da supressão das reformas trabalhistas anteriores. Em vez da receita da modernidade falsa, assentada na perda dos direitos e na redução de custos patronais para gerar empregos, as reformas positivas do trabalho recém-chegadas reconhecem, ampliam e garantem direitos sociais e trabalhistas ao mundo do labor, tal como realmente existente.
Tudo isso constituído a partir de amplo diálogo integrativo e participativo, muito distinto do tradicional unilateralismo do pensamento único e da imposição autoritária e antidemocrática do receituário neoliberal. Para tanto, a garantia da centralidade da representação e da negociação coletiva da contratação laboral, bem como o espaço institucional próprio para a solução de controvérsias, sempre que necessário.
Ao mesmo tempo, destaca-se a implementação de inovadora regulação pública capaz de abarcar adicionais e novas temáticas do labor, próprias da Era Digital. Por isso, a formação e o trabalho à distância, por exemplo, encontram-se presentes nas reformas trabalhistas positivas, que em vez de destruir legislações passadas, constroem nova matriz institucional que permita atender à diversidade do trabalho humano (produtivo e reprodutivo).
O paradigma da reforma positiva do trabalho adotado – ainda em poucos países – descortina o horizonte de expectativas promissoras ao mundo do labor. Para um país como Brasil, cuja elite dirigente se esforça para cancelar o futuro da classe trabalhadora, a constituição de uma nova CLT para a Era Digital indicaria o quanto uma reforma de princípios democráticos estaria em sintonia com o potencial do novo e real mundo do trabalho.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.