As trabalhadoras em home office

Fotografia: Leonard Beck/Unsplash

Inclusão excluída no trabalho e nos lares durante a pandemia.

Denise Fincato

Fonte: Jota
Data original da publicação: 10/09/2020

Os estudiosos do teletrabalho sempre o viram como um instituto que, posto em prática, poderia ajudar a impulsionar uma nova revolução sociocultural disruptiva[1]. Natural, ao falar em revolução, esperar profundas alterações no status quo da existência humana e, como a tecnologia foi a propagadora dos grandes saltos de desenvolvimento da humanidade, prospectar que as relações de trabalho intermediadas pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC’s), teriam o potencial de viabilizar qualidade de vida e bem-estar. Sem observar a questão da marginalização digital de parte importante da população brasileira[2] e focando apenas no trabalho da mulher[3], o período de pandemia expôs a realidade crua dos arranjos sociais e o quão longe ainda se está do ideário constitucional de igualdade entre homens e mulheres.

Historicamente, às mulheres sempre couberam as tarefas decorrentes dos cuidados do lar e dos integrantes da família e, até pouco tempo no Brasil, sua contratação para o trabalho subordinado deveria ser autorizada pelo marido[4].

No entanto, como consequência de diversos fatores, as mulheres foram se inserindo no cenário do trabalho remunerado e, dado que seguiram acumulando as tarefas doméstico-familiares (especialmente quando mães e “chefes de família”) tornaram-se as naturais destinatárias das formas flexíveis e/ou informais de trabalho, pois, em tese, estas lhes permitiriam a “conciliação” de suas duas vidas[5].

O teletrabalho, efetivamente regrado no Brasil no ano de 2017 (Lei nº13.467/2017 – Reforma Trabalhista), enquanto “nova” forma de trabalho, está ancorado na ideia de flexibilidade e exige que a distância entre empregado e empregador seja mediada pelas TIC´s. A desterritorialização e a atemporalidade são suas notas identificadoras, havendo diversos estudos que o apontam como vetor da globalização do trabalho[6] ou mecanismo para inclusão de deficientes[7] e mulheres[8].

A MP nº 927/2020[9] estimulou a adoção desta forma de prestação de serviços durante a pandemia, a partir da simplificação temporária de seus requisitos formais, o que contribuiu para firmar a certeza de sua viabilidade, pois o setor produtivo vislumbrou a possibilidade de enxugamento de estruturas e custos, sem perda do controle de sua mão de obra, já tendo sinalizado que, passado o isolamento social, no que for possível, seguirá utilizando o teletrabalho[10].

O teletrabalho pandêmico assumiu a feição home office (em domicílio) em razão da obrigação de isolamento social, que pôs todos em suas casas. Isto levou o trabalho para dentro dos lares e o inseriu de forma abrupta na dinâmica familiar. Concomitantemente, creches e escolas fecharam suas portas e passaram a ministrar aulas em regime remoto, transferindo ao núcleo familiar o dever de acompanhamento das atividades de crianças menores. O funcionamento das famílias foi posto à prova, bem como as condutas de seus integrantes quanto à divisão sexual do trabalho, doméstico ou não.

Estudos sobre a (des)igualdade de gênero no trabalho e nos afazeres domésticos já existiam à fartura e todos apontavam para a continuidade de padrões discriminatórios e de uma longa estrada a trilhar no tocante às mulheres, se desejosas em alcançar os mesmos patamares ocupados por homens, quer na vida conjugal, quer no âmbito profissional.

Mas o fato novo do isolamento social e da coabitação continuada forçosa levava a, em tese, novas possibilidades de repactuações, no seio familiar e no âmago das corporações. E é justamente aí que se centra esta reflexão: sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à igualdade de gêneros, o que se pode dizer acerca da adoção do teletrabalho durante a pandemia de COVID-19?

Observando os relatos sobre a vida das teletrabalhadoras durante tal interregno, que conclusões podem ser registradas? Estaria o teletrabalho servindo à manutenção de um marco vivencial no qual pertencem ao gênero feminino as (pre)ocupações de natureza intrafamiliar? Estaria o teletrabalho servindo ao adoecimento, físico e psicoemocional de mulheres? Em que a empresa poderia (ou deveria?) intervir?

Foram comuns os relatos de carência de infraestrutura e inadaptação ao regime remoto e viralizaram os episódios de crianças “invadindo o trabalho” dos pais para saudar aos participantes de uma telereunião[11], alterar as configurações do aplicativo de transmissão[12] ou pedir alimento[13]. A maioria destes momentos envolveu teletrabalhadoras e a análise deste quadro fático envolve o debate sobre padrões culturais (repetição dos modelos familiares patriarcais) e/ou questões subsistenciais (necessidade de prover o sustento da família).

A pandemia revelou a continuidade e, quiçá, o acirramento do modelo social em que a mulher é “responsável natural” pelos afazeres doméstico-familiares, mesmo que o homem também esteja em casa e que ambos precisem teletrabalhar. Foram ouvidos, lidos e compartilhados casos de mulheres extenuadas[14], mulheres que cederam seus equipamentos de trabalho para os filhos estudarem[15], mulheres com ansiedade e depressão[16], ameaçadas de perda do emprego por não atingimento de metas (pela soma dos motivos retro)[17], entre outros.

Foram publicadas matérias alertando para o fato de que a pandemia estava ampliando o desequilíbrio de gênero em certos nichos[18], que no teletrabalho se trabalha mais (ou mais intensamente)[19] e de que havia uma certa desilusão com o teletrabalho[20]. Obviamente que a permear estes relatos, estão fatores extras, como o medo da morte por COVID-19, a falta de dinheiro, as alterações nas normas e regimes trabalhistas e a sensação de desamparo diante da instabilidade política. Sim, são tempos tipicamente pós-modernos, em que os dias são regidos por incertezas, complexidades e ambiguidades que só fazem destacar a fragilidade humana e a vulnerabilidade de cada um.

Constata-se que o problema não está no teletrabalho ou na pandemia, mas nas entranhas sociais e que a nova forma de trabalho pode estar contribuindo para o fortalecimento e a perpetuação das desigualdades e discriminações de gênero, agora não apenas no ambiente de trabalho, mas também no cerne doméstico, pois estas nunca deixaram de existir[21].

Os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade de gêneros continuam regendo o sistema jurídico e informando tutelas jurisdicionais e produção legislativa, mas não sensibilizam os estratos sociais[22], onde seguem sendo uma abstração jurídica.

Da forma como posta a realidade, o teletrabalho pode contribuir para a continuidade de práticas discriminatórias em relação à mulher, parecendo que a solução para o problema do desequilíbrio de gênero em relações sociais é um verdadeiro “Nó de Górdio”, complexo e aparentemente não desfazível, uma vez que reclama desde mudanças subjetivas e socioculturais a políticas públicas, passando, obviamente, por iniciativas empresariais de responsabilidade social.

Reza a lenda que o “Nó de Górdio” foi desfeito por Alexandre Magno, que ousou pensar de forma simples e fora dos padrões: não tentou desatar a corda, como todos até então haviam feito, cortou-a a um só golpe. A expressão “desfazer o nó de Górdio” significa resolver um problema complexo de forma simples e eficaz. Não há dúvidas de que os problemas advindos da desigualdade na divisão sexual, quer nos cuidados da família, quer nas relações de trabalho, é complexo. Mas condutas simples, reiteradas e ampliadas, podem levar a bons caminhos.

Uma norma constitucional reflete os valores, desejos e projetos de uma sociedade e a CRFB/1988 estatui a igualdade de gêneros, em especial nos focos principais desta reflexão: gestão familiar e trabalho. Políticas Públicas são desejáveis e necessárias, inclusive as de âmbito internacional[23], mas é no dia a dia da sociedade civil organizada que atos simples e eficazes podem fazer a diferença, realizando o desiderato constitucional da equidade.

Destarte, na prática advocatícia trabalhista pode-se testemunhar a sensível evolução no pensamento igualitário de alguns gestores de recursos humanos[24]. Concretizadas na valorização e promoção do trabalho da mulher[25] ou no incremento de licenças parentais[26] por nascimento de filhos[27], por exemplo, as novas práticas empresariais[28] têm efeito revolucionário e pulverizador, uma vez que o benefício concedido impregnará seus stakeholders e também o entorno pessoal dos empregados, servindo de inspiração a novas e reiteradas práticas igualitárias e transformadoras.

Daí que, aproveitando o momento pandêmico e o fato de que parte importante da população ainda está em regime de trabalho remoto, no qual incumbe ao empregador instruir seus funcionários, de maneira expressa e ostensiva, acerca da preservação da saúde, higiene e segurança ocupacionais[29], sugere-se que os empregadores, de posse da informação de que os riscos ergonômicos e psicossociais são os de maior incidência no home office, no cumprimento de seu dever legal e em atenção à sua responsabilidade social, promovam a educação para a igualdade de gêneros, mediante webinares, cartilhas ou  treinamentos online, atuando precaucionalmente para dissolver as circunstâncias de extrema fadiga, física e psicoemocional, das mulheres teletrabalhadoras e, por consequência, contribuindo para a superação do paradoxo de sua inclusão excluída.

A adaga que permitirá acabar com o “nó de Górdio” da desigualdade de gênero no teletrabalho está no ordenamento jurídico infraconstitucional e não é de manuseio complexo ou caro. Instruir é, em essência, educar e educar para a igualdade é, em essência, praticar a fraternidade que liberta.

Notas

[1] Diz-se que revoluções disruptivas, até hoje, foram apenas a 1ª e a 4ª Revoluções Industriais, pois, de fato, imprimiram uma nova forma de ser e (inter)agir aos seres humanos. Nas demais, houve uma evolução incremental da tecnologia, sem maiores alterações no seu padrão existencial.

[2] Um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet. “Quase a metade das pessoas que não têm acesso à rede (41,6%) diz que o motivo para não acessar é não saber usar. Uma a cada três (34,6%) diz não ter interesse. Para 11,8% delas, o serviço de acesso à internet é caro e para 5,7%, o equipamento necessário para acessar a internet, como celular, laptop e tablet, é caro”. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet. Publicado em 29 abr 2020, acessado em 06 set. 2020.

[3] O qual, não por acaso, mereceu atenção constitucional, vide: CRFB/88, art. 7º, XX: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; […]”

[4] Até 1989 (há apenas 31 anos, portanto) foi válida norma em que a autorização do marido para o trabalho da mulher casada era presunção juris tantum, ou seja, caso discordasse do trabalho da esposa, lhe era facultado pleitear “a rescisão do contrato de trabalho”  alegando que sua continuidade seria “suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família, perigo manifesto às condições peculiares da mulher […]”  (art. 446 § único da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), revogado pela Lei nº 7.855/89).

[5] MÉNDEZ, L.M. (dir). Conciliación de la vida laboral y familiar y crisis económica. Madrid: Delta, 2015.

[6] Neste sentido: RAMPANELLI, Y.M. Globalização, Revolução Informacional e Teletrabalho. Publicado em 07 mar. 2020. Disponível em https://www.ecodebate.com.br/2010/03/07/globalizacao-revolucao-informacional-e-teletrabalho-por-iury-magalhaes-rampanelli/ Acessado em 06 set. 2020

[7] Neste sentido: BUBLITZ, M. D. Pessoa com deficiência e teletrabalho: reflexões à luz do valor social do trabalho (inclusão social e fraternidade). 2014. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/4245. Acessado em 06 set. 2020.

[8] Nesse sentido, ver: FINCATO, D.P.; MARSILLAC, J.P.I. O teletrabalho como instrumento de “inserção excluída” da mulher no mercado de trabalho. Revista Fórum Justiça do Trabalho. Ano 37, an. 439, jul. 2020. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p.37-68.

[9] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv927.htm (perdeu vigência em 19 jul. 2020). Acessado em 06 set. 2020.

[10] Neste sentido, ver: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/home-office-tendencia-apos-pandemia-o-que-diz-a-lei/. Acessado em 06 set 2020.

[11] https://www.dn.pt/mundo/a-filha-entrou-em-direto-na-sua-entrevista-para-a-televisao-e-foi-um-sucesso-12377988.html. Acessado em 06 set. 2020

[12] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/06/sem-querer-ministro-do-stj-participa-de-sessao-online-com-fundo-de-tubarao.htm. Acessado em 06 set. 2020

[13] https://revistacrescer.globo.com/Bebes/Amamentacao/noticia/2020/05/polemica-colega-pede-que-mae-amamentando-desligue-camera-em-videoconferencia.html. Acessado em 06 set. 2020

[14] https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-28/trabalho-de-madrugada-porque-nao-dou-conta-de-tudo-em-casa-a-nova-normalidade-massacra-as-mulheres.html. Acessado em 06 set. 2020.

[15] https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/lina-santos/teletrabalho-e-aulas-a-tres-criancas-o-unico-milagre-que-veremos-em-2020-12096077.html. Acessado em 06 set. 2020

[16]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/trabalho-e-formacao/2020/04/26/interna-trabalhoeformacao-2019,848505/sobrecarga-atinge-mulheres-durante-a-quarentena-deixando-as-por-um-fio.shtml Acessado em 06 set. 2020

[17] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/05/26/pandemia-pode-acentuar-disparidade-entre-homens-e-mulheres-na-ciencia.htm Acessado em 06 set. 2020

[18] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/home-office-na-pandemia-amplia-desequilibrio-de-genero-na-justica.shtml Acessado em 06 set. 2020

[19] https://gerencianet.com.br/blog/hora-extra-em-teletrabalho/ Acessado em 06 set. 2020

[20] https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-08-09/o-teletrabalho-nao-era-isto.html Acessado em 06 set. 2020

[21] Não à toa o benefício social instituído durante a pandemia (auxílio emergencial ou “coronavoucher”) teve seu valor dobrado para as vindicantes “chefes de família”. Art. 2º § 3º da Lei nº 13.982/2020 – Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm Acessado em 06 set. 2020

[22] Verificou-se que não há distinção quanto à renda ou formação dos envolvidos. Em todas as camadas sociais houve idêntico fenômeno de assunção das tarefas familiares, de forma acumulativa ao trabalho remunerado, exclusiva ou majoritariamente pelas mulheres.

[23] https://es.weforum.org/reports/gender-gap-2020-report-100-years-pay-equality Acessado em 06 set. 2020

[24] Guia de boas práticas para inclusão de gênero nas empresas. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/blogs/naiara-bertao/post/2020/07/fin4she-conheca-o-projeto-que-quer-ajudar-empresas-a-chegarem-a-igualdade-de-genero.ghtml

[25] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/contratada-gravida-de-gemeos-executiva-foi-promovida-na-licenca-maternidade.shtml Acessado em 06 set. 2020

[26] Via políticas corporativas ou instrumentos negociais coletivos.

[27] https://www.generonumero.media/licenca_maternidade_paternidade/ Acessado em 06 set. 2020

[28] Vide conceito de responsabilidade social empresarial contido na norma ISO 26.000 e Decreto nº 9.571/2018 sobre Direitos Humanos no âmbito empresarial (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/Decreto/D9571.htm)  Acessado em 06 set. 2020

[29] ARt. 75-E da CLT: “O empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho.”

Denise Fincato é advogada e consultora trabalhista. Sócia de MIelke e Lucena Advogados. Professora Titular de Direito do Trabalho na PUCRS. Pesquisadora. Pós-Doutora em Direito do Trabalho.

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