Acesso à Justiça: o drama da classe trabalhadora não começou com a reforma trabalhista

Se as políticas de adestramento destinadas a submeter, docilizar e disciplinar o trabalhador aos interesses do capital não forem bem compreendidas e analisadas, acreditar-se-á que a dificuldade de acesso à justiça do trabalho é uma novidade trazida exclusivamente pela legislação que reformou a CLT.

Átila Da Rold Roesler e Gabriela Goergen de Oliveira

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 12/12/2017

É de conhecimento geral que a “reforma trabalhista” (Lei 13.467/17) teve, dentre seus principais objetivos, dificultar o acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho. Entretanto, muito antes da reforma trabalhista entrar em vigor, a busca dos trabalhadores à Justiça do Trabalho nunca foi algo de simples compreensão.

Não é à toa que a Justiça do Trabalho é chamada de “justiça dos desempregados” – afinal, a maioria dos trabalhadores ingressa com uma reclamatória após a rescisão contratual. Porém, a indagação que deu origem a esse artigo foi a seguinte: Por qual motivo, mesmo após rescindido o contrato de trabalho, muitos trabalhadores deixam de procurar o Judiciário? Por que a submissão do empregado ao patrão persiste mesmo após o término da relação de trabalho? O Direito do Trabalho não é uma espécie de bolha apartada do mundo real em que vivemos.

A relação que liga empregador e empregado não pode ser analisada unicamente a partir dos requisitos legais previstos na CLT.

Há muito mais do que isso, lógico. A presença de outros elementos sociais nessa relação não pode ser esquecida, inclusive, há fatores históricos e até mesmo de cunho moral que explicam essa questão. Nesse contexto, o acesso à justiça não pode ser analisado exclusivamente a partir de uma perspectiva dogmática.

A relação de emprego é, por si só, uma relação de poder – e isso não está escrito na legislação tampouco na doutrina e na jurisprudência. E é exatamente a existência dessa relação de poder entre empregador e empregado, sobretudo pela subordinação ou, na linguagem jurídica – poder diretivo do empregador, que dá início aos obstáculos – muitas vezes intransponíveis – ao efetivo e real acesso à justiça pelo empregado.

O fator subordinação está intrinsecamente relacionado com o exercício do poder de dominação que permeia a relação de trabalho. Para se manter enquanto modelo econômico desenvolvido mundialmente, o capitalismo precisou desenvolver mecanismos e contar com a engenhosidade de diversas formas de exercício do poder, as quais são aplicadas cotidianamente nas relações de trabalho – muitas até propositadamente imperceptíveis à classe trabalhadora.

Na sociedade burguesa capitalista, discursos foram especificamente criados para servir de alicerce à relação de poder entre patrão e empregado, bem como para manter a relação de subordinação do trabalhador para com o seu empregador.

Políticas de adestramento, docilidade, submissão, disciplina, coação disfarçada, entre outros, passaram a ser estudadas e amplamente aplicadas pelos empregadores – o que culmina e reforça, ao fim, o poder do patrão e a submissão do empregado.

O discurso do capital modernizou-se, como sempre. Aliás, essa é uma característica do Capital: transformar-se, adaptar-se, auto preservar-se. Uma das mais poderosas ferramentas que passou a ser utilizada é a linguagem, visando reforçar a alienação do trabalhador. Foi introduzida a figura do “colaborador” – vendida tal qual a maldosa reforma trabalhista, para “modernizar” as relações de trabalho. A nomenclatura do obreiro foi alterada, e o trabalhador/empregado não é mais tratado como tal, mas sim como “colaborador”. Trata-se de mais uma tática utilizada pelo empresariado a fim de que seus empregados não tenham consciência de classe, de seus direitos mínimos e, ao fim, passem a não lutar pela sua plena emancipação.

Quando os trabalhadores são chamados de ‘colaboradores’, inconscientemente passam a crer que integram a uma classe que não lhes pertence.

A perversão do capital não para por aí. A classe patronal tem investido em outros meios ardilosos de cooptação do trabalhador, tais como prêmios, bônus, viagens e “presentes” de fim-de-ano… Há ainda aqueles que iludem o trabalhador sobre a qualidade do seu ambiente de trabalho, fornecendo um determinado valor para que os empregados comprem artigos pessoais para decorar seu ambiente de trabalho. Alguns vão mais além, permitindo que os trabalhadores levem seus animais de estimação (“pets”, na linguagem mais utilizada) para o local de trabalho, com a falsa ideia de que são empresas “amigas e parceiras” dos empregados – ou melhor dizendo, dos “colaboradores”.

A linguagem utilizada e os falsos afagos do empregador, com único e exclusivo fim de docilizar, alienar e domesticar o trabalhador, acabam por anular o senso de consciência de classe, gerando o senso de gratidão do empregado para com o patrão. Grandes empresas não medem esforços para fazer com que todos os empregados se sintam parte da mesma família (e não de uma empresa que extrai a sua força de trabalho pelo menor custo possível). A empresa que os explora e deles retira todo o seu lucro os faz crer que está preocupada com a sua qualidade de vida e o seu bem-estar. Ledo engano. Não há gratidão, há exploração.

As políticas de adestramento do empregado foram tão bem construídas e incutidas na mente do trabalhador, que passaram a ser um dos grandes fatores que impede o acesso à justiça. A submissão do empregado é tão forte que extrapola os limites da relação de trabalho – permanecendo mesmo após a rescisão contratual. Eis aí o grande empecilho capaz de afastar o trabalhador da Justiça do Trabalho.

Tanto investimento por parte do empregador não seria em vão caso não gerasse efetivos resultados – docilidade, compreensão e rendimento do empregado. Tudo isso, somado ao falso senso de gratidão do trabalhador e temor reverencial em relação ao patrão, limitam e até obstaculizam o empregado de reaver seus direitos que, não raras vezes, são sorrateiramente retirados ao longo do contrato.

São por essas e outras razões que fica claro que não é somente a perversa “reforma trabalhista” que impede o acesso à Justiça do Trabalho. É a própria sociedade capitalista que cria barreiras para que o trabalhador busque recuperar um pouco de dignidade ou seja, seus direitos mínimos garantidos constitucionalmente.

Não é novidade que trabalhadores que sequer estejam recebendo o salário em dia deixem de fazer greves, manifestações, paralisações, afinal, estão ludibriados pelo maldoso argumento de “crise” (fictícia ou não) – e de que todos devem contribuir em prol do sucesso da empresa (apesar de o patrão estar gozando férias em Miami ou qualquer outro lugar enquanto sonega tributos e direitos trabalhistas básicos).

Nesse contexto de cooptação do subconsciente do trabalhador, que gera a sua submissão, docilidade e senso de gratidão para com o patrão, é que pode ser facilmente constatado que o poder patronal e a subordinação ultrapassam a relação jurídica estabelecida entre as partes. Quando da rescisão contratual, o trabalhador, completamente submerso no discurso do capital, dificilmente vai procurar a Justiça do Trabalho para buscar seus direitos, pois não consegue perceber a exploração a qual foi submetido. Acredita que a empresa não lhe trata como um simples empregado – mas como “um membro da família”, não lhe restando mais qualquer sentimento de pertencimento à classe que é explorada pelos detentores dos meios de produção.

Mesmo aqueles empregados que conseguem ter consciência de classe e que direitos trabalhistas lhes foram sonegados não recorrerem à justiça do trabalho, pois restou incutido em seu subconsciente sentimentos que lhes impedem de ingressar com uma reclamatória trabalhista – pois, no seu íntimo, seria uma ingratidão acionar o antigo patrão na Justiça do Trabalho. Afinal, esse “colaborador” se sentia parte “do time”, “vestia a camisa” da empresa.

É inegável que a “reforma trabalhista” é um grande entrave que distancia ainda mais o trabalhador da Justiça laboral. A possibilidade do pagamento de custas processuais e periciais em caso de sucumbência, mesmo que o trabalhador seja beneficiário da assistência judiciária gratuita, veio apenas para agravar esse verdadeiro temor e afastar o empregado da justiça laboral. A Lei que reformou a CLT talvez tenha sido apenas a gota d’água, o golpe final, o ultimato ao trabalhador: “não ouse procurar a Justiça do Trabalho”.

Mas o que deve ser considerado é o fato de que muito antes da Lei 13.467/17 passar a vigorar, a procura dos trabalhadores pela Justiça do Trabalho já encontrava obstáculos em elementos muitas vezes imperceptíveis, no seu próprio subconsciente.

É de modo sutil que os trabalhadores foram docilizados e domesticados pelo capital, cooptados pelo seu perverso discurso, de modo que a busca pela Justiça do Trabalho encontra obstáculos iniciais. Docilidade, submissão, disciplina, coação explícita ou disfarçada, entre outros, passaram a ser estudadas e amplamente aplicadas pelos empregadores – o que culmina e reforça o poder do patrão e a submissão do empregado e, ao fim, que o trabalhador deixe de recorrer à Justiça laboral.

Se as políticas de adestramento destinadas a submeter, docilizar e disciplinar o trabalhador aos interesses do capital não forem bem compreendidas e analisadas, acreditar-se-á que a dificuldade de acesso à justiça do trabalho é uma novidade trazida exclusivamente pela legislação que reformou a CLT.

Sem uma análise crítica da história e da sociedade não há como compreender a relação entre Capital x trabalho e tampouco o Direito do Trabalho – que, como já referido, não pode ser tratado de maneira isolada e dogmática.

Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Gabriela Goergen de Oliveira é advogada trabalhista, especialista em Direito e Processo do Trabalho.

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