‘Seus problemas acabaram?’ Reforma Trabalhista não é porta para fraude ao Direito do Trabalho.
Cássio Casagrande
Fonte: Jota
Data original da publicação: 11/12/2017
“A lei escrita pode ser obra de uma ilusão, de um capricho, de um momento de pressa, ou qualquer outra coisa menos ponderável; o uso, por isso mesmo que tem o consenso diuturno de todos, exprime a alma universal dos homens e das coisas.”
Machado de Assis, “A Semana”, Gazeta de Notícias, 25 de outubro de 1896.
Os empresários com quem tenho conversado estão empolgados com a Reforma Trabalhista aprovada pelo Congresso. Eu diria que alguns estão exageradamente otimistas. Muitos acreditam na promessa dos legisladores e pensam que “seus problemas acabaram”, como anunciavam as Organizações Tabajara no extinto humorístico da TV. Ouvi alguns membros da classe patronal afirmando coisas como “agora poderemos terceirizar tudo”, ou “estamos livres para contratar autônomos e a Justiça do Trabalho nada poderá fazer”. De outro lado, alguns amigos meus, defensores radicais dos direitos sociais, lamentam que “o Direito do Trabalho acabou no Brasil”. Será mesmo este o cenário dantesco que nos aguarda?
É compreensível que o patronato esteja acreditando que, finalmente, a “classe empresária vai ao paraíso”. Afinal, a reforma trabalhista é obra do empregador, pelo empregador, para o empregador. No entanto, seria de boa cautela lembrar-lhes que o direito não é feito apenas de leis supostamente objetivas (se assim fosse, os computadores poderiam ser programados para resolver todos os nossos problemas jurídicos). Subjacente às leis estão os princípios que as constituem – e, sim, há princípios na CLT, onde a reforma foi enxertada. Outro detalhe importante: pelo menos por enquanto, devemos interpretar as leis de acordo com a Constituição – e não o contrário. Além disto, mesmo nos países da Civil Law, há o peso da “tradição jurídica”, isto é, as práticas jurídicas vivenciadas, compartilhadas e consolidadas pela comunidade ao longo do tempo. O direito não se resume a um sistema legal puramente abstrato, lógico, autônomo e dissociado da realidade social, embora alguns ainda acreditem nesta fantasia positivista.
Mauro Cappelletti, no seu clássico e brilhante Juízes Legisladores?, lembra a lapidar frase do consagrado jurista americano Roscoe Pound, para quem “a legislação, quando não se limita a colocar em forma de lei vinculante o que já foi adquirido pela experiência jurisdicional, implica todas as dificuldades e perigos próprios da profecia“. E, embora Pound estivesse se referindo aos sistemas de Common Law, essa assertiva é ainda mais preciosa em sistemas de direito romano-germânico, nos quais se deposita grande fé na racionalidade abstrata do legislativo, em desfavor da experiência social dos destinatários da norma. Ou seja, o legislador, com seus pretensos poderes racionais, antecipa e “prevê” os efeitos da lei, mas ignora as suas “consequências imprevistas” (as unintended consequences foram objeto da atenção de John Locke, Adam Smith, Alexis de Tocqueville e, mais recentemente, no século XX, foram estudadas profundamente pelo sociólogo Robert K. Merton).
Então, não quero ser estraga prazeres da classe patronal, mas muito da reforma trabalhista simplesmente “não vai pegar”, porque há ali dispositivos que são um despautério e estão completamente dissociados da realidade social e das práticas econômicas do mundo do trabalho (alguém aí lembra que fim levaram as Comissões de Conciliação Prévia e o contrato a tempo parcial da era FHC? Sim, eles estão em vigor mas viraram “letra morta”). E antes que algum incauto tripudie sobre o que acabo de dizer, sacando do bolso a batida frase “só mesmo no Brasil há leis que pegam e que não pegam”, eu preventivamente esclareço: em qualquer lugar do mundo há leis que pegam e não pegam. No Brasil, nos Estados Unidos, na Suécia, em Botsuana ou na Papua Nova Guiné. Basta que a lei seja ruim e inadequada à realidade e ela será rejeitada (os americanos batizaram este fenômeno de backlash). A esse respeito, eu recomendo o livro do Professor Lawrence M. Friedman, da Universidade de Stanford na Califórnia: Impact – How Law Affects Behavior (2016, Harvard University Press, 336 pgs). Ele explica nesta obra quais são os fatores que levam à eficácia ou ineficácia das leis – em todo e qualquer sistema jurídico.
Aliás, tendemos a acreditar que a “lei que não pega” representa a fragilidade de uma nação. Mas isto é um grande erro, como percebeu o maior gênio brasileiro, Machado de Assis, há mais de cem anos, na epígrafe que citamos no início. A “lei que não pega” representa a força da sociedade civil contra a despotismo da maioria (recorremos novamente ao insuperável Tocqueville); ela é uma vitória do cidadão e das suas tradições arraigadas contra a prepotência, o capricho, a demagogia e a corrupção do legislador. Vamos pensar apenas em dois exemplos de um país reputado pela força das suas instituições – os Estados Unidos. Basta que o leitor recorde e reflita sobre o que ocorreu no século XX com a “Lei Seca” e a legislação que criminalizou a homossexualidade naquele país: estas normas “não pegaram”, apesar de toda a brutalidade com que o Estado pretendeu fazê-las cumprir.
A chamada Lei Seca foi introduzida por emenda constitucional em 1919, ou seja, com grande maioria e incontroversa legitimidade do legislador. Mas qualquer um que tenha assistido a um filme de gangster dos anos 20 sabe que ela foi um verdadeiro fiasco. Os bebuns americanos se recusaram a cumpri-la de todas as formas e ela teve várias consequências não previstas: o aumento da criminalidade, da corrupção e da evasão fiscal. Como a lei “não pegou”, os legisladores tiveram que voltar atrás e revogar a emenda alguns anos mais tarde, em 1933. O mesmo se passou com as leis estaduais americanas que criminalizavam a homossexualidade. Na década de sessenta, os cinquenta estados da União criminalizavam a “sodomia”. Evidentemente, ninguém deixou de ser homossexual por causa destas normas, nem mesmo de manter relacionamentos homossexuais em razão da legislação democraticamente aprovada. As tentativas de dar cumprimento a estas regras foram ineficazes e só contribuíram para estigmatizar e aumentar o preconceito e a perseguição aos homossexuais, sem nenhum resultado positivo para a sociedade, até que tais normas foram finalmente declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte no caso Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).
É óbvio que não estou defendendo que nada da Reforma Trabalhista valerá, nem tento incitar a comunidade jurídica à desobediência civil. Apenas constato o que acontece com aspectos estapafúrdios e bizarros de qualquer lei: eles tendem a ser naturalmente rejeitados. E, vamos e venhamos, bizarrias e estroinices abundam na Lei 13467/17, como a tentativa de transformar artificialmente empregados em “autônomos” ou “microempresários”, de “terceirizar tudo”, e a pretensão de manter os empregados eternamente à disposição do empregador, sem pagar nada por isso.
Eu sei que chega a ser um pouco enfadonho enfrentar esses aspectos ridículos da “nova CLT”, que somente poderiam ser levados a sério em países de quinta categoria. Mas o problema é que a “lei está aí” e transmitindo uma mensagem péssima aos seus destinatários. Como lembra o mesmo professor Lawrence Friedman, acima citado, a mensagem da lei é mais poderosa do que a lei em si. E a mensagem que vem sendo transmitida ao público é a de que “liberou geral”, isto é, de que agora o empregador pode fazer o que bem entender com seus empregados (pois, afinal, “seus problemas acabaram”). E, supostamente, o empregado não pode reclamar, nem recorrer mais à Justiça do Trabalho para se defender destas iniquidades. Basta ver dois episódios que aconteceram recentemente no Rio de Janeiro após a entrada em vigor da “nova CLT” e que são bastante reveladores do “espírito da lei”. Vamos a eles.
Primeiro. A maior rede privada de hospitais da cidade, onde se internam e se tratam os cariocas abastados, resolveu transformar os seus mais de trezentos fisioterapeutas celetistas em “pequenos empresários”. Os fisioterapeutas laboravam com carteira registrada, cumprindo ordens e batendo o seu cartão de ponto. Mas algum gênio da administração hospitalar concluiu que o trabalho deles é semelhante ao de um pequeno empresário. Então, num passe de mágica, invocando o novo art. 442-B da CLT e as disposições sobre terceirização, determinou que eles fossem despedidos e readmitidos como “pessoa jurídica”. Os trabalhadores foram orientados a “se associar”(espontaneamente, é claro…) a empresas recém-criadas e constituídas apenas para prestar serviço ao hospital. Mas, no dia seguinte em que eles foram trabalhar como “pessoa jurídica” tudo continuava igual, eles tinham que cumprir o mesmo horário, obedecer aos mesmos chefes e desempenhar as mesmas funções. Foi um aparente milagre, como a transformação da água em vinho por Jesus – só que o vinho era incolor, insípido e inodoro. O Sindicato dos Fisioterapeutas do Rio de Janeiro denunciou a “mágica” ao Ministério do Trabalho e ao Ministério Público e a situação está sendo investigada. Diga-se que caso semelhante já ocorreu em São Paulo, mas felizmente a Justiça do Trabalho da capital paulista deferiu uma liminar para suspender o processo de “pejotização” em um estabelecimento hospitalar daquela cidade.
A segunda história é ainda mais curiosa. Na esteira da Reforma Trabalhista e no espírito “seus problemas acabaram”, o Presidente Temer resolveu facilitar mais ainda a vida dos empregadores supermercadistas. Ele assinou um decreto (de duvidosa constitucionalidade, diga-se), classificando os supermercados como “atividade essencial”, de modo a diminuir os óbices burocráticos à abertura destas lojas em domingos e feriados. Bem, mas esse óbices dizem respeito a eventuais dificuldades com os municípios, que normalmente regulam o funcionamento do comércio nos fins de semana. Ocorre que alguns empresários viram nisso uma sinalização do “liberou geral” e passaram a entender que não precisam nem mais negociar com os sindicatos se os trabalhadores terão que trabalhar no dia de descanso e quanto receberão a mais por isso.
Ora, não há nada parecido no decreto, e nem se poderia chegar a esta absurda conclusão, seja porque é obrigatória a participação do sindicato em qualquer negociação relativa a ampliação da jornada de trabalho (Constituição, arts. 7o. e 8o.), seja porque o próprio governo disse que o espírito da “nova CLT” era o de prestigiar a negociação coletiva (“negociado sobre o legislado”). Aliás, quem conhece países civilizados da Europa, como França e Alemanha, sabe que lá os supermercados não abrem aos domingos e feriados porque simplesmente os trabalhadores não querem trabalhar nestes dias e os sindicatos não abrem mão disto. Na Alemanha, nem os shopping centers abrem aos domingos tamanha é a firmeza dos trabalhadores em defender o direito de passar o domingo com sua família (sim, estamos falando da economia mais produtiva e pujante da Europa, que tem as leis trabalhistas menos flexíveis do Velho Continente).
Por sinal, quanto à “essencialidade” deste serviço, teria sido conveniente lembrar ao governo que a humanidade vive em cidades há pelo menos seis mil anos, sendo que em grande parte deste período os supermercados, armazéns e seus antecessores não abriam aos domingos e ninguém morreu de fome por conta disto. Mas, voltemos ao caso do Rio de Janeiro. Como os empresários de uma rede de supermercados acharam que agora “é um direito” abrir aos domingos e feriados sem discutir isso com os sindicatos, eles simplesmente resolveram cortar o adicional de 100% pago nestes dias e o salário de alguns empregados caiu pela metade. Resultado: a primeira greve de empregados de supermercado na história do Rio de Janeiro (liderada por mulheres e à revelia do sindicato). E os patrões, assustados, sentaram à mesa de negociação, agora com a participação do sindicato…
Então, seria recomendável que as empresas “Tabajara” pensassem bem antes de fraudar direitos de seus empregados sob o pretexto de “modernizar” as relações de trabalho. Os trabalhadores, sindicatos e instituições republicanas vão reagir, porque não devem aceitar passivamente viver em um “País Tabajara”.