
Cristina Pereira Vieceli
O debate político econômico das últimas semanas girou em torno principalmente das tentativas do executivo federal de aumentar a arrecadação, por meio de duas principais vias: o aumento das alíquotas e fatos geradores do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativo a Títulos e Valores Mobiliários (IOF) por meio de decreto, e a Medida Provisória 1.303/25 que trata sobre novas incidências tributárias e aumento de alíquotas de impostos já existentes. O decreto do IOF foi o ponto mais polêmico, haja vista que foi derrubado pelo Congresso Nacional via outro decreto vindo do legislativo (DPL). Pelo instrumento, o legislativo alegou que o executivo estaria desviando a finalidade do imposto, cujo objetivo é principalmente regulatório, e não fiscal.
A disputa entre executivo e legislativo pelo IOF foi parar no judiciário, o executivo alegou a inconstitucionalidade do PDL, considerando que é, de fato, sua prerrogativa a realização de decretos com a alteração de alíquotas de impostos. Nesse meio tempo, o executivo iniciou uma forte campanha nas redes sociais, buscando, por meio da narrativa de luta de classes, esclarecer as distorções atualmente vigentes no sistema tributário nacional, dentre as quais as desonerações tributárias sobre os super-ricos. Ou seja, o governo lançou mão de um argumento importante para reforçar a ideia da necessidade de mudanças no sistema tributário atual: a injustiça tributária, e os interesses por parte da classe de super-ricos, na manutenção do status quo.
O debate nas redes sociais ganhou fôlego e foi parar nas ruas, se unindo a outra pauta da agenda política progressista, que tem relação direta com a luta de classes: o fim da escala 6×1 e a necessidade de redução da jornada de trabalho sem redução de salário. Os dois pleitos, necessidade da reforma tributária e redução da jornada de trabalho, estão em votação em um plebiscito popular, que teve início em julho e irá perdurar até meados de setembro¹. A disputa da repartição da renda entre capital e trabalho, está colocada em debate nas duas votações, e, em ambas, a questão de gênero se entrecruza.
Em coluna passada analisei as relações entre a redução da jornada de trabalho no Brasil e suas conexões com as desigualdades de gênero². Também em outra coluna anterior³, tratei sobre as relações entre tributação e desigualdade de gênero, nos impostos diretos e indiretos. Nesta abordarei outro aspecto essencial neste âmbito, mas, ao mesmo tempo, pouco debatido publicamente: os gastos tributários. O conceito de gasto tributário, apesar de sua importância para a compreensão do sistema de tributação brasileiro, não é muito intuitivo e conhecido. É importante, portanto, inicialmente conceituar o que são esses mecanismos, e, a partir de então, analisar quais as suas relações com a justiça tributária, desigualdades sociais, e, em específico, as desigualdades de gênero. No fechamento tratarei sobre qual o cenário atual dos gastos tributários no Brasil.
O que são gastos tributários?
O termo gasto, aparentemente remete a um recurso que é despendido para alcançar algum objetivo. Por isso, a estranheza advinda: como pode ser ao mesmo tempo gasto e tributário? A explicação é simples, gasto tributário tem relação com o que o Estado deixa de arrecadar, e, portanto, deixa de gastar, a fim de beneficiar algum grupo ou segmento específico. Segundo o Manual de Boas Práticas na Medição do Gasto Tributário, elaborado pelo Centro Interamericano de Administrações Tributárias (CIAT, 2011)4, os gastos tributários designam recursos que o Estado deixa de receber, devido à existência, tanto de benefícios como de incentivos tributários, que reduzem a carga tributária de alguns contribuintes. Uma vez que o Estado não está arrecadando, os recursos, que poderiam ser destinados para políticas como saúde, educação, assistência social, infraestrutura pública, entre outros, também deixam de ser realizados.
Segundo o mesmo manual da CIAT existem dois principais tipos de gastos tributários: os incentivos e os benefícios tributários. Enquanto os primeiros estão direcionados para atrair investimentos, incentivar determinados setores ou regiões em detrimento de outras, promover o nível de emprego, o segundo tipo é direcionado às pessoas, com o objetivo de alcançar fins sociais. Existe um amplo rol de formas que os gastos tributários podem assumir, sejam eles: exceções, exclusões, taxas reduzidas, deduções, créditos, diferimentos, regimes simplificados, especiais ou promocionais, e devoluções.
À primeira vista, os gastos tributários parecem mecanismos interessantes, afinal, podem servir como instrumentos de incentivo à regiões e setores menos desenvolvidos ou mais vulneráveis, como por exemplo a Zona Franca de Manaus, ou o Simples Nacional, e mesmo regimes de impostos seletivos como a política de desoneração da Cesta Básica Nacional. No entanto, vivemos em um sistema em que vigora a luta de classes, como bem lembrado pelas atuais manifestações nas redes e nas ruas, e os gastos tributários também podem ser ferramentas que ampliam as desigualdades sociais. Isto ocorre na medida em que beneficiam setores e camadas populacionais que já são privilegiados dentro do sistema econômico.
Como essa parcela da população tem mais recursos financeiros, possuem também maior força de pressão e representação política. À exemplo disso, um levantamento realizado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), indica que, dentre a bancada de deputados federais eleitos em 2022, a maior parte declarou ser advogados (104) e empresários (84)5.
A utilização de gastos tributários como instrumento de política fiscal, portanto, pode gerar importantes distorções econômicas, aumentando as desigualdades sociais, tanto pela via da desoneração seletiva, como também pela redução dos gastos públicos que poderiam ser destinados principalmente para a efetivação de políticas sociais. Além disso, outro importante efeito dos gastos tributários, que advém da redução da arrecadação tributária, é o aumento do endividamento do Estado, e a pressão, por parte dos mesmos grupos beneficiados pelos gastos tributários, de cortes nos gastos públicos. Ou seja, a classe trabalhadora é penalizada tanto quando perde os recursos que deveriam ser arrecadados como também quando o Estado é pressionado pelo aumento das políticas de austeridade fiscal.
Mas, e o que essa conversa tem relação com desigualdade de gênero?
Qual a relação dos gastos tributários com as desigualdades de gênero?
A forma como o país tributa, ou deixa de tributar, tem impacto direto nas relações de gênero. Isto ocorre tanto pela maneira como os papéis sociais de homens e mulheres são construídos, como também por diferenças fisiológicas entre gêneros, que refletem em demandas de consumo específicas, por exemplo, em serviços e produtos de saúde6.
As diferenças de gênero são estruturantes da sociedade, e delimitam os espaços ocupados no mercado de trabalho e na divisão dos tempos de trabalho não remunerado voltados para os afazeres domésticos e de cuidados, e na demanda por serviços e recursos do Estado. Além disso, o gênero é um marcador importante na definição de perfis de consumo. Para além das questões fisiológicas apontadas anteriormente, alguns estudos realizados na América Latina indicam que, quando as mulheres são as responsáveis pelos domicílios, gastam maior proporção da renda familiar em artigos de consumo básicos, como alimentos, saúde, vestuário e habitação. Os homens, por outro lado, despendem uma proporção maior comparativamente em bens relacionados com transporte, tabagismo e aumento de ativos7.
Em relação ao mercado de trabalho, tema principal desta coluna e já tratado por diferentes vieses, vale ressaltar que a população feminina está inserida em espaços de menores remunerações, bem como participa das atividades remuneradas em menor percentual. Isto ocorre devido às desigualdades de distribuição de tempo; às diferentes formas de opressão e violência sofridas tanto nos domicílios, como também institucionalmente; às normas sociais, que definem os espaços destinados para homens e para as mulheres, e a valoração desigual em termos monetários destes locais. Vale lembrar ainda, que a população feminina no Brasil por longo período, não tinha o reconhecimento da cidadania plena, e não podia adquirir ativos8, fatos históricos que mudaram, mas de forma paulatina, e desigual, a depender da raça e território.
As mulheres, por estarem em maior número dentre a população de baixa renda, e serem as principais ofertantes dos trabalhos de cuidados não remunerados, dependem sobremaneira das políticas do Estado. Quando diminui o tamanho do Estado, e, portanto, reduzem-se as políticas voltadas para a oferta de escolas de educação infantil, escolas de tempo integral, investimento em infraestrutura básica, que possuem efeitos na saúde, por exemplo, a população feminina é mais penalizada. Isso ocorre tanto pelo aumento da demanda por tempo de trabalho não remunerado, mas também pela redução de empregos no setor de cuidados, que são empregadores principalmente de população feminina.
Como a população feminina, especialmente as mulheres da classe trabalhadora e racializadas, possuem baixa representatividade política, o direcionamento das políticas de seletividade tributária, tende a pesar mais para o lado da balança dos homens brancos e super ricos, que estão no poder. Essa desigualdade, não possui efeitos somente sobre as mulheres, mas para o bem-estar da totalidade da população assalariada. As políticas de austeridade, refletiram, nas últimas décadas, principalmente em redução de direitos trabalhistas e precarização no mercado de trabalho, cortes previdenciários e de investimentos públicos. O discurso é que os benefícios sociais devem servir no orçamento, ou seja, o governo, assim como as famílias, deve ser parcimonioso com os gastos. Mas, e como estão, neste cenário, os gastos tributários?
Como está o cenário atual dos gastos tributários no Brasil?
Os gastos tributários no Brasil, em 2024, corresponderam a 4,4% do PIB nacional. No período de 2006 a 2024, segundo dados do Global Tax Expenditure Database (GTED), os gastos tributários passaram de 2,7% do PIB brasileiro para 4,4%, o que corresponde a um crescimento de 1,7 p.p. (Gráfico 1). Ou seja, este instrumento vem sendo crescentemente utilizado como ferramenta de política fiscal.

Segundo relatório do IPEA publicado em 202310, os gastos tributários passaram fortemente a ser utilizados, especialmente a partir de 2012, em paralelo com a redução das despesas públicas. A lógica por trás desta política está em que o setor privado seria mais eficiente que o público, e, por isso, deveria haver uma substituição das políticas de bem-estar social para uma de Estado reduzido. A diminuição do Estado, por conseguinte, levaria a um aumento dos investimentos privados, geração de empregos de qualidade e crescimento econômico robusto. Na prática, este receituário neoliberal, nunca aconteceu. O mesmo relatório aponta que os gastos tributários estão menos concentrados nas áreas onde o orçamento público possui proteção constitucional, como educação e saúde, e mais nas áreas de pesquisa, inovação e tecnologia.
Segundo o Unafisco Nacional, em 2024, o Brasil concedeu R$538 bilhões em privilégios tributários, ou seja, parte dos gastos tributários cujas necessidades e contrapartidas sociais não estão claras. A mesma instituição aponta os cinco principais setores em que se destinam os recursos11:
- Isenções sobre lucros e dividendos distribuídos por pessoa jurídica, totalizam R$160,1 bilhões;
- Não instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), que está previsto constitucionalmente, equivalente a R$ 76,4 bilhões;
- Zona Franca de Manaus, haja vista que que muitas empresas que recebem os benefícios tributários, não dão contrapartida à sociedade R$ 30,9 bilhões;
- O Simples Nacional, cujo gasto tributário é de R$30,7 milhões;
- Programas de parcelamentos especiais, tais como o Refis que correspondem a R$ 29,3 milhões;
Outros destaques apontados pela Unafisco que representam importantes parcelas dos gastos tributários no Brasil são o setor exportador rural, cujos recursos chegam a R$10,1 bilhões, e o Programa Rota 30 e Indústria automobilística, com orçamento de R$9,6 bilhões.
Chama a atenção, portanto, que, a despeito dos vultosos recursos destinados aos gastos tributários, são despesas que não passam pelos mesmos instrumentos de gestão e governança dos demais gastos públicos. Segundo o IPEA (2022), os gastos tributários no País possuem impactos socioeconômicos desconhecidos, e eficiência não mensurada, não permitindo a sua coordenação pelos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e pelo Ministério Público.
As iniciativas recentes do poder executivo, de reduzir os gastos públicos por meio da ampliação da incidência de impostos, principalmente sobre o setor financeiro, bem como o ajuste na tributação sobre o imposto de renda, e fim das desonerações sobre a folha de pagamentos de 17 setores, portanto, são importantes, ainda que insuficientes. Isto porque incide sobre privilégios tributários, concedidos principalmente para a população endinheirada, na sua maioria homens brancos. Dessa forma, as reformas recentes possuem impactos positivos não somente sobre classe, como também sobre gênero e raça.
Notas
1. Para mais informações sobre o plebiscito popular ver a página: https://plebiscitopopular.org.br
2. Disponível em: https://www.dmtemdebate.com.br/tempo-para-todas-discussao-sobre-direito-ao-tempo-e-a-agenda-de-politicas-publicas-sobre-genero/
3. Disponível em: https://www.dmtemdebate.com.br/o-que-e-politica-tributaria-com-vies-de-genero-e-como-ela-impacta-nas-desigualdades-entre-homens-e-mulheres/
4. INTER-AMERICAN CENTER OF TAX ADMINISTRATION – CIAT. DIMENSIONS OF TAX EXPENDITURES A second-level exploration in the CIAT Tax Expenditure Database LONGINOTTI , Fernando Peláez. Working Papers. Jan 2021. Disponível em: https://www.ciat.org/Biblioteca/DocumentosdeTrabajo/2021/WP_01_pelaez.pdf
5. Informações da Câmara dos Deputados: https://www.camara.leg.br/noticias/913922-advogados-e-empresarios-sao-a-maioria-entre-profissionais-eleitos-para-a-camara-dos-deputados/
6. Por exemplo, mulheres cis e homens trans que menstruam, entram na menopausa ou engravidam possuem demandas de consumo específicas.
7. https://latindadd.org/informes/gasto-tributario-y-genero-un-analisis-para-america-latina/
8. As mulheres brasileiras só passaram a ter direito à voto em 1932. O Código Civil de 1916 tornava a mulher casada tutelada pelo marido, não tendo direito à guarda dos filhos, nem a herança.
9. Dados disponíveis em: https://gted.taxexpenditures.org/data-visualisation/
10. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/server/api/core/bitstreams/3ae6e99d-ba26-4f28-b0db-3c5646b7d981/content
11. Disponível em: https://privilegiometrotributario.org.br/
Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .