Tempo para todas: discussão sobre direito ao tempo e a agenda de políticas públicas sobre gênero

direito ao tempo
Fotografia: Agência Brasil

Cristina Pereira Vieceli

A discussão sobre a redução da jornada 6×1 abriu novamente a possibilidade de ampliação do debate sobre o uso do tempo e a qualidade de vida da classe trabalhadora. Nesse ínterim, a Rede Brasileira de Economia Feminista (REBEF) publicou uma nota sobre os impactos da redução da jornada de trabalho entre as mulheres[1]. Dentre os argumentos apresentados favoráveis à mudança, está a possibilidade de melhor conciliação entre as atividades laborais com as de cuidado e lazer, considerando que as mulheres são penalizadas com jornadas extensas de trabalho, somando as horas destinadas para o mercado com as de trabalho doméstico não remunerado. Além disso, a redução da jornada possibilitaria a melhor repartição de tempo de trabalho não remunerado também entre os homens, já que estes exercem maiores jornadas remuneradas.

As discussões sobre o uso do tempo e a importância do equilíbrio entre as diversas atividades para a melhoria do bem-estar da população não é novidade, esse debate permeia há décadas a luta da classe trabalhadora pela redução da jornada de trabalho, bem como do movimento feminista, pelo reconhecimento dos trabalhos não remunerados. Esse debate ganha força atualmente considerando o relevante aumento da produtividade, advindo da utilização das novas tecnologias, que permitem a realização de uma série de atividades em menos tempo e sem a necessidade de deslocamento. Estes ganhos, por conseguinte, deveriam ser redistribuídos entre a classe trabalhadora por meio da redução de jornada de trabalho. 

Atualmente, há uma importante tendência de institucionalização das iniciativas que buscam o aprofundamento sobre o uso do tempo no mundo. Destaca-se a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) voltada para as pautas de gênero (ONU – Mulheres), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, na América Latina, iniciativas da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Para além da pauta das Nações Unidas, há organizações ligadas a universidades, do terceiro setor e think thanks que discutem o tema, visando influenciar políticas públicas e econômicas. Dentre as principais, destacam-se: o Centre for Time Use Research (CTUR), localizado no Reino Unido e responsável pelo banco de dados “Multinational Time Use Study”[2] (MTUS); a International Association for Time Use Research[3] (IATUR), instituição que teve início nos anos 1970 e serve como um fórum de trocas de informações e metodologias sobre pesquisas de uso do tempo, é responsável ainda pela organização de uma conferência anual e pelo periódico “Journal of Time use Research” (JTUR); a Time Use Initiative[4] (TUI), localizada em Barcelona, que promove diversas pesquisas, campanhas e conferências voltadas para os estudos de uso do tempo. Dentre os encontros promovidos por esta instituição está o Time Use Week, organizado anualmente, e que busca compartilhar iniciativas e políticas entre diferentes países voltados para “o direito ao tempo para todos”. Outra instituição importante é o Levy Economic Institute, que possui como um dos tópicos de pesquisa a mensuração do déficit e da pobreza de tempo com publicações em diferentes países[5].

Os estudos sobre o uso do tempo são extremamente importantes para a elaboração de políticas públicas assertivas, voltadas tanto para a melhoria do bem-estar da população, como também para a redução das desigualdades sociais. Um avanço que estas pesquisas trazem em termos de mensuração de indicadores econômicos é a incorporação do tempo, ou a falta dele, como indicador de pobreza e desigualdade. Essa perspectiva vai além da abordagem tradicional utilizada pelas ciências econômicas, que enxerga somente a renda monetária como indicador de riqueza ou pobreza. Essa pauta é incorporada fortemente pelos estudos feministas porque há uma relação entre gênero, pobreza de tempo e pobreza monetária.

A exemplo disso, dados da PNAD-C compilados pela Cepal para o ano de 2019, apontam que a situação de pobreza aumenta em média duas horas de trabalho não remunerado por semana para os homens e quatro horas para as mulheres, quando comparado com as(os) não pobres. (Tabela 1). A presença de menores aumenta a jornada feminina de trabalho não remunerado entre 4 e 7 horas. O número de horas destinada a essas atividades é maior entre as mulheres pobres com filhos menores de cinco anos (30 horas semanais), seguido das pobres com menores de 15 anos (29 horas semanais). As mulheres não pobres com filhos menores de cinco anos despendem em média 27 horas semanais às atividades não remuneradas enquanto as não pobres com menores de 15 anos trabalharam 25 horas para as mesmas atividades.

A jornada masculina, por outro lado, é em torno de 10 horas e 9 horas menor que a feminina dentre os domicílios sem filhos pobres, e sem filhos não pobres, respectivamente. A presença de filhos,pouco ou nada impacta a jornada de trabalho não remunerada masculina, aumentando em duas horas dentre os homens não pobres com filhos menores de cinco anos, uma hora dentre os não pobres com filhos menores de 15 anos, e reduzindo em uma hora nos domicílios pobres, com filhos menores de 15 anos.

As desigualdades entre as jornadas de trabalho não remuneradas por sexo, presença de filhos e pobreza indicam tanto a necessidade de políticas voltadas para a redistribuição dos trabalhos não remunerados, como também o maior impacto da escassez de políticas públicas voltadas aos cuidados, especialmente entre as mulheres pobres, o que as coloca em situação de maior vulnerabilidade à situação de pobreza tanto monetária como de tempo. Os indicadores apontam ainda a necessidade da redução da jornada de trabalho remunerada, haja vista as intensas jornadas exercidas, principalmente entre as mulheres pobres e com filhos menores de cinco anos, para os trabalhos não remunerados.

Para termos uma análise acurada das desigualdades entre os usos do tempo, inclusive considerando as horas destinadas ao transporte e atividades como esporte, lazer e descanso, é necessário o desenvolvimento de pesquisas de uso do tempo, especialmente aquelas realizadas por meio de diários, que são as mensurações mais completas. O Brasil ainda não possui uma pesquisa nesse formato. Os indicadores sobre o tempo de trabalho não remunerado são compilados por meio do módulo “Outras Formas de Trabalho” realizado pelo IBGE e incorporada pela PNAD – C Anual. O desenvolvimento desta mensuração foi um marco importante para a análise do tempo de trabalho não remunerado, considerando que capta as atividades voltadas para os afazeres domésticos e de cuidados, trabalhos voluntários e trabalhos para o autoconsumo. No entanto, não há desagregação do tempo de trabalho destinado a tipos de atividades: por exemplo, cuidados com filhos, cuidados com pessoas idosas, lavar louça, preparar alimentos etc. Tampouco é pesquisado o tempo destinado ao transporte, lazer, horas de sono. Há, portanto, a necessidade de aprofundar a metodologia afim de gerar indicadores mais precisos sobre a qualidade de vida da população, e incluindo esta pauta na agenda das políticas de cuidados.

As pesquisas de uso do tempo são ferramentas que datam do início do século XX, e buscavam principalmente analisar a vida da classe trabalhadora, bem como estudos demográficos, relações na indústria, entre outras[6]. Elas ganharam mais força após a Segunda Guerra Mundial, em que se passou analisar principalmente como as pessoas despendiam o tempo dentre os diversos grupos de atividades: trabalho pago, trabalho doméstico, trabalho de cuidados, atividades recreativas etc. Atualmente, são ferramentas importantes para a análise dos trabalhos não remunerados, incluindo-os em Contas Satélites do Sistemas de Contas Nacionais, a análise das desigualdades de distribuição dos trabalhos não remunerados por sexo, como também os diferentes impactos das políticas públicas, relativas aos investimentos voltados para melhoria nos serviços de transporte, saneamento básico, entre outras[6]. A maior parte dos países do mundo possui algum tipo de pesquisa de uso do tempo. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2018 identificou que há em torno de 117 pesquisas coletadas em 94 países entre 2000 a 2016 entre diferentes regiões do mundo[7]. 

Há, nesse sentido, uma agenda de trabalho importante a ser aprofundada no Brasil, e que há décadas vêm sendo discutida no mundo: o direito ao tempo. Esse debate se entrecruza com diferentes discussões, incluindo a questão da redução da jornada de trabalho remunerada, a redistribuição dos trabalhos não remunerados, a melhoria das políticas públicas, incluindo transporte e saneamento básico, investimentos no setor de cuidados, entre outras. Alguns exemplos recentes associados à esta pauta é a atualização da Declaração de Barcelona sobre Políticas do Tempo e a Ley de Uso del Tiempo, que está sendo discutida na Espanha. 

A primeira é um acordo global para a garantia aos cidadãos sobre o direito ao tempo. O acordo foi atualizado em outubro de 2024 durante o evento “Time Use Week” e contou com a participação de 200 organizações internacionais[8]. As ações foram definidas para quatro principais áreas: 

  1. Tornar efetivas as políticas que visem o direito ao tempo a partir de uma perspectiva local e regional, promovendo a maior igualdade e bem-estar individuais e coletivos; 
  2. Promover a conexão entre as pesquisas de uso do tempo e as políticas públicas; 
  3. Implementar ações chaves para promover um equilíbrio entre tempo dedicado ao trabalho, vida pessoal e familiar;
  4. Avançar no reconhecimento do direito ao tempo, especialmente no campo da igualdade, introduzindo do debate nas Nações Unidas, bem como organizações regionais da América Latina.

No caso da Ley de Usos del Tiempo, a racionalização horária está sendo estudada pelo governo espanhol em um projeto que possui 22 iniciativas no âmbito laboral e 84 medidas multisetoriais, visando assegurar uma “organização do tempo mais equilibrada, saudável, eficiente, igualitária e sustentável”. A lei pretende reduzir a jornada de trabalho para 37,5 horas semanais sem redução salarial em 2025, além de promover a organização do tempo de forma holística, ou seja, analisando e efetuando políticas destinadas ao equilíbrio dentre as diversas esferas da vida[9]. 

É imperativo, portanto, que a política de redução da jornada seja implementada no Brasil, aderindo à pauta histórica da classe trabalhadora no país, que visa o direito ao bem viver a todas e todos. Para além disso, a legislação deve ser acompanhada por iniciativas que visem à sensibilização sobre o direito ao tempo para todas as pessoas, o que incluiu a melhoria dos indicadores de uso do tempo, e a sua compatibilização com políticas públicas e econômicas. 

Notas

[1] https://ange.org.br/2024/12/03/impactos-da-jornada-reduzida-um-olhar-feminista-sobre-o-trabalho-e-uso-do-tempo/
[2] https://www.timeuse.org/
[3] https://www.iatur.org
[4] https://timeuse.barcelona/
[5] https://www.levyinstitute.org/topics/time-deficits
[6] Vieceli, Cristina Pereira. “Economia Feminista e Trabalhos Reprodutivos não remunerados: conceito, análise e mensuração.” (2020).
[7] International Labor Organization – ILO. General Report, Report I, Twentieth International Conference of Labor Statisticians, Genebra, Outubro, 2018.
[8] https://timeuse.barcelona/the-barcelona-declaration-on-time-policies-the-global-agreement-to-guarantee-citizens-right-to-time-is-updated/
[9] https://timeuse.barcelona/es/avanzando-hacia-la-reduccion-de-la-jornada-laboral-a-375-horas-semanales-y-la-ley-de-usos-del-tiempo-mas-alla-del-tiempo-para-trabajar-el-tiempo-para-vivir/

Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutora em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica do Dieese, Visiting Fellow no Programa de Análise de Gênero da American University – Washington-DC, colunista do site DMT .

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