Uber: uma abordagem crítica

Luciane Toss
Denis Einloft

Sumário: 1 Introdução | 2 Construindo a identidade a partir do trabalho | 3 Mudanças e identidade: a desconstrução do trabalhador como sujeito social | 4 Desvelando a UBER | 5 Ausência de distribuição equitativa dos direitos: relação de emprego | 6 Conclusão | Bibliografia

O homem trabalhador revela a riqueza de sua identidade social, exercendo sua liberdade e a consciência de si, além de realizar, em plenitude, seu dinamismo social, seja pelo desenvolvimento de suas potencialidades, de sua capacidade de mobilização ou de seu efetivo papel na lógica das relações sociais.
Gabriela Delgado

1 Introdução

Identidade e trabalho são categorias indissociáveis. Com isso não se quer dizer que o sujeito trabalhador o é somente na medida de seu trabalho. No entanto, não podemos ignorar que a construção da definição daquilo que somos e de nossa identidade passa pelo trabalho.

A UBER se integra ao que podemos chamar de “capital libertado do confronto direto com os explorados” (BAUMAN, 2001, p. 140-145). Ele é extraterritorial, volátil e constante. Os empresários são desapegados. A indiferença em relação a projetos de longa duração torna a produção um objeto de consumo imediato. Ser motorista nesta empreitada tem caráter provisório, temporário e paliativo do problema financeiro atual do sujeito.

Neste artigo analisaremos se existe alguma possibilidade de traço identitário diante da efemeridade e do contexto precarizante do trabalhador que é conhecido como motorista da UBER. Que tipo de relação que se estabelece com esses sujeitos e com seus gestores, em que condições esses sujeitos executam seu trabalho e quais as vinculações que estabelecem.

2 Construindo a identidade a partir do trabalho

Introduzindo severas mudanças a partir da finalidade econômica, tanto na definição quanto nos objetivos, o trabalho contemporâneo desconstrói a possibilidade de que se desenvolva uma identidade profissional ou uma identidade relacionada ao trabalho.

A precarização, a vulnerabilidade, a efemeridade e a fragmentação do trabalho atuam dificultando a elaboração de uma significância que poderia criar uma mínima unidade interna. Um sistema de pertencimento.

Quando falamos em identidade com o trabalho estamos falando de subjetividade, das imagens, símbolos, visões de mundo:

[…] subjetividade não é o ser, mas os modos de ser, não é a essência do ser ou da universalidade de uma condição, não se trata de estados da alma, mas uma produção tributária do social, da cultura, de qualquer elemento que de algum modo crie possibilidades de um ‘si’, de uma ‘consciência de si’, sempre provisória… São modos pelo qual o sujeito se observa e se reconhece como um lugar de saber e de produção de verdade. (BERNARDES; HOENISCH, 2003 apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007).

Conforme Sennet (1999), a atual morfologia do trabalho e de suas relações reduzem o acesso destes sujeitos à construção de narrativas individuais. Mais problemático ao processo de identificação do sujeito com o trabalho é o fato de, nessas circunstâncias, “[…] os trabalhadores enfrentarem sérios limites às suas possibilidades de estabelecimento de vínculos interpessoais com seu fazer […]” (COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007) e, consequentemente, tendo mitigada a capacidade de vinculação com os demais sujeitos e com o trabalho propriamente dito.

As reformas trabalhistas não alteram apenas o sistema jurídico e as relações de trabalho. Elas mudam o que nós somos.

Em que pese as mudanças que o atravessam, o trabalho continua sendo uma categoria fundante do sujeito e de suas relações sociais (ANTUNES, 2002). O trabalho não só pode definir a identidade social, ou seja, a quais grupos sociais se insere o sujeito, como também a constituição identitária de cada um de forma singular (COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007).

O sujeito, enquanto trabalhador, dá lugar ao que Maffesoli (1997, p. 195) chama de estar-junto grupal. É a identificação do sujeito com o objeto do seu trabalho, com o local e com seus colegas. Várias dinâmicas sociais serão operadas a partir desse grupo social.

O trabalho dota de significância esta autoimagem que o sujeito tem de si e de seu entorno: como o trabalhador se vê. É o sentimento de pertença, que os culturalistas atribuem como fator fundamental para o reconhecimento do sujeito em seu meio (TAYLOR, 1999).

Regra geral, define-se a identidade considerando a dialética entre o indivíduo e a sociedade, é dizer: do ponto de vista do outro, ou seja, “[…] a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele” (BERGER; LUCKMANN, 2002 apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007).

O conceito de identidade baseado na alteridade (TAYLOR, 1999) também foi analisado por Woordward (2004), para quem o primeiro conceito não pode ser entendido sem o segundo. Do ponto de vista social, onde o trabalho está inserido, esta alteridade importa em estabelecer processos de inclusão e exclusão:

A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. (SILVA, 2004 apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007).

O trabalho exerce tamanha influência neste sentimento de pertença que acaba por tomar o lugar do próprio sujeito (ao eu penso se opõe o eu sou pensado) (MAFFESOLI, 1997, p. 196).

O trabalho passa a ser observado como um instrumento de valor e de dignidade. O trabalhador, sujeito ativo no processo de produção (seja esta intelectual, manual ou tecnológica), vê-se incluído naquela gama de consequências que o trabalho produz: ser um profissional, ter um ambiente específico para o exercício desta profissão, relacionar-se com os outros trabalhadores, estabelecer vínculos afetivos com alguns destes colegas de trabalho, organizar sua vida privada em torno das possibilidades que este trabalho lhe dá, enfim, inserção em um grupo societário que lhe imprime, a ele trabalhador, um significado no mundo (COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007).

Dejours (1999, p. 16-17) afirma que atrás de toda crise, de toda doença mental ligada ao trabalho, esconde-se uma crise de identidade. O “trabalho representa uma segunda chance de obter ou consolidar a identidade e adquirir um pouco mais de confiança pessoal”.

A perda da capacidade de defesa do trabalhador, diante das permanentes mudanças no cenário econômico e nas relações de trabalho sólidas (BAUMAN, 2001) que até então ele conhecia, coloca-o em uma situação de vulnerabilidade social (SAINSAULIEU, 1988 apud COUTINHO; KRAWULSKI; SOARES, 2007). Terceirização, retirada de direitos e banimento social são consequências desta impotência que a ausência de pertença produz.

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Luciane Toss é Mestre em Ciências Sociais pela Unisinos. Especialista em Direito Privado pela Unisinos e em Direito Público pela Universidad de Burgos. Professora universitária e advogada trabalhista.

Denis Einloft é Mestre em Direito pela Unisinos. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUCRS, em Direito Processual Civil também pela PUCRS e em Direito Previdenciário pela ESMAFE/RS. Presidente da AGETRA no biênio 2015/2017. Coordenador do Colégio de Presidentes da ABRAT 2016/2018. Advogado trabalhista.

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