Uber recorre à jurimetria e manipula jurisprudência

Fotografia: Thibault Penin/Unsplash

Sem a adoção dessa estratégia pela empresa, a jurisprudência no sentido de não reconhecer o vínculo de emprego seria inevitavelmente menor.

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Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 10/07/2023

Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou ação civil pública contra a Uber por realizar acordos com base na jurimetria, manipulando a formação da jurisprudência de modo a causar prejuízo aos trabalhadores. Foi pedida a condenação da empresa para pagar indenização por dano moral coletivo com valor equivalente a, no mínimo, 3% do faturamento bruto da Uber em 2022. 

Jurimetria é a aplicação de métodos estatísticos ao Direito, que pode ser usada para diversos objetivos, como analisar e fiscalizar decisões judiciais, identificar as dificuldades do bom andamento dos processos e enfrentar a lentidão da Justiça, dentre outras. O seu uso não é, por si só, uma atividade ilícita. Contudo, a depender a sua finalidade, pode ocorrer abuso de direito e violação da lei. 

No caso que deu origem a essa ação civil pública, o MPT identificou um comportamento padrão adotado pela empresa na segunda instância do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), em Minas Gerais. A partir da avaliação do posicionamento do julgador para reconhecer o vínculo de emprego entre motorista e empresa com base na jurimetria, a Uber busca fazer acordos nos processos que tramitam nas turmas que tendem a ser favoráveis às teses dos trabalhadores. Sendo assim, evita-se a concretização de decisões que identifiquem a existência da relação de emprego. 

Por outro lado, nas turmas cuja tendência é desconhecer o vínculo entre trabalhadores e a Uber, a empresa deixa que o julgamento seja concluído. Dessa forma, é duplamente favorecida: a decisão lhe beneficia e reforça o entendimento – artificialmente uniforme – de que não há relação de emprego entre motorista e empresa.

Os estudos elaborados pelo MPT revelam que, até julho de 2022, os processos envolvendo a Uber em todo o país somaram 3.867 ações com pedido de reconhecimento da relação de emprego. Nesse montante, 1.760 ações haviam sido propostas no TRT3, ou seja, 45,51% do total de ações ocorreu em Minas Gerais. 

Na análise dos 1.760 processos, verificou-se que 1.029 foram direcionados à segunda instância do TRT3. Eles foram objeto de investigação pelo MPT com o objetivo de apurar a estratégia de manipulação da jurisprudência. Verificou-se que a estratégia de realizar acordos ocorreu, de modo claro, em três das 11 turmas julgadoras do TRT3, cuja tendência é pelo reconhecimento do vínculo de emprego. 

Essas três turmas concentraram 276 acordos de um total de 713 acordos realizados, o que corresponde a 38,71%. Elas também foram as turmas que menos julgaram processos na amostra analisada, seja em números absolutos, seja em números proporcionais – 11 processos julgados em um total geral de 316, ou seja, somente 3,48%. 

A estratégia ficou evidente porque houve decisão de não homologação de acordo no processo nº 0010258-59.2020.5.03.0002, em dezembro de 2020. A turma julgadora, alertada em parecer do MPT, entendeu que os acordos tinham como objetivo impedir o julgamento do processo e evitar a formação de jurisprudência desfavorável à Uber. No caso, a empresa venceu em primeira instância e propôs acordo ao trabalhador horas antes do julgamento marcado em grau de recurso. 

Sem a adoção dessa estratégia pela empresa, a jurisprudência no sentido de não reconhecer o vínculo de emprego seria inevitavelmente menor. A efetivação de acordos em turmas tendencialmente favoráveis a identificar a relação de emprego produz a sensação de que as decisões judiciais são quase unanimemente favoráveis à Uber.  

A gravidade do problema está na construção de um ambiente artificial em que há um aparente posicionamento jurisprudencial favorável à tese da empresa. Assim, ela tem maiores chances de obter êxito nos demais processos, já que a jurisprudência vai se consolidando supostamente sob unanimidade, retroalimentando a tomada de decisões. 

Além disso, essa estratégia da empresa desrespeita vários princípios constitucionais e processuais: do juiz natural, da boa-fé, do devido processo legal, do contraditório e da cooperação. A partir do momento que se usa a jurimetria para manipular a jurisprudência em um determinado sentido, perdem os trabalhadores, a sociedade e a Justiça. 

Tadeu Henrique Lopes da Cunha, Renan Bernardi Kalil, Carolina de Prá Camporez Buarque, Rodrigo Barbosa de Castilho e Melina de Sousa Fiorini e Schulze são Procuradores do Trabalho.  

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