Trabalho e família: articulações possíveis

Elisabete Dória Bilac

FonteTempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 129-145, jun. 2014.

ResumoEste artigo analisa a articulação trabalho-família levando em conta, de um lado, o modo como tal discussão transformou-se conceitualmente ao longo do tempo desde os anos de 1970 e, de outro, a constatação empírica da permanência de um modelo que repousa na sobrecarga feminina e na menor participação masculina na reprodução. Discute-se em que medida essa permanência se deve à combinação particular de elementos demográficos e socioeconômicos e ao fato de que as poucas políticas existentes de articulação trabalho-família em nosso país não permitem acesso generalizado.

Estas considerações iniciam-se com um contraponto do passado: a discussão sobre o trabalho doméstico nos anos de 1970. Recuperar alguns de seus elementos pode ajudar a reflexão atual sobre a chamada “conciliação trabalho-família”. O ponto central talvez tenha sido o estatuto teórico do trabalho doméstico, que deu margem a intenso debate, principalmente entre as feministas de inspiração marxista. Em grandes linhas, a questão costumava ser equacionada nos seguintes termos: como pode um trabalho realizado fora do circuito da mercadoria ser responsável pela produção da mercadoria Força de Trabalho e, portanto, contribuir para seu valor? Tratava-se de definir se aquela atividade – a de produção de valores de uso e de prestação de cuidados – poderia ser considerada realmente um trabalho sob a ótica da produção capitalista.

A questão do trabalho doméstico inseria-se, portanto, no debate sobre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. O trabalho doméstico, como produtor de valores de uso, mas não de valores de troca (mercadorias), seria, à primeira vista, trabalho improdutivo. Contudo, essa conclusão não era satisfatória e outras soluções teóricas foram propostas. Não cabe aqui rediscuti-las, mas enfatizar que parte do impasse teórico decorria, ao que tudo indica, do caráter excessivamente abstrato de todo o debate da chamada “ótica da reprodução”, que impedia a percepção do significado de certas evidências empíricas que explodiam os limites da teoria. Por exemplo, ao estudar a relação entre trabalho remunerado e trabalho doméstico na estruturação de famílias de trabalhadores (Bilac, 1983), apontei evidências que questionavam o suposto caráter “improdutivo” deste último: o gasto de tempo e de energia, da aplicação das capacidades físicas, mentais e emocionais na produção da vida e do viver. Ao mesmo tempo que se tornava clara a importância fundamental do trabalho doméstico para a organização da rotina familiar e para a reprodução cotidiana e geracional da família, ficava patente também que sua subordinação ao trabalho assalariado era desqualificadora. As práticas diárias reproduziam a sua naturalização como “trabalheira”, como mero “trabalho de mulher”, invisível, sem limites de jornada, executado de forma privada, sem remuneração, opondo-o, desvalorizado, ao trabalho mercantil.

Essa ausência de historicidade, caracterizada pela permanência de um conceito estreito de trabalho tal como formulado na discussão do trabalho industrial do século XIX e que excluía dele todos os trabalhos da reprodução da vida, tornou-se insustentável em termos analíticos e acabou sendo superada. Isso ocorreu, em boa parte, graças ao esforço conceitual das feministas francesas do Atelier Production/Reproduction (APRE), que repensaram o trabalho e a divisão sexual do trabalho, dando-lhes novos significados e desenvolvendo o conceito de relações sociais de sexo. Essa linha teórica chegou ao Brasil por algumas feministas, particularmente Elizabeth Lobo.

Mas também a realidade do país era outra em vários aspectos. Os anos de 1970 foram marcados pela ditadura e pela “modernização conservadora” da economia; expandiu-se o emprego feminino no setor industrial moderno (eletroeletrônica); a classe operária fortaleceu-se e organizou-se politicamente; estabeleceu-se uma classe média com padrões de consumo “modernos”. Esses elementos começaram a abalar o predomínio até então inconteste do modelo do provedor único e masculino da família, tanto nas camadas populares quanto nas camadas médias. Também a fecundidade caiu em todas as camadas sociais, apesar das diferenças de níveis nessa queda.

Contudo, as transformações na família não contaram, nesse momento, com o apoio de um sistema de welfare minimamente articulado. O Estado brasileiro de bem-estar tem como marca de origem mecanismos clientelistas e desarticulados, pelos quais constituiu sua face assistencialista, e até hoje não conseguiu realizar em níveis significativos o que Lasch (1978) chama de “socialização da reprodução”. Ao socializar a reprodução, fragmentando-a por diversas agências – a escola, a creche, o sistema de saúde, etc. – e por meio de políticas parciais de eficácia duvidosa, os resultados de suas ações são limitados e contraditórios, por vezes inesperados, quando não perversos, como discutiu Vilmar Faria (1988). Nessas condições, a responsabilidade pela reprodução cotidiana e geracional fica quase totalmente a cargo das famílias – vale dizer, das mulheres –, o que passa a envolver de forma cada vez mais frequente a realização simultânea do trabalho doméstico (inclusive o cuidado dos filhos) e do trabalho remunerado.

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Elisabete Dória Bilac é pesquisadora colaboradora junto ao Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo-Unicamp), professora aposentada do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp – campus de Araraquara.

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