Trabalho Além da Barbárie: A Justiça transformada em números

A finalidade deste texto não é apenas criticar o modelo de gestão, nem expressar ou pretender uma revolva contra “os números”. O nosso objetivo é chamar a atenção para os seus efeitos e propor uma reavaliação desse modelo.

Arion Mazurkevic e Suely Filippetto

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 25/09/2021

Tenho afirmado, sempre que posso, que os mecanismos de controle e avaliação da magistratura, especialmente da trabalhista, estão produzindo resultados que não atendem os jurisdicionados, destinatários desse serviço público, e menos ainda à finalidade do Poder Judiciário.

Estes mecanismos de controle e de avaliação consideram quase que exclusivamente dados estatísticos, com metas embasadas em parâmetros temporais e de produção numérica, sem qualquer preocupação com o conteúdo dos processos e sua complexidade, muito menos com a qualidade e o resultado efetivo da prestação jurisdicional. A ação em que o autor postula apenas o aviso prévio tem o mesmo peso estatístico de uma ação coletiva de grande complexidade, que envolve centenas de empregados, com grande repercussão social e econômica, assim como importantes efeitos, por exemplo, no meio ambiente de trabalho. A decisão que analisa com profundidade o mérito de uma ação coletiva com esta complexidade possui o mesmo peso estatístico daquela decisão que simplesmente extingue o processo sem julgamento do mérito.

Fazendo um trocadilho com a denominação do principal relatório que expressa esses indicadores, os mecanismos de controle e avaliação da prestação jurisdicional estão, na prática, transformando a justiça em números.

Nesse ambiente de “números”, os magistrados têm sido pressionados a adotar cada vez mais soluções “pragmáticas”, isso sem conotação virtuosa, pois o seu objetivo não é a finalidade da justiça, mas sim a “sobrevivência” ante a imposição dessas metas e dos efeitos negativos gerados pelo seu não cumprimento. 

Um exemplo dessas “soluções”, identificada em vários Regionais, de forma mais intensa a partir da reforma trabalhista introduzida pela Lei 13.467/2017, é a proliferação de decisões de extinção do processo sem julgamento do mérito, porque não atendida alguma formalidade da petição inicial, como a quantificação das pretensões formuladas. Ainda que a jurisprudência dos tribunais reconheça a necessidade de conceder prévia oportunidade para a parte regularizar a petição inicial, a prática de extinguir sem oferecer essa oportunidade à parte não foi abandonada, pois conta com o pragmatismo também dos advogados, haja vista que é muito mais célere ingressar com nova ação do que esperar a tramitação de um recurso contra a decisão que extinguiu o processo. O resultado estatístico dessa prática é que uma ação se transforma em duas. Em caso de fórum com mais de uma Vara do Trabalho, aquele juízo que não adota semelhante procedimento vai receber duas reclamatórias novas enquanto aquele que o adota terá computado dois processos iguais, um extinto e o outro pela renovação da mesma ação, para a qual fica prevento. Sem se olvidar também que a quantidade de ações ajuizadas é referência para inúmeras avaliações estatísticas, assim como para definir a distribuição da força de trabalho e a manutenção de Juiz Auxiliar. Ou seja, quanto maior o número de ações ajuizadas, mesmo que sejam “dobradas”, mais vantagem estatística para a unidade.

Outra “fórmula mágica” para contornar o critério meramente numérico é a extinção de uma ação coletiva e a “sugestão” para que sejam ajuizadas ações individuais. Em um exemplo constatado, uma ação coletiva se transformou em mais de 400 ações individuais, com o mesmo objeto e a mesma matéria exclusivamente de direito. 

Também é resultado desse sistema de metas e avaliações a concorrência entre Tribunais, o que é feito sem considerar as peculiaridades de cada região, a estrutura de pessoal de cada Tribunal e a complexidade processual que lhe são próprias. Os únicos fatores de comparação são os prazos e o tempo médio de tramitação processual.

Exemplo marcante desse método é a fixação de prazos para a prolação de sentenças e para a liberação do voto pelos relatores no Tribunal. 

Define-se e se impõe prazo comum e fixo, independentemente do volume processual e da estrutura física e funcional. Não considera que o quadro de juízes e servidores está estagnado pela vedação de reposição. Independentemente da paulatina redução de servidores e juízes e independentemente do acervo e do fluxo processual, os magistrados são obrigados a observar os mesmos prazos. 

O efeito que se observou nos últimos anos foi o aumento significativo da “produção” numérica de decisões e julgamentos, com elogios para essa prática, olvidando-se que não existe milagre: em uma atividade estritamente intelectual, em que o julgamento exige exame acurado dos autos, com litígios cada vez com mais especificidades e complexidade, o aumento da “produção” numérica só pode gerar análises mais superficiais e decisões de menor qualidade. A elevação do número de decisões também decorreu da ampliação da transferência da atividade decisória a servidores, com a dificuldade que o volume de decisões traz para o juiz manter adequada supervisão e controle. Isso sem falar na contratação cada vez maior de estagiários como alternativa à estagnação do quadro de servidores [3] e a busca de alternativas instrumentais para substituir o trabalho humano. Exemplos dos efeitos desse quadro poderiam ser citados, mas não é este o objetivo dessa reflexão.

O que nos move a escrever este texto também não é mero descontentamento de um magistrado, com mais de 31 anos de atuação, que não se adaptou ao modelo de juiz do século 21, cujo papel seria mais gerir do que julgar. [4]

O objetivo que nos move a traçar estas linhas é demonstrar que essa forma de gerir o Poder Judiciário não é uma prática que contribui para aprimorar a Justiça, mas a importação de um modelo de gestão que se disseminou no serviço público, o qual desconsidera o verdadeiro papel do juiz.

Há vários estudos criticando o atual modelo de gestão da administração pública e especialmente do Poder Judiciário. Cite-se, por exemplo, José Eduardo de Resende Chaves Júnior, que adverte: “na verdade esse modelo de produção industrial em série acaba por transformar a justiça em produto e os direitos em mercadoria. Os cidadãos, nesse modelo, são reduzidos à condição de meros consumidores”. [5] Na mesma linha, Thayse Palmela Nogueira adverte: 

“Contudo, podemos dizer que, ao analisarmos as metas de nivelamento, nota-se que não tem havido, neste processo de reestruturação do Judiciário brasileiro, uma preocupação com a especificidade de cada ramo da Justiça; e muito menos com os trabalhadores – servidores técnico-administrativos e magistrados. Na verdade, todas as metas levam à convergência do controle do trabalho dos magistrados e o entendimento do processo de produção da Justiça como uma mercadoria a ser despachada”. [6]

Contudo, a fim de justificar o nosso ponto de vista vamos nos valer do estudo desenvolvido por Pierre Dardot e Christian Laval no livro “A Nova razão do Mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal”, o primeiro filósofo e o segundo sociólogo, ambos da Universidade Paris-Quest Nanterre-La Défense.

A obra, em sua totalidade, é uma leitura recomendada, mesmo para aqueles que defendem as transformações no mundo econômico, social, político e da racionalidade que construíram o atual estágio de nossa existência, pois permite compreender a nossa sociedade (sem os limites territoriais de cada país) e a nós próprios, inclusive como agimos, como sentimos e como pensamos. Nenhum de nós está livre ou isento dessas transformações!

Nesta reflexão vamos nos concentrar no que os autores chamam de “governo empresarial” e a sua aplicação no controle dos agentes públicos (entre os quais se incluem os juízes), assim como os seus efeitos.

Trata-se do modelo de gestão pública que foi construído e disseminado a partir dos anos 1980. Tem como principal justificativa duas premissas.

A primeira, que pode ser sintetizada na concepção do sujeito competitivo, racionalidade construída segundo a fórmula tão bem resumida por Margareth Thatcher: “A economia é o método. O objetivo é mudar a alma”. [7]

Esta nova racionalidade do sujeito pressupõe que “a vida se apresenta somente como resultado de escolhas individuais”. Assim, “o obeso, o delinquente ou o mau aluno são responsáveis por sua sorte. A doença, o desemprego, a pobreza, o fracasso escolar e a exclusão são vistos como consequências de cálculos errados”, pelo que as “dificuldades da existência, a desgraça, a doença e a miséria são fracassos dessa gestão, por falta de previsão, prudência, seguro contra riscos”. Em face disso deve haver um trabalho pedagógico “para que cada indivíduo se considere detentor de um ‘capital humano’ que ele deve fazer frutificar, daí a instauração de dispositivos que são destinados a ‘ativar’ os indivíduos, obrigando-os a cuidar de si mesmos, educar-se, encontrar um emprego.” [8] Essa racionalidade faz com que haja a “primazia da concorrência sobre a solidariedade” [9] e “o princípio da concorrência deve ser universal, inclusive para os serviços públicos”. [10]

Este sujeito competitivo, o “homem empreendedor”, que detém a “liberdade de escolher”, é egoísta e oportunista, que calcula as vantagens e desvantagens para fazer essa opção. Por isso se faz necessária a construção de “sistemas de controle e avaliação de conduta cuja pontuação condicionará a obtenção das recompensas e a evitação das punições”. A adoção dessa “tecnologia avaliativa” “repousa sobre o fato de que quanto mais livre para escolher é supostamente o indivíduo calculador, mais ele deve ser vigiado e avaliado para obstar seu oportunismo intrínseco e força-lo a conjuntar seu interesse ao da organização que o emprega”. [11]

Esta é a segunda premissa: a “filosofia da gestão”.[12]

A “gestão por metas, avaliação de desempenhos e autocontrole dos resultados são os métodos empregados por essa gestão dos indivíduos”. [13]

Esse sistema de gestão foi incorporado aos serviços públicos, sendo um dos seus principais precursores Anthony Giddens, sociólogo britânico que exerceu grande influência na chamada “terceira via” implantada pelo Governo trabalhista de Tony Blair, assim como na chamada Escola do Public Choise e na criação da “nova gestão pública”, cuja argumentação se mostra essencial para a compreensão de seus objetivos: “contra o egoísmo dos funcionários públicos, ‘é preciso encorajar diversidade de fornecedores e criar estímulos eficazes’ em todos os domínios, em particular na saúde e na educação”. Deve ser inspirada na crítica que diz que as instituições públicas, não usufruindo da disciplina do mercado, tornam-se preguiçosas e seus serviços acabam sendo de má qualidade’”. [14]

O seu pressuposto é que “o funcionário público é um homem igual aos outros, um indivíduo calculador, racional e egoísta, que procura maximizar seu interesse pessoal em detrimento do interesse geral”, bem como que “o Estado não maximiza o interesse geral, os agentes públicos é que buscam na maior parte do tempo seus interesses particulares à custa de um desperdício social considerável”. [15]

Essa gestão pública, cujos métodos foram extraídos do setor privado [16] (“concorrência, downsizing, outsourcing [terceirização], auditorias, regulação por agências especializadas, individualização das remunerações, flexibilização do pessoal, descentralização dos centros de lucro, indicadores de desempenho e benchmarking” [17]), embasa-se no tripé “objetivos-avaliação-sanção”: 

“Cada entidade (unidade de produção, coletivo ou individual) passa a ser ‘autônoma’ e ‘responsável’ (no sentido de accountability). No âmbito de suas missões, recebe metas que deve atingir. A realização dessas metas é avaliada regularmente, e a unidade é sancionada positiva ou negativamente de acordo com seu desempenho. A eficácia deve aumentar em razão da pressão constante e objetivada que pesará sobre os agentes públicos, em todos os níveis, de tal modo que acabam artificialmente na mesma situação do assalariado do setor privado, que está sujeito às exigências dos clientes e às de seus superiores”.  [18]

Não pretendemos abordar as críticas que poderiam ser desenvolvidas a esse sistema de gestão (mesmo no âmbito da iniciativa privada), assim como os efeitos sobre os trabalhadores, frequentemente constatados em ações trabalhistas. Nessa reflexão pretendemos nos centrar em seus efeitos no judiciário.

Apesar de se tratar de prática generalizada [19], reputada ideologicamente neutra [20] e contar com reduzida resistência [21], esse sistema de gestão no Poder Judiciário potencializa exatamente esses aspectos dos agentes públicos que pretensamente justificam a sua adoção (o individualismo e o egoísmo), desestimulando motivações mais nobres (o que se consagrou chamar de vocação) que inspiravam e ainda em muito inspiram o bacharel em direito, a seguir a carreira da magistratura, e o juiz a exercer a sua função, assim como aqueles servidores que se propunham e ainda se propõem a atuar na atividade fim da prestação jurisdicional.

Nesse sentido, oportuna a perspicaz constatação dos autores da obra referida:

“O fato é que com esse léxico, e com a racionalidade que ele contém, difunde-se uma concepção utilitarista do homem que não poupa nenhum campo de atividade. O funcionário público é um agente racional que reage apenas aos estímulos materiais. Os códigos de honra da profissão, a identidade profissional, os valores coletivos, o senso de dever e o interesse geral que movem alguns agentes públicos e dão sentido a seu compromisso são deliberadamente ignorados. Por toda a parte, e em todos os setores, os motivos para agir são os mesmos, assim como os procedimentos de avaliação que condicionam as recompensas e as punições. Um enorme trabalho de redução do sentido da ação pública e do trabalho dos agentes públicos está em curso: têm pertinência apenas os motivos mais interesseiros de conduta, apenas os incentivos pecuniários que supostamente a orientam.” (Destacamos) [22]

Confirmando essa percepção dos autores, constata-se na prática que esse método de gestão tem desestimulado juízes e servidores, gerando, em contrapartida, mecanismos de autodefesa, como os mencionados no início deste texto.

De fato, os atuais mecanismos de controle e metas, fundados exclusivamente em dados estatísticos, compelem os magistrados a, cada vez mais, aumentar a sua produção numérica, independentemente da complexidade dos casos que lhe são submetidos, da relevância social ou econômica envolvida, do tempo que seria necessário para o exame acurado que a questão exigia. Esse efeito também é identificado pelos autores:

“Noções como a de ‘gestão dos fluxos judiciários’, difundidas nos anos 1990, tendem a transformar o magistrado num administrador que todo ano é obrigado a aumentar seu “portfólio de processos”, e de forma imperativa, na medida em que seu salário e sua promoção vão depender cada vez mais do cumprimento dos indicadores. O entendimento maciçamente contábil da atividade judiciária, médica, social, cultural, educacional ou policial tem consequências consideráveis sobre a maneira como são considerados os ‘clientes’ desses serviços regidos pelos novos princípios gerenciais, assim como sobre a forma como os agentes vivenciam a tensão entre essas lógicas contábeis e o significado que dão à profissão.

As normas contábeis constituem não tanto uma ‘ideologia’, mas uma forma específica de racionalidade importada do econômico. Nesse sentido, a ‘gestão pelo desempenho’ gera problemas sérios, que em geral ela tende a evitar: a determinação dos indicadores de desempenho, a apresentação dos resultados, a circulação da informação entre ‘topo’ e ‘base’. A questão é saber o que quer dizer “cultura de resultado” na justiça, na medicina, na cultura ou na educação, e sobre quais valores podemos julgá-lo. Na verdade, o ato de julgamento, que depende de critérios éticos e políticos, é substituído por uma medida de eficiência que se supõe ideologicamente neutra. Assim, tende-se a ocultar as finalidades próprias de cada instituição em benefício de uma norma contábil idêntica, como se cada instituição não tivesse valores constitutivos que lhe são próprios.” (destacamos) [23]

Da mesma forma, desconsidera completamente as características próprias e naturais de cada indivíduo, discriminando os que não se adaptam à produção numérica, mas que nem por isso deixam de ser excelentes profissionais, neles produzindo o desencanto com a magistratura.   Paradigmático o caso de uma magistrado que era exemplo de dedicação, sendo o seu trabalho reconhecido por todos, chegando ao ponto de um Corregedor lhe dizer que se tivesse uma causa e pudesse escolher o julgador, gostaria que esse magistrado a julgasse. Porém, esse magistrado sofria permanente e intensa cobrança, especialmente da Corregedoria, pela melhoria de sua produtividade.  Outro magistrado, juiz do trabalho do interior do Estado, era aclamado em sua jurisdição. Corregedores relatavam que os advogados faziam questão de enaltecer o seu trabalho e registravam que a comunidade estava plenamente satisfeita com sua atuação e gostariam que o mesmo lá permanecesse. Todavia, esse juiz sempre estava às voltas com cobrança por sua produção estatística e ameaçado, em face disso, com a abertura de procedimento disciplinar. Qual foi o destino desses magistrados? Assim que implementaram os requisitos, pediram aposentadoria.

Em relação aos servidores a situação não é diferente. Só na minha assessoria, pelo menos quatro servidores, excelentes profissionais, altamente capacitados e com trabalho exemplar, desistiram de atuar porque não conseguiam suportar a pressão pela produção numérica, transferindo-se para a área administrativa. E cada vez é mais difícil encontrar servidores dispostos a trabalhar na assessoria dos magistrados de primeiro e segundo grau. 

Esse modelo de gestão, reduzindo a inerente autonomia dos juízes [24] e transformando o indivíduo em seu próprio supervisor [25], acabam, como se constata na prática, afetando “mais diretamente o ‘coração do ofício, seu significado social, os valores sobre os quais repousa” [26], prejudicando a qualidade da prestação jurisdicional, desvalorizando a função e comprometendo a dedicação que se espera dos exercentes dessa função pública, pois “adquire valor o que é visto na atividade, em detrimento do que não o é” [27]:

A interpretação puramente numérica dos resultados de uma atividade, exigida pelo uso dos ‘painéis de gestão’ que orientam o ‘comando’ dos serviços, entra em contradição com a experiência e as dimensões não quantificáveis do ofício. A eficácia buscada pode ser contrariada pelos conflitos de valor que essa ‘cultura gerencial’ provoca em universos profissionais regidos por outros valores. Os efeitos de ‘desmoralização’ acabam tendo consequências sobre a qualidade do serviço, já que a dedicação e a consciência profissional são vistas como uma ficção enganadora ou uma exceção na nova doxa” (destacamos – pp. 315-316).  

 

Os seus efeitos práticos, que podem ser identificados nos exemplos inicialmente citados, também são detectados pelos autores, ao reconhecerem “efeitos perversos significativos, levando os serviços a concentrarem-se obsessivamente nos indicadores de desempenho, sem se preocupar com o conteúdo real de sua missão: taxa de sucesso num exame, taxa de ocupação de leitos em hospitais, proporção entre fatos constatados e fatos elucidados podem significar  resultados efetivos muito diferentes e até mesmo desvios muito graves com relação à realidade do serviço prestado. Essa fetichização do número conduz essa hiper-racionalização à ‘fabricação de resultados’ que estão longe de traduzir as melhorias reais, tanto mais que os gerentes e seus subordinados são todos obrigados a ‘entrar no jogo’ e contribuir para uma produção coletiva de números” (destacamos). 

Anotam os autores ainda que “os critérios de avaliação quantitativa estão longe de concordar com os critérios qualitativos de atenção ao cliente” e que “essa etapa da racionalidade burocrática vem acompanhada da perda de significado próprio dos serviços púbicos.” [28]

Finalmente, gostaríamos de citar ainda a seguinte passagem:

“A partir do momento que o postulado da nova gestão especifica que não se pode mais confiar no ‘indivíduo comum’, intrinsecamente privado de qualquer apego a um ‘espírito’ público e de qualquer adesão a valores que lhe seriam exteriores, a única solução é o controle e o ‘governo à distância’ dos interesses particulares. Quer se trate de equipe hospitalar, juízes ou bombeiros, os motivos e os princípios de sua atividade profissional são concebidos apenas do ângulo dos interesses pessoais e corporativos, negando-se, assim, qualquer dimensão moral e política de seu compromisso com uma profissão que repousa sobre valores própriosOs três ‘ee’ da gestão (‘eficácia, economia, eficiência) fizeram desaparecer da lógica do poder as categorias do dever e da consciência profissional.” [29] (destacamos)

 

Se esta dimensão moral e política do compromisso dos juízes com a magistratura, com a Justiça, efetivamente desaparecer, realmente deixará de existir a sua necessidade, pois o aspecto humano, intrínseco e necessário para o julgamento, não mais existirá. Os juízes poderão ser facilmente substituídos por uma máquina, pela chamada “inteligência artificial”, bastando o “cliente” digitar os seus dados, a sua “demanda”, pagar o preço do serviço, e imediatamente terá a sua “decisão”. E nem poderá reclamar do resultado, pois na racionalidade em que vivemos prevalece a concepção de que a “máquina é infalível”. 

Não queremos e nem imaginamos que vamos chegar a tal fim. Temos a convicção e também se constata diariamente que esta dimensão moral e política do compromisso dos juízes (aqui utilizando o termo na sua concepção genérica) com a magistratura, ainda que asfixiada pela lógica da gestão numérica, remanesce e resiste em parcela majoritária da magistratura.

Assim, a finalidade deste texto não é apenas criticar o modelo de gestão, nem expressar ou pretender uma revolva contra “os números”. O nosso objetivo é chamar a atenção para os seus efeitos e propor uma reavaliação desse modelo.

É preciso ressaltar também que as estatísticas, os diversos mecanismos de levantamento de dados e os programas de processamento dessas informações não são, em si, negativos. São instrumentos valiosos para acompanhamento de uma das dimensões da prestação jurisdicional, permitindo, por exemplo, a identificação de congestionamentos e da movimentação dos fluxos processuais e a localização de problemas. Os “números”, por si, são inofensivos. O problema, ao nosso ver, está em sua utilização. 

Da mesma forma, não se pretende descurar da relevância da celeridade processual e da necessidade de solução rápida das demandas judiciais, atualmente elevada a princípio constitucional (art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal). Ao contrário, temos a convicção que a celeridade da prestação jurisdicional faz parte da dimensão moral e política do compromisso dos juízes com a magistratura, e sempre foi (e continua sendo) uma das maiores preocupações e motivo de angústia dos magistrados, ante o elevado volume de ações que assolam todos os ramos do Poder Judiciário. 

De igual forma, não se está preconizando a tolerância com o mau profissional, com o juiz ou o servidor relapso. Embora seja significativa minoria, devem ser identificados e regularmente responsabilizados. Mas o modelo de gestão que estamos criticando não facilita esta identificação e muito menos é capaz de corrigir esses desvios. Ao contrário, estimula manobras que manipulam os números e encobrem a dedicação real.

O que se pretende é preconizar um modelo de gestão diferente do atual, que seja compatível com os valores inerentes à magistratura; que compreenda todas as dimensões dos problemas que afetam o Poder Judiciário; que não pressuponha o magistrado como um indivíduo egoísta e interesseiro, mas valorize as dimensões mais nobres da magistratura; que compreenda as diferenças e que contribua para as soluções; que priorize a efetividade da prestação jurisdicional e não apenas o volume numérico das soluções.

Não é nosso objetivo e nem há espaço nesse texto para apresentar um modelo ideal de gestão. Mesmo porque esse modelo, pensamos, deve ser construído coletivamente, com a participação das associações de magistrados, das administrações dos Tribunais, dos juízes de primeiro e segundo grau, de servidores, bem como dos advogados, por meio de suas instituições, e da sociedade organizada, destinatária dos serviços públicos. 

Contudo, para concluir e demonstrar que a construção de um novo modelo de gestão, compatível com a finalidade do Poder Judiciário, é perfeitamente possível, lembramos que o CNJ já deu um importantíssimo passo nessa direção ao aprovar a Resolução CNJ nº 240/2016, que se encontra em plena vigência, a qual prevê em seu art. 3º como princípios da Política Nacional de Gestão de Pessoas do Poder Judiciário:

“I – valorização dos magistrados e servidores e de sua experiência, conhecimentos, habilidades e atitudes;

II – promoção da saúde, vista como dinâmica de construção contínua, tendo como referência um estado de completo bem-estar físico, mental e social (preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde) e tendo a vivência no trabalho como recurso fundamental;

III – aprimoramento contínuo das condições de trabalho desde a concepção ergonômica dos espaços, instrumentos e processos de trabalho, abrangendo o retorno da experiência de servidores, magistrados e demais envolvidos;

IV – promoção da cultura de valorização social do trabalho, como elemento indispensável à dignificação humana, ao desenvolvimento das organizações e aos fins constitucionais do Poder Judiciário;

V – promoção da cultura orientada a resultados, com foco no aperfeiçoamento da eficiência, da qualidade e da efetividade dos serviços prestados à sociedade, na consecução dos fins jurídicos e metajurídicos da Jurisdição;

VI – alinhamento do desenvolvimento profissional ao desenvolvimento institucional, conforme os objetivos estratégicos, os valores do serviço público judiciário e da magistratura;

VII – reconhecimento de que as atividades desempenhadas exigem competências específicas e o aprendizado individual e coletivo contínuo vinculado à experiência de trabalho;

VIII – reconhecimento de que as instituições são responsáveis pela identificação e pela promoção de ações de desenvolvimento de pessoas;

IX – estímulo ao desenvolvimento de talentos, ao trabalho criativo e à inovação;

X – práticas em gestão de pessoas pautadas, entre outros, pela ética, cooperação, eficiência, eficácia, efetividade, isonomia, publicidade, mérito, transparência e respeito à diversidade;

XI – fomento à gestão do conhecimento e ao desenvolvimento das competências e da aprendizagem contínua baseada no compartilhamento das experiências vividas no exercício profissional;

XII – respeito à diversidade e à consideração da variabilidade pessoal, das tarefas, dos contextos de produção e das condições de trabalho para a concepção e a implementação de mecanismos de avaliação e de alocação de recursos;

XIII – garantia de acessibilidade a todos do Poder Judiciário, com a adaptação do meio e a remoção de barreiras físicas, arquitetônicas, de comunicação e atitudinais, de modo a promover o amplo e irrestrito acesso de pessoas com deficiência às suas dependências, aos serviços que prestam e às respectivas carreiras;

XIV – caráter participativo da gestão, com fomento à cooperação vertical, horizontal e transversal.” (destacamos)

Outro instrumento que também se mostra capaz de imprimir uma nova racionalidade na gestão do Poder Judiciário, mais democrática e afinada com os seus fins, encontra-se autorizado pela Resolução 350/2020 também do CNJ. Trata-se do Núcleo de Cooperação Judiciária, assim descrito por José Eduardo de Resende Chaves Júnior:

O núcleo de cooperação é, sobretudo, um espaço institucional de diálogo entre os juízes para que possam diagnosticar os problemas e características da litigiosidade em cada localidade e, a partir daí, traçar, coletivamente, uma política judiciária mais adequada à realidade. 

(…)

Na linha, a forma de gestão mais adequada à atividade republicana de jurisdição é o modelo de envolvimento cooperado e participativo do juiz, com transparência, gestão democrática e, sobretudo, coletiva.

Os núcleos de cooperação judiciária constituem, pois, mecanismos de gestão judicial coletiva, tanto de rotinas e procedimentos como também de articulação de estratégias para a própria composição de conflitos. Funcionam sob os princípios da descentralização, colaboração, conexão e harmonização de mecanismos de gestão administrativa e processual” [30]

Portanto, pensamos que se mostra urgente, necessária e perfeitamente possível a reformulação dos mecanismos de gestão do Poder Judiciário, a fim de que efetivamente valorizem as reais qualidades da magistratura e priorizem a finalidade da Justiça, o que, temos certeza, fortalecerá os fundamentos éticos e morais que devem orientar essa função pública, fazendo com que os números se transformem em efetiva Justiça.

Notas:

[3] Não somos contrários ao oferecimento de vagas para estagiários no Poder Judiciário, pois se trata de importante meio de contribuição para a formação dos estudantes de direito. Mas o principal objetivo do estágio deveria ser a contribuição para a formação desses estudantes, não alternativa para suprir a falta de servidores.

[4] Quem escreve esse texto é um juiz que ingressou na magistratura em 1990 e passou a atuar no Tribunal Regional do Trabalho em 2001, quando recebia cerca de 100 processos de relator por mês, volume que permitia, sem ócio, o exame adequado de cada um dos autos e o julgamento individualizado no colegiado, mas com a satisfação de quem realmente estava exercendo a judicatura. Já em 2019 liberou com voto de relator para julgamento 1.989 processos e em 2020 esse número passou para 2.878 processos.

[5] “Cooperação Judiciária na Justiça do Trabalho”, p. 110  (https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/103805). O mesmo autor ainda pontua: “Por falta de pesquisa acadêmica ou institucional a respeito e de preparo dos juristas para lidar com o tema da gestão, acabaram-se adotando, de forma precipitada, alguns modelos concebidos para a iniciativa privada, sem levar as especificidades das questões que envolvem a gestão pública. (…) A receita de gestão privatística priorizou os dados estatísticos, a abordagem quantitativa e economicista e, principalmente, o viés de competição, incorporando o espírito concorrencial de mercado; foram instituídos, até mesmo, rankings e prêmios.” (p. 109).

[6] “O choque de gestão do Poder Judiciário Brasileiro”, in O Trabalho do Juiz. ALVES, Giovanni (org.). Bauru: Canal 6, 2014, p. 126.

[7] “Economics are the method. The object is to change the soul”. Expressão utilizada no jornal Sunday Times de 07-05-1988. Ob. Cit., p. 331

[8] Ob. Cit., pp. 230-231.

[9] Ob. Cit., p. 238.

[10] Ob. Cit., p. 239.

[11] Ob. Cit., p. 217.

[12] Ob. Cit., p. 228.

[13] Ob. Cit., p. 228.

[14] Ob. Cit., p. 240. Oportuno também citar as seguintes passagens dessa obra: “A principal crítica que se faz ao Estado é sua falta global de eficácia e produtividade no âmbito das novas exigências impostas pela globalização: ele custa caro demais em comparação com as vantagens que oferece à coletividade e põe entraves à competitividade econômica. É, portanto, uma análise econômica que se deseja submeter a ação pública para discriminar  não apenas as agendas e as não agendas, mas a própria maneira de realizar as agendas. Esse é o objetivo da linha do ‘Estado eficaz’, ou do ‘Estado gerencial’, tal como este começa a se construir a partir dos anos 1980.” (p. 273). “Uma das constantes da retórica da nova direita constituiu em mobilizar a opinião pública contra os ‘desperdícios’, os ‘abusos’ e os ‘privilégios’ de todos os parasitas que povoam a burocracia e vivem à custa da população honesta e trabalhadora” (p. 290).

[15] Ob. Cit., p. 296.

[16] “Essa nova gestão pública visa a mudar o Estado e, para isso, inspira-se sistematicamente em lógicas de concorrência e métodos de governo de empregados nas empresas privadas” (ob. Cit., p. 301).

[17] Ob. Cit., pp. 301-302)

[18] Ob. Cit., p. 302. “Os termos da ‘boa governança’ e das ‘boas práticas’ tornaram-se o mantra da ação governamental”. Ob. Cit., p. 302. “Os termos da ‘boa governança’ e das ‘boas práticas’ tornaram-se o mantra da ação governamental”.

[19] “Essa reforma da administração pública é parte da globalização das reformas da arte de governar. Em todo o mundo, seja qual for a situação local, os mesmos métodos são preconizados, e o mesmo léxico uniforme é empregado (competição, reengenharia de processos, benchmarking, best practice, indicadores de desempenho). Esses métodos e essas categorias são válidos para todos os problemas, todas as as esferas de ação, da Defesa nacional à gestão dos hospitais, passando pela atividade judicial” (p. 312).

[20] “Essa reforma ‘genérica’ do Estado segundo os princípios do setor privado apresenta-se como ideologicamente neutra: visa somente à eficiência ou, como dizem os especialistas britânicos em auditoria, ao ‘value for money’, isto é, à otimização dos recursos utilizados.” (p. 312)

 “Essa nova gestão pública, tão universalmente aceita, age de maneira muito mais eficaz do que qualquer discurso radical, enfraquecendo as resistências éticas e políticas dentro dos setores público e associativo.” (p. 312).

[21] “Essa nova gestão pública, tão universalmente aceita, age de maneira muito mais eficaz do que qualquer discurso radical, enfraquecendo as resistências éticas e políticas dentro dos setores público e associativo.” (p. 312).

[22] Ob. Cit., – p. 312.

[23] 0b. cit., p. 313.

[24] “Trata-se de reduzir a autonomia adquirida por alguns grupos profissionais, como médicos, juízes e professores, considerados dispendiosos, permissivos ou pouco produtivos, impondo-lhes critérios de resultado constituídos por uma tecnoestrutura especializada proliferante” (destacamos. Ob. Cit., p. 315). “Esses modos uniformes de medida de desempenho e incentivos típicos da nova gestão fazem dela uma máquina de guerra contra as formas de autonomia profissional e os sistemas de valor a que os assalariados obedecem” (ob. Cit., p. 315).

[25] “Idealmente, cada indivíduo deve ser seu próprio supervisor, mantendo atualizadas a contabilidade de seus resultados e a adequação às metas que lhe foram atribuídas. Um dos objetivos disso é fazer o indivíduo interiorizar as normas de desempenho e às vezes, mais do que isso, fazer com que o avaliado seja o produtor das normas que servirão para julgá-lo” (ob. Cit., p. 315). 

[26] Ob. Cit., p. 315.

[27] Ob. Cit., p. 316.

[28] Trechos extraídos da p. 318 (ob. cit.).

[29] Ob. Cit., pp. 319-320.

[30] Artigo citado, pp. 121-123. O mesmo autor ainda argumenta: “O referido espaço institucional poderá ser concretizado com reuniões, anuais ou semestrais, entre os juízes de um mesmo foro ou tribunal, para discutirem e deliberarem, de forma coletiva e participativa, eventual harmonização de procedimentos, reunião de processos repetitivos ou mesmo para definirem, junto às Administrações dos Tribunais, as prioridades no aparelhamento ou melhoria na estrutura judiciária. A gestão judiciária não pode mais ser analisada em segmentação à atividade-fim do juiz. A nova gestão judiciária envolve tanto as atividades-meio como também os procedimentos e rotinas da secretaria do juízo, além dos próprios atos ordinatórios do processo. (…) A gestão judiciária, normalmente, é delegada aos setores administrativos do Poder Judiciário. (…) As estratégias a serem traçadas, contudo, não podem se pautar apenas em dados estatísticos, que também são muito relevantes, mas que não podem ser ferramenta exclusiva, pois é preciso também captar a essência da origem dos conflitos sociais a serem dirimidos pela justiça e, muito importante, a efetiva observância da garantia dos direitos constitucionais ao processo justo, o que, evidentemente, demanda uma interação coletiva entre os juízes e deles com os demais sujeitos do processo.

Arion Mazurkevic é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região.

Suely Filippetto é juíza do Trabalho aposentada.

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