Teletrabalho na Argentina e no Brasil: tão perto, mas tão longe

Fotografia: Bench Accounting/Unsplash

Publicada em agosto de 2020, a nova lei argentina de teletrabalho garante isonomia, desconexão e privacidade. E demonstra profundas diferenças com as opções normativas brasileiras.

Oscar Krost

Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 28/08/2020

Em 14 de agosto de 2020 foi publicada na Argentina a Lei no 27.555/20, regulando o teletrabalho. Desde 2003 o país é signatário da Convenção n° 177 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – Lei n° 25.800/03 -, assumindo o compromisso de aperfeiçoar as condições de atuação dos empregados que laboram à distância, bem como de implantar uma política de igualdade neste campo.

Constituição argentina assegura, a tutela dos trabalhadores, em condições dignas e equitativas de atuação.1 Guardadas as devidas proporções, consagra os mesmos ideais de isonomia e de igualdade previstos no art. 7o, incisos XXX e XXXII, da Constituição brasileira.2

Enquanto no Brasil o Poder Legislativo disciplinou o teletrabalho pela inserção dos arts. 75-A a E à CLT (Lei no 13.467/17),3 na Argentina a medida ocorreu pelo acréscimo do art. 102 bis à Lei do Contrato de Trabalho (Lei no 27.555/20).4

No lugar de distinguir os dispositivos introduzidos pela alocação de letras ao lado dos numerais, preservou a numeração do projeto de lei, em desdobramentos do art. 102 bis, começando pelos arts. 1o e 2o, seguindo pelo art. 102 bise continuando do art. 3o.

art. 102 bis define o contrato de teletrabalho como aquele em que os serviços contratados ocorram no domicílio do empregado, de modo total ou parcial, ou em lugar diverso dos estabelecimentos do empregador, fazendo uso de tecnologia de informação e comunicação. Delega à lei especial a definição dos pressupostos mínimos do contrato de teletrabalho e chancela o ajuste de questões especiais pela via negocial coletiva.

A expressão “contrato de teletrabalho”, ao invés de “regime”, como no art. 75-A da CLT, não traz prejuízo de qualquer ordem na interpretação ou aplicação da lei, pois ela mesma utiliza como sinônimo o termo “modalidade”, ao se reportar ao teletrabalho. O texto argentino faz menção aos arts. 21 e 22 da Lei do Contrato de Trabalho, quanto ao objeto do contrato, nos quais são estabelecidos os requisitos da relação de emprego.5 Não há exigência de exclusividade de laborar o trabalhador fora das dependências do empregador.

Já o art. 75-B, caput, da CLT impõe a preponderância da atuação remota, não esclarecendo o critério a ser utilizado, se por unidade de tempo ou de obra. De forma explícita, estabelece não se confundir o teletrabalho com o trabalho externo (art. 62, inciso I, da CLT), nem desconfigurado o regime remoto pelo comparecimento do trabalhador à sede da empresa para realizar tarefas específicas (art. 75-B, parágrafo único, da CLT).

Pelo art. 3o são assegurados aos teletrabalhadores idênticos direitos dos empregados presenciais e atribuídos poderes às normas coletivas para disciplinar situações híbridas. Inexiste disposição semelhante na CLT, sendo possível, por uma interpretação sistemática do art. 7o, incisos XXX e XXXII, da Constituição brasileira, defender o mesmo tratamento estabelecido na regra argentina.

art. 4° determina a pactuação da jornada por escrito, dentro dos limites legais. As plataformas e softwares adotados no teletrabalho devem estar acessíveis apenas durante o expediente. O art. 5° garante o direito à desconexão digital,6 vedando o trabalho em sobrejornada e a comunicação do empregador com o empregado fora do horário contratado, ainda que por mensagens.

Em sentido diverso, a CLT exclui o teletrabalhador do campo de incidência de seu capítulo sobre a duração do trabalho. Flagrante e injustificada a afronta ao Princípio da Proibição do Retrocesso Social (art. 7ocaput, da Constituição).

art. 6o prevê o estabelecimento de horários e pausas especiais aos teletrabalhadores responsáveis por menores de 13 anos, pessoas incapazes ou que necessitem de cuidados especiais. A resistência do empregador é reputada presumidamente discriminatória, sujeitando-o às sanções legais. Não há regra semelhante na CLT, embora a Constituição brasileira (arts. 226 e 227) atribua a todos o dever de tutela da infância e da adolescência, bem como ao Estado, a proteção da família.

art. 7o permite a troca do regime presencial pelo remoto, desde que de forma bilateral e por escrito, salvo se devidamente comprovada ocorrência de força maior. A previsão se assemelha à do art. 75-C, §1o, da CLT, pela qual o mútuo consentimento é exigido quando o empregado passasse do sistema presencial para o remoto, não o contrário (art. 75-C, §2o, da CLT).

art. 8o da lei argentina assegura o direito de arrependimento do trabalhador, revertendo o consentimento dado para mudança de regime, de presencial para teletrabalho. Acaso isto venha a acontecer, o retorno ao antigo local de trabalho é preservado e, em sua impossibilidade, garantida a transferência ao posto mais próximo do domicílio do empregado.

O descumprimento da obrigação acarreta a violação do dever de ocupação (art. 78 da Lei do Contrato de Trabalho), ensejando o recebimento de salários, mesmo se não prestados serviços. A negativa empresária dá margem à configuração de causa a amparar a despedida indireta (“rescisão” indireta), pondo fim ao contrato. Não há regra similar na CLT.

Pelos arts. 910 é imputado ao empregador o dever de fornecimento dos equipamentos necessários ao teletrabalho, bem como a assunção de despesas de instalação, manutenção, reparos e atualização. Os trabalhadores ficam responsáveis pelo uso exclusivo dos instrumentos, não respondendo por desgaste/depreciação comuns. Acaso o teletrabalho acarrete aumento de despesas de conexão e de serviços de suporte pelo empregado, deve ser assumido pelo patrão, conforme norma coletiva, valores isentos de tributação.

Sobre o tema, o art. 75-D da CLT estabelece que o pacto referente à aquisição, manutenção e fornecimento de maquinário deve constar em contrato escrito, não estabelecendo a quem caberia o custeio. Não afasta a responsabilidade patronal, ficando a questão nas entrelinhas, por conta do teor do art. 2o, caput, da CLT. Esclarece não possuírem as utilidades fornecidas natureza salarial (art. 75-D, parágrafo único, da CLT).

art. 11 atribui ao empregador a capacitação de empregados em regime de teletrabalho, visando à adequação das condições da prestação de serviços. Faculta o acompanhamento pelos sindicatos e pelo Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social.

Sobre a questão, o art. 75-E da CLT prescreve como deverdos patrões a instrução dos trabalhadores quanto a precauções relacionadas à saúde e ao trabalho. Determina a assinatura pelo sujeito subordinado de termo de responsabilidade pelas orientações recebidas (art. 75-E, parágrafo único, da CLT).

Novamente, a efetiva tutela do trabalhador brasileiro é deixada na dependência de uma interpretação sistemática do regime de trabalho especial, dando margem a casuísmos e a relativizações. O alcance do conteúdo do art. 75-E da CLT deve se amparar nos Princípios jusambientais da Prevenção e da Informação, bem como na Convenção no 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).7

Merece destaque a garantia pela norma argentina: da igualdade de direitos coletivos entre teletrabalhadores e trabalhadores presenciais (arts. 12 e 13), do reconhecimento da autoridade competente para disciplinar o teletrabalho e da participação sindical neste processo (art. 14), da manutenção de controles de bens e de informações de propriedade do empregador, também com a contribuição do sindicato, salvaguardando a intimidade do empregado (arts. 15 e 16) e da aplicação das regras vigentes no local onde fisicamente ocorrerem os serviços, limitando a contratação de estrangeiros e de não residentes no país (art. 17).

Sem dúvida de qualquer espécie, a Lei no 27.555/20 encontra-se alinhada às diretrizes da Organização Internacional do Trabalho e da Constituição argentina ao disciplinar o teletrabalho. Cuidado, prevenção e responsabilidade se destacam como eixos fundamentais. Não se apresenta apenas possível, como recomendável, pela centralidade da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho na Constituição brasileira, a utilização da norma do país vizinho como fonte supletiva às regras dos arts. 75-A a E da CLT sobre a matéria, diante do conteúdo do art. 8o da própria CLT.

Notas

Artigo publicado originalmente em Direito do Trabalho Crítico.

Constituição argentina, art. 14 bis, disponível em <https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/10092>. Acesso em: 28 ago. 2020.

2 Sobre a aplicação dos referidos dispositivos ao teletrabalho no direito brasileiro, ver KROST, Oscar. Proibição de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, Reforma Trabalhista e ‘teletrabalho’: diferenciando iguais para reduzir direitos. In ARAUJO, Adriane Reis de; D´AMBROSO, Marcelo José Ferlin. (Coordenadores). Democracia e Neoliberalismo: o legado da Constituição de 1988 em tempos de crise. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 331-360.

3 O Brasil não é firmatário da Convenção no 177 da Organização Internacional do Trabalho, conforme informado em <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242947/lang—pt/index.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020.

4 Texto da Lei no 27.555/20 disponível em <https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/233626/20200814>. Acesso em: 28 ago. 2020.

5 Os conceitos de empregado e empregador se encontram nos arts. 25 e 26 da Lei do Contrato de Trabalho, sendo feita remissão aos arts. 21 e 22 da mesma lei. Texto disponível em <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/25000-29999/25552/texact.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020)

6 No Brasil, os debates sobre a existência do direito à desconexão avançam, sem atingir, ainda, o nível das alterações legislativas promovidas na Argentina. A respeito do tema, ver ALMEIDA, Almiro Eduardo; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais do trabalho. 2a edição. São Paulo: LTr, 2016 e GOLDSCHMIDT, Rodrigo; GRAMINHO, Vivian Maria Caxambu. Desconexão: um Direito Fundamental do trabalhador. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2020.

7 Sobre tal entendimento, ver SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de (et al.). Reforma trabalhista: análise comparativa e crítica da Lei nº 13.467/17 e da Med. Prov. nº 808/2017 – 2ª a ed. – São Paulo: Rideel, 2018, p. 111-112.

Oscar Krost é graduado em Direito (UFRGS), egresso da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul (FEMARGS), Juiz do Trabalho (TRT12), Mestre em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB), Professor em Cursos de Pós-Graduação em Direito e Processo do Trabalho e de aperfeiçoamento, Membro e fundador do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA), Membro do Conselho Editorial da Revista do TRT12, Revisor das Revistas do TRT4 e do TRT12 e colaborador de revistas/sites juridicos.

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