Murilo Riccioppo Magacho Filho
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 31/08/2019
Um discurso que se tornou dominante atualmente no Brasil é o da “modernização” e “flexibilização” da legislação trabalhista, o qual arrasta, para sua legitimação, uma narrativa histórica de mitificação dos governos Vargas.
Esse discurso parte do pressuposto de que estamos, atualmente, em um novo tempo, diverso do tempo da era Vargas, o suposto “criador da CLT”; que a legislação trabalhista daquela época não é ponderável na atualidade, uma vez que foi desenvolvida por uma política de “cunho fascista”, e que estamos vivenciando, atualmente, ao contrário da era Vargas, a “democracia”, na qual deve prevalecer a livre escolha dos indivíduos na formulação de seus contratos.
Representativo neste sentido foi o discurso do relator do Projeto de Lei 6.787/16, Roberto Marinho, projeto que se tornou a conhecida Lei da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017). Assim se pronunciou o Relator em sua justificação ao projeto[1]:
O Brasil de 1943 não é o Brasil de 2017. (…) Iniciando um processo de industrialização, vivíamos na ditadura do Estado Novo, apesar disso, o governo outorgou uma legislação trabalhista que preparava o país para o futuro. Uma legislação que regulamentava as necessidades do seu tempo, de forma a garantir os patamares mínimos de dignidade e respeito ao trabalhador. (…) Inspiradas no fascismo de Mussolini, as regras da CLT foram pensadas para um Estado hipertrofiado, intromissivo, que tinha como diretriz a tutela exacerbada das pessoas e a invasão dos seus íntimos. (…) não podemos mais insistir nas teses de que o Estado deve dizer o que é melhor para os brasileiros negando-os o seu direito de escolher. (…)
O que merece atenção, neste e nos demais discursos pró-reforma trabalhista no Brasil, é a ausência de uma discussão econômica profunda sobre a necessidade de uma legislação trabalhista para a efetivação de uma economia preocupada com o desenvolvimento nacional, bem como a ausência de compreensão de que, antes do Estado Novo, e mesmo antes do primeiro governo de Vargas na década de 30, as reivindicações trabalhistas em ebulição já forçavam o governo a tomar atitudes mais concretas para possibilitar as transformações econômicas, o que exigia do governo, também, uma centralização capaz de fazer valer as leis trabalhistas, cuja efetividade era então sempre obstacularizada pelas oligarquias locais.
Destacar esse aspecto econômico é possibilitar um real caminho para discussões profundas sobre a relação entre a legislação trabalhista (incluindo o Direito e a Justiça do Trabalho) e o desenvolvimento social e econômico brasileiro.
Caio Prado Jr demonstrou no decorrer de seu clássico História Econômica do Brasil[2], que os problemas de nossa estrutura econômica ainda não estão desvinculados dos problemas econômicos da época colonial. O autor destacava essa questão na segunda metade do século XX; mas se para ele o caráter colonial de nossa economia se prolongava até aqueles dias, não é forçoso dizer que esses dias são também os de hoje.
A política de desindustrialização atrelada à “flexibilização” dos direitos sociais, da qual o governo atual de Bolsonaro se mostra o maior representante, traz consigo uma atitude de continuidade de uma economia de tipo colonial, que foi assim denunciada por Caio Prado Jr. no século XX[3]:
Se vamos à essência da nossa formação – explica Caio Prado Jr. – veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamante; depois algodão e em seguida café para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com este objetivo, voltada para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades do país. Virá o banco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará mão-de-obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente produtora, mercantil, se constituirá a colônia brasileira.
Este início, cujo caráter se manterá dominante através dos séculos da formação brasileira, se gravará profundamente e totalmente nas feições do país. Particularmente na sua estrutura econômica. E se prolongará até nossos dias (…).
Fato é que os objetivos e a forma da exploração colonial ainda se mantêm os mesmos dessa descrição de Prado Jr.: o Brasil continua sendo a velha empresa estruturada com objetivo exterior, voltado a interesses que são exclusivamente os interesses de fora do país.
A ampliação e efetivação dos Direitos Sociais e da legislação trabalhista no governo de Vargas, a centralização desta política no poder executivo e especificamente no Ministério do Trabalho, somada a todas as políticas sociais do período, surgiram, dentre outros fatores, exatamente pela necessidade desta superação de uma economia de tipo colonial, marcando um real momento de revisão da estrutura econômica brasileira.
Em um dos aspectos, essa revisão foi provocada pelas sucessivas crises cafeeiras do período republicano (ou da República Burguesa, como intitula Caio Prado).
Foi o estopim da crise cafeeira, provocado principalmente pela queda da bolsa em 1929, que nos alertou ao fato de que a economia voltada para “para fora” já não poderia sustentar-se. Os principais países importadores, como os Estados Unidos, modificaram sua política externa reduzindo as importações do café brasileiro[4]; a extrema redução da exportação de produtos primários e a drástica diminuição das importações de produtos necessários à subsistência de sua população demonstravam que aquele sistema anterior já não era suficiente para lidar com este problema econômico de derivação internacional.
Era preciso diversificar a economia, e criar formas de produção que estivessem vinculadas ao consumo interno. De maneira sintética, era preciso construir uma economia voltada para dentro do país. Constatou-se que o Brasil já podia se projetar para “a constituição e ampliação de um mercado interno, isto é, desenvolvimento do fator consumo, praticamente imponderável no conjunto do sistema anterior, em que prevalece o elemento produção”[5].
É principalmente desta necessidade de desenvolver o fator consumo, até então imponderável na antiga estrutura econômica latifundiária, que o Direito do Trabalho se apresenta como um dos principais caminhos de solução. O Estado passa a ser chamado para servir de papel diretivo na efetivação e no cumprimento das leis trabalhistas, a fim de proporcionar ao trabalhador maior estabilidade e, portanto, maior possibilidade de consumir os bens que deveriam circular internamente no mercado nacional, somado, ainda, à necessidade de proteger a vida e a dignidade do trabalhador e de sua família por ser ele a principal força motriz da produção capitalista em construção.
Mas é preciso deixar claro que não se tratou de uma política surgida da “cabeça” de Vargas, muito menos da ditadura do Estado Novo.
Primeiro porque foi destacável a influência da luta política dos trabalhadores na época da Primeira República, antes mesmo do ingresso de Vargas no poder.
Como explica Rosa Maria Barboza de Araújo, se a legislação trabalhista já estava se elaborando nos textos legais desde a República Velha, foram os setores representativos do movimento operário a principal força a pressionar o governo, na era Vargas, a tornar efetivas as leis até então apenas previstas.
Compreendendo que a legislação social existente era incapaz de atender às inúmeras reivindicações dos trabalhadores, passaram estes setores a reclamar seus direitos junto ao Estado, não só encaminhando projetos de lei ao Congresso, como também denunciando ao Conselho Nacional do Trabalho a não concessão de férias e a ocorrência de demissões injustas. O próprio conselho reconhecia que a lei não era efetivamente cumprida[6].
Com as exigências destes setores por melhores condições de trabalho, e, com a posse de Vargas no Governo Provisório, em 1930, desenvolve-se, finalmente, uma política social concentrada no Estado que, em certa medida, atenderia algumas das principais reivindicações do trabalhador. Política esta que estaria centralizada em um órgão do Poder Executivo, o Ministério do Trabalho.
É claro que, apesar da influência da luta dos trabalhadores, não compartilhamos da ideia de que o governo de Vargas e seu Ministério do Trabalho tenham sido realmente revolucionários, como se dizia à época. Todas as ações políticas de Vargas e de seu Ministério do Trabalho eram ações de cunho mais corporativista do que propriamente afeito à luta de classes, o que pode ser verificado pelo próprio discurso de Vargas à época[7]:
Faz-se necessário congregar todas as classes em uma colaboração efetiva e inteligente. Ao direito cumpre dar expressão e forma a essa aliança capaz de evitar a derrocada final. Tão elevado propósito será atingido quando encontrarmos reunidos numa mesma assembleia, plutocratas e proletários, patrões e sindicalistas, todos os representantes das corporações de classe, integrados, assim no organismo do Estado.
O fato do corporativismo é incontestável. No entanto, deve ser vista com cautela sua relação com a legislação trabalhista no período. Dizer, com base no corporativismo do governo provisório, que a política trabalhista aproveitada por Vargas é uma derivação do fascismo italiano é o mesmo que manter entre nós um mito preocupante.
Trata-se de um argumento que reflete um grave desconhecimento sobre a história da legislação e do Direito do Trabalho no país.
A CLT, associada pelos discursos atuais da Reforma ao fascismo italiano, embora tenha sido elaborada no governo Vargas, tratou-se, na verdade, de uma consolidação de leis, como o próprio nome destaca. Ou seja, foi um movimento de consolidação de leis trabalhistas que haviam sido formuladas, pressionadas e, inclusive, publicadas anteriormente ao primeiro governo de Vargas, antes até mesmo de sua posse no Governo provisório do final de 1930, tal como destaca Pedro Cezar Dutra Fonseca[8]:
É preciso lembrar mais uma vez que as leis trabalhistas não são inovações do governo estabelecido após 1930; ao contrário, e tendo-se presente a série de leis anteriores a este ano (como, por exemplo, a lei sobre acidentes de trabalho, de 1919, posteriormente reformulada em 1923; a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensões para empregados de estrada de ferro, dando-lhes estabilidade por dez anos, de 1923; ano no qual também foi criado o Conselho Nacional do Trabalho; a lei de férias de 1925 e o Còdigo de Menores de 1926), pode-se argumentar que a regulamentação da força de trabalho ocorrida após 1930 é mais a continuidade e o aprofundamento de determinada tendência histórica que propriamente uma novidade.
É claro que o governo de Vargas aprofundou esta legislação, e lhe deu relativa efetividade, concentrando-a nos órgãos do Poder Executivo. É também evidente que de certa forma, buscou com isso domesticar e apaziguar os movimentos de luta que se ampliavam progressivamente nos anos 20, inclusive reprimindo militarmente as revoluções. Mas é preciso despersonalizar a questão.
Se a legislação trabalhista foi fortalecida e colocada em prática, em âmbito urbano, a partir de um governo centralizado como o de Vargas, os principais fatores econômicos para essa organização de leis superam a figura e a atuação da pessoa do governante. É o que destaca Jorge Luiz Souto Maior[9]:
A história do advento da legislação trabalhista (…) não pode ser atrelada à atuação de Vargas, seja para lhe conferir méritos, seja para lhe atrair críticas. O contexto econômico mundial, que impulsionava a política das relações internacionais, ainda mais considerando o crescimento da consciência dos trabalhadores sobre os problemas da sociedade capitalista, impulsionando práticas revolucionárias, pressionava o governo brasileiro, mesmo antes da Revolução de 30, na direção da legislação social. Além disso, as necessidades econômicas internas, evidenciadas depois da crise de 1929, exigem um direcionamento neste sentido, como base para a institucionalização do capitalismo industrial, que tem como requisito, vale lembrar, a constituição da massa trabalhadora e do mercado consumidor interno.
O fato concreto é que quando Getúlio assumiu, várias razões de ordem política e econômica acumulavam-se para que sua postura diante das relações de trabalho não pudessem ser mesmo outra que não a da implementação mais ampla e acelerada das normas trabalhistas[10]:
Sob o prisma político, internamente, sua chegada ao poder representava a quebra da república da oligarquia cafeeira e, no contexto internacional, aumentava a pressão para que o Brasil adotasse, efetivamente, leis de proteção social.
No aspecto econômico, o incentivo à industrialização requeria o enquadramento jurídico das relações de trabalho, para a constituição da massa trabalhadora, mas também para a contensão das insatisfações decorrentes de contingências e do aumento das complexidades urbanas, diretriz, aliás, já bastante difundida entre os políticos nacionais, conforme acima demonstrado
O mérito de Vargas foi o da “compreensão do momento econômico e de ter tido a habilidade política necessária para ajustar interesses e favorecer o desenvolvimento de um projeto determinado – concordando-se, ou não, com ele”[11]. O mérito foi o de ter percebido que a proteção do trabalhador e do desenvolvimento da economia e da sociedade como um todo dependiam da superação de uma economia voltada para fora (“colonial”), em direção a uma economia voltada para dentro (“nacional”).
Revisitar Vargas, portanto, rompendo com os mitos sobre a legislação trabalhista, pode nos ser um importante passo para reabrirmos a discussão sobre um projeto de desenvolvimento que tenha em vista essas necessidades de superação da economia de tipo colonial no Brasil, ainda persistente.
Notas:
[1] Parecer do relator do Projeto de Lei 6.787/16, disponível em <https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1544961> Acesso em 23.05.2019. [2] PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2006. [3] Ibidem, p. 23. [4] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. História do Direito do Trabalho no Brasil: Curso de Direito do Trabalho, volume I, parte II. São Paulo: LTR, 2017. p. 174. [5] Idem. [6] ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de. O Batismo do trabalho: a experiência de Lindolfo Collor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 44. [7] FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 227. [8] Ibidem, p. 223. [9] SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Op cIt .p. 174. [10] Ibidem, p. 175-176. [11] Ibidem, p. 176.Murilo Riccioppo Magacho Filho é mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, graduado em Direito na mesma instituição, advogado em São Paulo e integrante dos Grupos de Estudos “Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania”, e “Estado e Direito no pensamento social brasileiro”, ambos vinculados ao Mackenzie – CNPq.