Podemos dizer que a longa e persistente “demolição” da CLT começou em 1964 com o fim da estabilidade no emprego e a criação do FGTS.
Giovanni Alves
Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 27/03/2017
A partir do golpe civil-militar de abril de 1964, o Brasil aprofundou sua integração subalterna à ordem capitalista mundial. O preço da integração dependente à lógica do movimento de acumulação do capital mundial foi a desintegração das condições materiais para a realização das promessas civilizatórias do salariato capaz de combater a profunda desigualdade social que historicamente caracterizou o capitalismo brasileiro. Pelo contrário, o novo regime autocrático-burguês reforçou as características oligárquico-conservadoras do capitalismo brasileiro, ao mesmo tempo que propiciou uma “modernização” identificada como sendo a integração subalterna ao núcleo orgânico do capitalismo mundial liderado pelos Estados Unidos da América e a conservação da estrutura de desigualdade social e concentração de renda. O golpe civil-militar de 1964 foi a travessia do Rubicão da história brasileira, promovendo uma inflexão histórica que demarcaria a civilização (e a barbárie) brasileira das próximas décadas.
Podemos dizer que a longa e persistente “demolição” da CLT começou em 1964 com o fim da estabilidade no emprego e a criação do FGTS. Foi o primeiro passo na direção da flexibilização trabalhista no Brasil. Um passo tímido, mas relevante na época. Apesar disso, a CLT, obra do projeto varguista, se manteve firme e forte por vinte anos (1964-1984). Mais tarde, pouco mais de vinte anos depois do golpe de 1964, a Constituição de 1988, apesar de manter intacto o Estado oligárquico-político brasileiro, sob a pressão do sindicalismo e movimentos populares atuantes na década de redemocratização política, teve significativos avanços na área social, criando, por exemplo, as bases institucionais para o sistema unificado de saúde, seguridade social e garantindo direitos trabalhistas e previdenciários do povo brasileiro.
Entretanto, a derrota de Luís Inácio Lula da Silva, o candidato da Frente Brasil Popular em 1989, representou outro golpe nas possibilidades históricas de mudanças sociais efetivas no Brasil. Ao contrário da década de 1980, a década de redemocratização política e explosão do sindicalismo e do movimento popular, a década de 1990 foi uma década de reação neoliberal e desmonte do sindicalismo de classe. A derrota da Frente Brasil Popular em 1989 nos projetou na temporalidade histórica neoliberal que, tal como o golpe civil-militar de 1964, promoveu mais uma operação de integração subalterna à nova ordem capitalista global caracterizada pela mundialização financeira. A profunda crise do capitalismo brasileiro que vinha desde a crise do “Milagre” (1973-1975), impulsionou as reformas neoliberais que paralisaram a efetividade das promessas civilizatórias da Constituição de 1988. Na década de reação conservadora, a reforma do capitalismo brasileiro assumiu um caráter reacionário no sentido de paralisar os anseios de mudanças sociais capazes de realizar as promessas civilizatórias da Constituição de 1988. No cenário de profunda crise da economia brasileira e reação neoliberal, o TST promulgou em 1993, a Súmula 331 que afirmava que a terceirização só é lícita em se tratando de atividade meio, desde que não exista subordinação do trabalhador em relação ao tomador de serviços, sendo vedada a prática nas chamadas atividades-fim.
Portanto, a “paralisia” da Constituição de 1988, debilitada em sua efetividade material por conta de questões orçamentarias, deu lugar ao lento desmonte da CLT, uma reforma trabalhista permanente que, de modo gradual e persistente, visa destruir o arcabouço de legislação trabalhista que caracterizou as promessas civilizatórias do projeto de industrialização nacional-desenvolvimentista construído na era Vargas. Foi na década neoliberal que surgiram diversas modalidades de contratação flexíveis. Assim, a crise da economia brasileira contribuiu para aumentar a pressão para flexibilizar a legislação trabalhista na medida que a lógica empresarial no Brasil sempre visou a redução de custos por meio da precarização laboral. Sob o governo FHC surgiram novas modalidades flexíveis de contratação salarial Na verdade, incapaz de revogar de vez a CLT operou o processo reacionário de reforma trabalhista permanente que ocorre à prazo, tornando-se uma necessidade orgânica do capitalismo neoliberal, caracterizado pela acumulação flexível e acumulação por espoliação.
Tal como no século XIX o regime da escravidão foi abolido passo-a-passo, começando com a Lei Eusébio de Queiróz (1850) que proibia o tráfico negreiro, e depois com a Lei do Ventre-Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), para finalmente, ocorrer tardiamente, a Lei Aurea (1888), a CLT, do mesmo modo, está sendo abolida de modo gradual e paulatino por meio de legislações infraconstitucionais que negam cláusulas pétreas da Constituição Federal ao constituírem um regime de novo (e precário) mundo do trabalho.
Ao desmontar a CLT, a burguesia brasileira atenta contra a Constituição de 1988 tendo em vista que na nossa Carta Constitucional o valor social do trabalho é fundamento da República Brasileira (art. 1º, IV). A par disso, a valorização do trabalho humano também é um dos fundamentos da Ordem Econômica (art. 170) e o trabalho é um direito social fundamental previsto no art. 6º do texto constitucional, assim como os direitos trabalhistas, estes elencados no art. 7º. Os direitos trabalhistas, com suas garantias, assumem especial relevância, por ocuparem posição de destaque nas relações de produção, que movem as economias nacionais e internacionais, além de se constituírem em importantes fatores de inclusão do homem na sociedade. Deste modo, o trabalho é dotado de valor social e econômico, o que levou o constituinte a tratá-lo como fundamento do Estado democrático de direito, assim como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, IV e III, da Constituição, respectivamente). Enfim, não existe Estado democrático sem trabalho digno, sem respeito à pessoa humana e ao trabalhador.
A burguesia brasileira incapaz historicamente (e ontogeneticamente) de portar um projeto de desenvolvimento da Nação baseada no crescimento com inclusão social (o que implicaria respeitar os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários do povo brasileiro, rendeu-se na década de 1990 à lógica das finanças, buscando aumentar a taxa de exploração por meio da precarização salarial e auferir lucros fictícios por meio de rendimentos especulativos no mercado de capitais. Enfim, caiu a máscara da face da burguesia brasileira, outrora a dita “burguesia nacional” (com aspas).
Na ofensiva neoliberal da década de 1990, aprofundou-se a desindustrialização do País, provocando a decadência ideológica e política da burguesia industrial brasileira. Corroeu-se de vez a base material da hegemonia industrialista, processo de inversão civilizatória que ocorria desde a crise do “Milagre”. Associada à burguesia imperialista na organização do golpe civil-militar de 1964 e depois, sacrificada em sua base material pela crise e falência do projeto nacional-desenvolvimetista autocrático-burguês, a burguesia industrial brasileira, como fração de classe, rendeu-se na década de 1990 à burguesia financeira fortalecida pela hiperinflação e financeirização precoce do capitalismo brasileiro.
Enfim, o novo salto de integração subalterna à mundialização do capital ocorrido em 1990 – o primeiro ocorreu em 1964, com o golpe civil-militar – significou o fim melancólico da burguesia industrial brasileira – pelo menos a sua fração comprometida com um projeto de industrialização nacional, fortalecimento do mercado interno de massa e compromisso com direitos trabalhistas. Na verdade, a crise do modelo de substituição de importações e a ofensiva neoliberal fizeram com que a burguesia industrial, como fração de classe, se aliasse de modo subalterno à fração da burguesia rentista-parasitária e seu apêndice social na alta classe média. Não interessava ao bloco neoliberal no poder o projeto de industrialização nacional e muito menos a expansão do mercado interno de massa, com todas as suas implicações políticas e sociais (fortalecimento da negociação coletiva e garantia de direitos trabalhistas, concertação social que garantisse aumento de salários indexados à produtividade capaz de produzir uma demanda efetiva que propiciasse mercado interno de massas).
O setor reformista da burguesia industrial que outrora se abrigavam no MDB e depois PSDB, migrou para o PT na metade da década de 1990, compondo-se com a setores sociais-liberais hegemônicos do partido, que mais tarde – em 2002 – chegaria a governo. Entretanto, outros setores da burguesa industrial brasileira – a sua maioria – tornou-se apêndice da burguesia financeira hegemônica, aliada com a alta classe média, renunciando a qualquer projeto político de construção da sociedade salarial. A burguesia brasileira tornou-se uma lumpen-burguesia no cenário do capitalismo global.
A lumpen-burguesia brasileira – a maior parte dela de vertebração rentista associada ao bloco no poder neoliberal – parte orgânica da crise persistente do capitalismo brasileiro aprofundada pelo modelo neoliberal, manifesta obsessão congênita pela redução de custos do trabalho, mesmo que isso implique em precarização salarial da classe trabalhadora, com a usurpação de seus direitos trabalhistas. Ao mesmo tempo, a lumpen-burguesia é sedenta pela espoliação do fundo público que ocorre por meio de abusivos rendimentos dos títulos da dívida pública, isenções tributárias e sonegação de impostos, espoliação capaz de propiciar para ela, lucros extraordinários.
Pelo menos desde a década de 1990, a palavra de ordem é “desmonte da CLT” e “desefetivação da parte social da Constituição de 1988”. Enfim, inserção subalterna e dependente do Brasil na ordem do capitalismo senil, o que implica em destruir a conquista da luta dos sindicatos e movimentos sociais da década da redemocratização. Desde a era neoliberal, o povo brasileiro está na defensiva contra a ofensiva visceral do capital comprometido com o projeto neoliberal. Trata-se de uma ofensiva neoliberal que ocorre pelo menos nos últimos 25 anos, operando de modo lento, gradual e persistente o desmonte da Nação.
Por impossibilidade política, devido aos profundos interesses sociais arraigados na construção do Estado democrático de direito, a destruição da CLT e o corte da parte social da Constituição de 1988 não poderia ocorrer de modo abrupto. Nossa oligarquia política historicamente age de modo hábil e sinistro. A estratégia burguesa é desefetivar passo-a-passo o projeto de Nação que resiste nos seus estertores. Primeiro, o sistema político oligárquico, financiado e refém da lumpen-burguesia, hoje mais do que nunca, torna ineficaz a palavra da lei constitucional na medida em que contingencia parte do fundo público que garante a efetividade dos direitos sociais. Na República oligárquica do Brasil, interesses privados impregnam a Res pública. Deste modo, para que serve uma Lei que não possui eficácia material? Enfim, a lei não pode se sobrepor às relações de poder de classe. desmaterializava-se a lei. Depois, ao lado da CLT, construiu-se um arcabouço de contratação flexível que permitia contornar direitos trabalhistas. Implode-se por dentro, a CLT. Ela torna-se “letra morta”.
Entretanto, a operação da ofensiva neoliberal, iniciada em 1990, encontrou um obstáculo relativo a partir de 2003, com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva (PT) para Presidente da República. Aliado a um empresário nacional, José de Alencar, Lula tentou dar vida – sem sucesso – aos ideais da decadente burguesia industrial brasileira, particularmente a sua fração desenvolvimentista aliada à classe operária organizada e aos pobres. O lulismo apelou para o ideal do crescimento com justiça social. Entretanto, como classe, a burguesia brasileira – ou as “elites”, como diz Lula – nunca se preocupou com inclusão social – que o diga o desenvolvimento capitalista das últimas décadas que construiu uma das sociedades modernas mais desiguais do mundo civilizado. Mas o ideal lulista manteve-se no ar antes de desmanchar-se.
O lulismo tornou-se refém – a seu bel-prazer – do bloco neoliberal de poder. A preocupação com a governabilidade de um projeto relativamente alternativo àquele modelo neoliberal da década de 1990, levou a constituição de uma frente política neodesenvolvimentista que conseguiu fraturar o bloco no poder com o deslocamento da fração da “burguesia interna” (um clone da burguesia industrial ligada aos setores agro-minério-exportador e empresariado da construção civil que vive à sombra do Estado) e constituir como classe-apoio, a classe operária e camadas populares. Na verdade, o ideal industrialista não conseguiu se efetivar nas condições de hegemonia neoliberal no seio do Estado brasileiro. ÉD claro que o neodesenvolvimentismo de Lula não apena paralisou o desmonte da CLT e da Constituição de 1988. Pelo contrário, conseguiu avançar na efetividade de parte social da Constituição de 1988 ao implementar o SUS e SUAS por meio do crescimento do gasto público e programas de transferência de renda. É claro dentro do limites miseráveis de um governo constrangido pelo Estado neoliberal.
Enfim, incapaz de confrontar o bloco neoliberal no poder, construindo um Estado brasileiro capaz de garantir a eficácia dos ideias constitucionais de 1988, Lula apenas paralisou um processo histórico, sem reverte-lo no sentido de abolir a nova ordem da precariedade salarial. Nos governos neodesenvolvimentistas, o choque de capitalismo deu-se sob um mundo de trabalho precário por conta da nova ordem de regulação flexível instaurada na década neoliberal. O lulismo apenas adaptou-se à nova dinâmica da acumulação do capital, buscando paralisar processos de precarização laboral que corroíam a base do sindicalismo organizado. Ao não se contrapor e reverter a ofensiva neoliberal sobre o mundo do trabalho, os governos neodesenvolvimentistas consentiram na sua legitimidade social e política. Deixou-se que a inércia voraz do Estado neoliberal vigente subvertesse o mundo do trabalho. Na era neodenvolvimentista, o espectro da terceirização avançou sobre o mundo do trabalho. Reiteramos que, de certo modo, Lula e Dilma apenas paralisaram (ou congelaram) o lento e paulatino processo de desmonte da CLT iniciado em 1964 e o desmonte da Constituição de 1988 iniciado em 1990 com os governos neoliberais. Paralisar e congelar processos, não significa desativa-los e reverte-los. Na verdade, o movimento de precarização laboral paralisado na era neodesenvolvimentista, retornaria com vigor num momento de reação neoliberal – como ocorreu com o golpe jurídico-parlamentar de 2016 e o governo Temer.
Na medida em que optou por administrar a ordem burguesa, Lula aceitou seus pressupostos estruturantes – preservar o que a ofensiva neoliberal conquistou nas últimas décadas. Este foi o teor da “Carta aos Brasileiros” em 2002 e a própria condição da governabilidade de um governo constrangido por um Estado neoliberal. Como dissemos acima, o que se paralisa e se congela pode um dia, renascer, e descongelar-se no calor do golpe. Foi o que aconteceu em 2016. O novo golpe – não mais apenas civil-militar, mas jurídico-político (sempre com amplo apoio midiático), destituiu o governo neodesenvolvimentista para dar prosseguimento àquilo que estivera “paralisado” ou congelado – no seu vigor imperante – desde 2003.
No cenário de crise global e de longa depressão da economia mundial a partir da Grande Recessão de 2008, o bloco neoliberal no poder recompôs-se em sua frações de classe, com apoio da alta (e baixa) classe média, para derrubar o governo Dilma e reestruturar o capitalismo brasileiro, de acordo com as novas perspectivas de evolução do capitalismo mundial. O Brasil sob hegemonia neoliberal reativou sua integração subalterna no capitalismo global, descontruindo o projeto de crescimento com inclusão social levado a cabo pelos governos neodenvolvimentistas. Enfim, de volta para o passado, o governo Temer representa hoje a missão histórica que outrora coube aos militares no golpe de 1964 e aos governos neoliberais da década de 1990: desmontar efetivamente a CLT e a Constituição de 1988. Diante da longa depressão do século XXI, a burguesia brasileira sob hegemonia rentista-parasitária e com apoio do setor agro-industrial-exportador – um clone dos latifundiários burgueses do século passado e da velha burguesia industrial decadente (lumpen-burguesia) – quer finalizar a tarefa histórica iniciado à pouco mais de cinquenta anos.
A primeira longa depressão da economia capitalista mundial em fins do século XIX provocou no Brasil a abolição da escravatura e a queda do Império, instaurando a República oligárquico-burguesa. A crise de 1929 e a segunda longa depressão ocorrida na década de 1930, abalou a ordem oligárquica da Primeira República e levou a instauração do governo Vargas, Estado Novo e o projeto de industrialização nacional que alimentou o sonho da civilização burguesa no Brasil, civilização urbano-industrial moderna e inclusiva com respeito aos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários. O símbolo do sonho de modernização civilizatória – em contraste com a modernização catastrófica de hoje – era a carteira de trabalho e o que ela representava: a cidadania salarial representada na CLT, peça civilizatória limitada – é claro – mas efetiva em termos positivos numa ordem historicamente desigual e de extração colonial-escravista. Foi Vargas que inaugurou a era dos direitos no Brasil, palavra maldita para a oligarquia burguesa de extração escravista. A construção do projeto de Nação encontrou na década de 1950 reações viscerais das oligarquias burguesas dependente. A morte de Vargas e a instabilidade política que culminou com o golpe de 1964 significou a reação político-oligárquico aliada ao imperialismo a um projeto de civilização brasileira.
Desde pelo menos a década de 1950, a burguesia brasileira como classe social não tinha compromisso com a civilização, mas sim com a barbárie social. Apoiou iniciativas golpistas contra o trabalhismo de Vargas. Talvez alguns poucos empresários brasileiros – mas não a sua classe social – tiveram a lucidez de imaginar um capitalismo nacional menos desigual e inclusivo socialmente. Uma parte da esquerda imaginou existir uma “burguesia nacional” comprometida com a realização dos ideais da Nação e da democracia social. O golpe civil-militar de 1964 deu adeus às ilusões da burguesia brasileira como classe comprometida com o desenvolvimento nacional ou crescimento com justiça social – embora as ilusões persistam até hoje no seio da esquerda brasileira sedenta de governabilidade. No cenário da expansão capitalista da década de 1960, a burguesia brasileira, aliada aos latifundiários capitalistas e imperialistas não ousaram enterrar de vez a CLT. Como salientamos acima, alterou-se só aquilo que impedia o aprofundamento da exploração da força de trabalho, abolindo-se a estabilidade no emprego. Manteve-se intocada a CLT – porque funcional à ordem hegemônica do capitalismo ainda expansivo da década de 1960.
Mas a crise do capitalismo brasileiro a partir do fim do “Milagre” em meados da década de 1970, provocou uma disputa no bloco de poder dominante que paralisou o cenário político de crise da Ditadura. Frações e estamentos da burguesia se digladiavam sobre o novo modelo de desenvolvimento para o país que vivia uma transição transada e negociada para a democracia política sob o calor do movimento sindical e popular. Instaurou-se em 1989, com a eleição para Presidente da República, a Quarta República que cairia 27 anos depois – em 2016 com o golpe jurídico-político e a assunção do governo neoliberal de Temer.
Em síntese: o Brasil teve a Primeira República, ou República Velha, de 1889 a 1930; a Segunda (e breve) República, de 1930-1937; a Terceira República, de 1945-1964 (que sucede ao Estado Novo de Vargas); a Quarta República, de 1989 a 2016 (a dita Nova República). É a queda da Quarta República brasileira que leva a nova ofensiva neoliberal voltada para abolir os fundamentos da Constituição de 1988 (que inaugurou a Quarta República) e o desmonte efetivo da CLT com a Terceirização e a Reforma Trabalhista.
A excepcionalidade do golpe de 2016 só é comparável à Revolução de 1930 por ocorrer num cenário de longa depressão da economia capitalista mundial que afetou sobremaneira o Brasil a partir de 2014. Com sinais invertidos com relação à Revolução de 1930, que dotou o País de um projeto de industrialização e construção da Nação, o Golpe de 2014 é a vingança das oligarquias derrotadas em 1930.
O desmonte da Nação – no seu aspecto social – representa a essência do governo Temer, verdadeira antípoda dos governos Vargas. O desmonte da Nação implica em abolir direitos conquistados nas últimas décadas vinculados ao projeto de civilização brasileira. Desmontar a CLT e abolir a parte social da Constituição de 1988 faz parte do conjunto de Reformas neoliberais do governo Temer visando satisfazer os interesses do bloco neoliberal no poder (burguesia rentista-parasitária hegemônica com aliança com a burguesia agroexportadora e a burguesia interna que se beneficia das benesses do Estado capturado pelos interesses rentistas).
O motor do crescimento da economia capitalista contido nas Reformas neoliberais de Temer é a espoliação de direitos como condição para o aumento da taxa de mais-valia visando restaurar a lucratividade no país. A burguesia financeira e a burguesia agro-industrial-minério-exportadora, numa aliança espúria entre campo e cidade, conduzem o nosso Projeto do Brasil do século XXI. A burguesia urbano-industrial, fragilizada e vendida aos interesses exógenos, verdadeira expressão da lumpen-burguesia, e a classe operária e trabalhadora, incluindo camadas médias assalariadas fragmentadas nas metrópoles, baseadas predominantemente no comercio e serviços, não pode e nem consegue, respectivamente, constituir um contraprojeto hegemônico. Pelo contrário, a burguesia industrial de vertebração rentista é apêndice ao bloco neoliberal de poder; e a classe operária e trabalhadora, com presença das camadas medias assalariadas da baixa classe média, incapaz de aliar-se ao subproletariado (o que impede a construção do projeto democrático-popular) não consegue constituir-se hegemonicamente, na era da acumulação flexível e da sociedade de serviços, como classe social.
Portanto, as reformas neoliberais do governo ilegítimo de Michel Temer desenham um Brasil mais desigual e fragmentário em sua representação social e política. O aprofundamento da fragmentação do mundo do trabalho levado a cabo pela terceirização e reforma trabalhista apontam para uma Quinta República – caso tenhamos eleições democráticas em 2018 – com “pés de barros”, devido os conflitos sociais que devem abalar a institucionalidade caduca do capital. Incapaz de constituir-se como sujeito histórico devido suas misérias corporativo-burocráticas ou sectário-politica, o proletariado brasileiro torna-se refém hegemonicamente da burguesia brasileira lumpenizada, rentista e alienada dos interesses civilizatórios.
Caso façamos um paralelo histórico com a crise social e política de 1930 vivida pelo Brasil, podemos dizer que a ausência da corporação militar (tenentes) que tiveram um protagonismo na Revolução de 1930 e que representavam naquela época, um projeto de Nação, embora conciliando pelo alto com a oligarquia latifundiária, deve tornar mais instável a consecução hegemônica do novo projeto de modernização catastrófica do capitalismo brasileiro no século XXI. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento dos sindicatos e partidos de esquerda torna mais imprevisível o desdobramento dos conflitos sociais. Estamos sob uma densa neblina – especulando podemos dizer que os protagonistas da nova ordem caduca da Quinta República brasileira devem ser a Mídia burguesa-oligárquica, o estamento da alto classe média do Judiciário, jacobino, de viés de direita, e o Congresso Nacional corrompido e alienado dos anseios populares. Em síntese: um Executivo impotente, constrangido pelo Judiciário e Legislativo corrompido pela vaidade oligárquica e pela corrupção de valores democráticos. As disputas no seio do aparelho do Estado burguês caduco devem continuar flagrantemente. Ao mesmo tempo, a crise social aprofundada pelo capitalismo catastrófico, obrigará um Executivo de mãos atadas a dedicar-se à tarefa de administrar – as vezes com mãos de ferro – os conflitos distributivos na sociedade civil e no interior do próprio bloco no poder. Com certeza, a Quinta República – nossa República de Weimar – caso tenhamos eleições em 2018, deve ser tão instável quanto a Segunda República nascida da Revolução de 1930 e que nos conduziu a Estado Novo de Vargas. De fato, o risco de cesarismo de direita é bastante previsível diante da fragilidade orgânica das forças populares e das fraturas abertas na institucionalidade do Estado democrático de direitos depois do golpe de 2016.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.