
Quando lucros e dividendos não são tributados, ônus recai desproporcionalmente sobre quem vive de salário.
Nícolas Bayma Martuscelli Scarpa
Fonte: JOTA
Data original da publicação: 22/10/2025
A estrutura tributária de um Estado é fundamental para sua organização e funcionamento, atuando não apenas como um mecanismo de arrecadação de recursos, mas também como uma ferramenta essencial para promoção da justiça social e redução das desigualdades econômicas. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece princípios tributários que norteiam como deve ser estruturado o Sistema Tributário Nacional. Esses princípios buscam assegurar que a carga tributária seja proporcional à capacidade econômica de cada contribuinte, reforçando o papel redistributivo do sistema tributário e garantindo que os mais ricos contribuam de maneira mais significativa para o bem-estar coletivo.
No entanto, a isenção de tributos sobre a distribuição de lucros e dividendos, introduzida pelo artigo 10 da Lei 9.249/1995, gera debates quanto à sua compatibilidade com os princípios constitucionais e seus impactos na equidade fiscal. Críticos apontam que a medida pode ter contribuído para o aumento da desigualdade, ao favorecer os detentores de grandes fortunas e onerar de forma desproporcional o consumo e a renda do trabalho.
Para entendermos a lógica tributária brasileira, é preciso recorrer à nossa Constituição Federal. Primeiro, o legislador estabeleceu princípios tributários voltados para cumprir, ou ajudar a cumprir, um dos objetivos fundamentais da Carta Maior, posto no seu artigo 3º, que é a erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais. Os princípios tributários basilares são: 1) princípio da isonomia; 2) princípio da capacidade contributiva; e 3) princípio da progressividade.
O princípio da isonomia estabelece que é vedado aos entes federativos “instituir tratamento desigual para contribuintes que se encontram em situação equivalente” – inciso II do artigo 150. Isso significa que o Estado deve tratar os iguais de maneira igual, na medida de suas desigualdades.
Já o princípio da capacidade contributiva dispõe que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte – § 1º do artigo 145. O objetivo é que o Estado deva repartir a carga tributária de acordo com as possibilidades econômicas de cada indivíduo.
O princípio da progressividade contempla o anterior, estabelecendo que os contribuintes com maior poder aquisitivo devem arcar com uma carga tributária mais elevada, enquanto os de menor poder aquisitivo devem ter o ônus reduzido, garantindo justiça fiscal e equidade – § 2º do artigo 153.
Todos os três princípios objetivam assegurar um sistema tributário sustentável, justo e equitativo, onde a base da carga tributária se concentre na tributação de renda e patrimônio, dando um menor peso na tributação de consumo. É assim que os países desenvolvidos estruturam os seus sistemas tributários. Ironicamente, o oposto do praticado em nosso sistema tributário.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem reiterado a importância dos princípios como norteadores do sistema tributário. A jurisprudência da Suprema Corte tem desempenhado um papel fundamental na consolidação dos princípios tributários constitucionais, garantindo que a tributação respeite a legalidade, a capacidade contributiva – de preferência de forma pessoal –, a progressividade e a justiça fiscal. Essas decisões consolidam a interpretação constitucional e servem como referência para futuras discussões sobre a adequação do sistema tributário brasileiro aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Analisando os princípios tributários, fincados na Constituição brasileira, e o entendimento do Supremo Tribunal Federal em diversos casos tributários, conclui-se que a isenção da tributação da distribuição de lucros e dividendos é inconstitucional. Tal medida contraria frontalmente a Constituição Federal, que tem como um de seus princípios fundamentais a promoção da justiça social por meio da justiça tributária. O objetivo do constituinte originário é a que os brasileiros vivam em uma sociedade com oportunidades reais, justas e equitativas na qual cada cidadão tenha condições mínimas de prosperar e seja devidamente assistido, conforme os direitos garantidos pela Carta Magna. Por isso, a necessidade de produzirmos um sistema tributário progressivo, pujante e saudável do ponto de vista arrecadatório.
O princípio da universalidade estabelece que todos os rendimentos devem ser considerados para fins de tributação, garantindo que a carga tributária seja distribuída de forma justa e abrangente. No entanto, a isenção de imposto sobre lucros e dividendos beneficia justamente a parcela mais rica da sociedade, criando uma desigualdade no sistema fiscal. Ao permitir que esses rendimentos fiquem isentos, o Estado contraria esse princípio, deixando de tributar aqueles que possuem maior capacidade econômica enquanto a maior parte da arrecadação continua recaindo sobre o consumo e a renda do trabalho.
Além disso, essa isenção fere diretamente os princípios da capacidade contributiva e da progressividade, que determinam que os tributos devem ser proporcionais à renda e ao patrimônio de cada indivíduo, em caráter pessoal. Quando os lucros e dividendos deixam de ser tributados, o ônus fiscal recai de maneira desproporcional sobre aqueles que vivem do salário, que já são tributados na fonte. Essa distorção amplia a desigualdade social e enfraquece o papel redistributivo do sistema tributário, fazendo com que quem tem menos pague proporcionalmente mais, enquanto aqueles com rendimentos elevados permanecem protegidos de uma contribuição justa para o financiamento do Estado e das políticas públicas essenciais.
A busca por um sistema tributário mais equilibrado não se trata apenas de números, mas de um compromisso real com a justiça social. É essencial ampliar o debate no Congresso Nacional, especialmente no contexto da Reforma Tributária, para que possamos construir um modelo fiscal que não apenas arrecade recursos para o Estado, mas que também combata a desigualdade e promova oportunidades para todos.
Na pauta, encontra-se o Projeto de Lei nº 1087/2025 – enviado pelo governo federal – que propõe mudanças significativas no Imposto de Renda e na tributação de lucros e dividendos no Brasil, revertendo parcialmente a isenção instituída pelo artigo 10 da Lei nº 9.249/1995. A proposta, além de outras mudanças, estabelece a incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) à alíquota de 10% sobre os lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas que ultrapassem o valor de R$ 50.000,00 mensais.
O projeto também impõe a mesma alíquota de 10% sobre os lucros remetidos ao exterior. Para evitar excessos na carga tributária, o texto prevê um mecanismo de compensação para contribuintes cuja soma da tributação na pessoa jurídica e na pessoa física ultrapasse as alíquotas nominais do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Na porta das eleições, o governo aposta todas as fichas nesse Projeto. A aposta é legítima, pois os ganhos eleitorais podem decidir o rumo de uma eleição tão difícil e polarizada. Por outro lado, A pressão dos super ricos cresce a cada dia para que o projeto seja alterado.
Recentemente, o texto foi aprovado na Câmara dos Deputados, sob relatoria do deputado Arthur Lira (PP/AL), por votação unânime (493 x 0). Os rentistas tentaram, sem sucesso, encontrar outras saídas de compensação para que eles não fossem afetados. Esse, é um dos motivos da demora na tramitação da matéria, que até então, aguardava por mais de seis meses a sua deliberação no Plenário.
No Senado, a relatoria caiu no colo do algoz político de Arthur Lira, o senador Renan Calheiros (MDB/AL). Declarou que irá suprimir e emendar “o que for necessário” no texto, e que seu objetivo é articular para que a matéria não precise retornar à Câmara dos Deputados.
Nessa luta tributária, ou de classes, nossa principal referência deve ser a Constituição Federal. É nela que estão estabelecidos os princípios tributários que orientam a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Segui-la é fundamental para combater a desigualdade social que há tanto tempo aflige o nosso país. A hora é agora.
Nícolas Bayma Martuscelli Scarpa é assessor parlamentar no Senado Federal há 8 anos. Pós-graduado em Poder Legislativo e Direito Parlamentar pelo Instituto Legislativo Brasileiro – ILB

