Assim como as origens das leis sociais dependeram de inúmeros fatores e de atores com diferentes interesses, a resistência ao movimento de flexibilização e desregulamentação aos direitos trabalhistas tem além da mobilização dos trabalhadores, as contradições do neoliberalismo no contexto da COVID 19, e ainda uma lógica inescapável: que é necessário também um mínimo de direitos sociais civilizatório para garantir a exploração e reprodução do capital.
Marcelo Tolomei Teixeira
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 11/02/2021
Karl Marx, ao explicar as origens das primeiras leis trabalhistas, na Inglaterra fabril do século XIX, não titubeia ao considerar que embora o movimento operário estivesse crescendo, eles não conseguiriam impor as leis trabalhistas, sem a necessidade das forças armadas terem que recrutar trabalhadores com saúde e em boa forma física (as jornadas praticadas eram criminosas), se não tivessem o apoio da aristocracia fundiária e se os próprios industriais não descobrissem que uma classe operária mais disposta e menos doente poderia ser mais produtiva.
Eram tempos sombrios para os trabalhadores industriais, a força de trabalho chegou a ser contratada diariamente, não havia controle da jornada de trabalho, o trabalho infantil era a regra e as mulheres tinham jornadas desumanas. “O capitalismo comemorava suas orgias” (Marx). Comemorava? Podemos dizer que volta a comemorar, com toda a onda de enfraquecimento dos direitos sociais, já que a força de trabalho cada vez mais, como outrora, vai sendo contratado de acordo com a necessidade da produção, com uma jornada cada vez mais variável e flexível, chegando certos setores de se darem ao luxo de uma contratação diária ou por curto tempo (contrato intermitente), e tem gente neurótica de tanto trabalhar (tendo que atender exigências de meta de produtividade e qualidade, além de certas subjetividades como ter bom humor, ser líder, etc) e tantas outras pessoas desempregas ou com empregos precaríssimos, todo esse quadro vai desequilibrando a perspectiva de renda, seguridade social e de um trabalho mais humano.
Os direitos trabalhistas, após longas trajetórias, acusou sua época de ouro, do pós–II Guerra Mundial até meados dos anos 80, período em que todas as regiões do mundo cresceram mais do que qualquer outra fase desde 1810, principalmente para os países de primeiro mundo, que tiveram ganhos crescentes formidáveis. Atualmente, a ascensão da ideologia neoliberal levou ao capital a desistir de financiar o Estado Social, e cada vez mais se introduziram modificações nas políticas de proteção ao trabalho, como redução do seguro-desemprego e dificuldade ao seu acesso, possibilidade ampla de demissão dos trabalhadores, desvalorização do poder de compra dos da população, flexibilidade salarial e da jornada de trabalho, etc. As politicas sociais de garantias trabalhistas que foram introduzidas gradualmente, podem ser derrubadas quase da noite para o dia, como vem ocorrendo com inúmeros países.
Por sua vez, a classe trabalhadora por condições objetivas (fragmentação, desemprego estrutural, etc) e por condições subjetivas (consumismo, individualismo, abandono de ambições revolucionárias e até impopularidade crescente dos grandes partidos dos trabalhadores, etc), também não parece guardar força para resistir as investidas do capital de encontro aos seus direitos. Aceitando, muitas vezes, de forma acrítica, uma justiça de mercado, em que a distribuição da produção se faz de acordo com a avaliação individual, que se opõe a bandeira de que todos tenham direito a um patamar mínimo de qualidade de vida, independente da capacidade de desempenho ou concorrência. E o paradigma do Direito, em tempos neoliberais, segundo Antonio Baylos, está na magia do contrato, a aposta na criação de obrigações de forma não imposta, resultado do concurso de vontades livres, e aí temos a utopia do mercado auto-regulado.
Quem socorreria, então, os direitos trabalhistas? Talvez o próprio capital? Já que ao minimizar o custo dos salários e precarizar a condição formal dos trabalhadores, registra sérios problemas para maximizar a produtividade, com a necessária qualidade e confiabilidade que necessita dos trabalhadores. Ou mesmo a necessidade que o sistema de estabilizar o contrato de trabalho por conta dos mercados internos, já que a classe trabalhadora também é consumidora e necessita de obter crédito nos bancos e pagar compromissos assumidos.
Seria o próprio capital? Já que horrorizado com a “guetização” do mundo e, não suportando viver entre cercas elétricas, faria com que 1%, ou menos da população mundial dos privilegiados, fossem capaz de entender a responsabilidade de melhorar o bem-estar de todos, independente de qualquer vantagem pessoal? Ou seja, seria capaz de desistir de lucros para manter o pleno emprego ou garantir uma renda mínima para desempregados, garantindo saúde, educação e ainda um meio ambiente sadio?
A rigor, tanto o crescimento como o pleno emprego dependem da disponibilidade para investir dos detentores do capital, com suas expectativas de lucros, mas como afirma muito bem Wolgang Street, depende também de uma avaliação geral por parte dos investidores no que diz respeito à segurança da economia capitalista. Ora, podemos lembrar, que o medo do “perigo vermelho”, foi uma das razões da construção do Estado Social, em que o capital assumiu obrigações sociais para a manutenção de uma paz.
E por falar em medo temos a realidade da Covid-19 – sempre lembrando que a história da humanidade tem lá seus acidentes. Lukács, aponta, que as catástrofes naturais, como exemplo da ocorridas na Era do Gelo, passando pelo terremoto de Lisboa, não deixa de fazer do homem um ser que responde, “os homens fazem a sua história, só que não sob circunstâncias que eles mesmos escolheram” (Marx). Portanto, responder a tamanha crise sanitária obriga, por exemplo, cada vez mais ao capital a ter que dar respostas muitas vezes que não estava no ideário da ideologia do neoliberalismo.
Da mesma forma, que a classe trabalhadora terá que se reinventar para se proteger de um mundo ainda mais arriscado, buscando, por exemplo, obter a difícil solidariedade entre os ocupados e os desocupados ou precarizados no mercado de trabalho, perturbando assim a ação “livre” de oferta e procura de mão e obra que só beneficia os interesses do capital. Mas, a rigor, não podemos jamais negar a potencialidade de luta dos trabalhadores, que a par de estar passando por um mal momento, tal não e definitivo, e poderá plenamente recuperar sua capacidade de agir sobre seus próprios destinos.
Portanto, o jogo está sendo jogado, e assim como as origens das leis sociais dependeram de inúmeros fatores e de atores com diferentes interesses (como Marx detectou em linhas atrás), a resistência ao movimento de flexibilização e desregulamentação aos direitos trabalhistas tem além da mobilização dos trabalhadores, as contradições do neoliberalismo no contexto da COVID 19, e ainda uma lógica inescapável: que é necessário também um mínimo de direitos sociais civilizatório para garantir a exploração e reprodução do capital. É claro que poderíamos pensar na saturação de tal círculo, pensando no fim da era capitalista, para quem acredita que o mesmo não seja eterno, seja pela via revolucionária ou pelas suas próprias contradições internas. A questão é boa. Poderá ser um dos próximos artigos do “Trabalho além da barbárie”.
Marcelo Tolomei Teixeira é juiz titular da 7a Vara do Trabalho de Vitória/ES e professor universitário. Doutor em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Filosofia do Direito pela UFSC e membro da AJD.