por Laura Glüer
Os aplicativos de transporte de passageiros cresceram de forma vertiginosa no Brasil na última década. Alternativa para a locomoção nas grandes, médias e pequenas cidades, passaram a concorrer com serviços como táxi, ônibus e trens. Além disso, tornaram-se oportunidade de trabalho para brasileiros em situação de desemprego ou que desejam um complemento de renda. Regular esse setor é demanda urgente e necessária para garantir que este trabalho seja protegido por direitos. E agora entra em discussão no Senado e na Câmara Federal com o Projeto de Lei Complementar (PLC) apresentado pelo governo federal no início de março.
O PLC foi construído no Grupo de Trabalho Tripartite, criado em maio de 2023 e coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com participação de representantes dos trabalhadores, das empresas e do Governo Federal e acompanhamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT), entre outros agentes. Resultado de um processo negocial que se estendeu ao longo de 2023, a proposta de regulamentação agradou aos envolvidos, mas causou mal-estar entre boa parte dos estudiosos e os chamados operadores do direito.
Se aprovada, a nova legislação impactará na vida de mais de 1,5 milhão de trabalhadores, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O texto prevê que os motoristas de aplicativo permaneçam como profissionais autônomos, mas as empresas de aplicativos passariam a recolher o INSS destes trabalhadores, que poderiam ter assim direito à aposentadoria, licença-maternidade, entre outros benefícios e isenções. Propõe o pagamento mínimo de R$ 32,10 por hora ao motorista, com R$ 24,07 destinados a cobrir custos e R$ 8,03 pelo serviço. Os profissionais podem permanecer conectados à mesma plataforma até 12 horas por dia e o pagamento mensal recebido pelos serviços não poderia ser inferior a um salário-mínimo, atualmente em R$ 1.412,00, para uma jornada mensal de 176 horas, além de R$ 4.236,32 destinados a cobrir os custos.
Em relação à Previdência Social, conforme o PLC, os trabalhadores motoristas de aplicativos passam a serem considerados contribuintes individuais do INSS, com uma alíquota de 7,5% sobre a remuneração do trabalho descontada pela empresa operadora do aplicativo e a mesma contribui com uma alíquota de 20% para a Seguridade Social. O projeto também dá legitimidade aos sindicatos da categoria “motorista de aplicativo de veículo de quatro rodas”, com atribuições como negociação coletiva e representação em demandas judiciais e extrajudiciais.
“Em um mercado de trabalho heterogêneo como o brasileiro, com diferentes realidades, chegar a essa proposta, após um ano de discussões, é uma conquista importante”, analisa Fausto Augusto Júnior, diretor técnico do DIEESE, cientista social e mestre e doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), integrante do Grupo de Trabalho Tripartide, em entrevista ao DMT em Debate.
“Um dos principais avanços deste projeto é reconhecer que esta não é uma relação estritamente comercial entre empresa e motorista, mas uma relação de trabalho, de um profissional autônomo que presta um serviço a uma empresa”, esclarece Fausto. Outro ponto positivo, segundo ele, é a valorização das entidades sindicais na negociação com as empresas de aplicativos. “Atualmente, já existem 27 sindicatos desta categoria de trabalhadores em funcionamento no país”, comenta.
Para Carina Trindade, motorista de aplicativo e presidente do Sindicato dos Motoristas em Transportes Privados por Aplicativos do Rio Grande do Sul (SIMTRAPLIRS), também ouvida pelo DMT em Debate, o projeto é positivo, pois dá ao conjunto de trabalhadores que dirigem com aplicativos o status de categoria profissional. “Vamos sair do anonimato, continuando com a nossa liberdade de autônomos, mas com direitos adquiridos, buscando, através da negociação em acordos coletivos, os pontos a avançar”, comenta.
Carina foi a única liderança feminina na mesa de trabalho do PLC e sofre resistência de parte dos colegas da categoria, por defender a nova regulação. “Estamos dando um primeiro passo; hoje o trabalhador até pode não entender, mas no futuro compreenderá que isso é para o bem dele, pois poderá ser amparado pela previdência, sem sobreviver de vaquinhas quando tiver alguma questão de saúde ou decidir se aposentar, como vemos hoje”, relata.
Projeto para motoristas de aplicativos gera controvérsias
Pesquisadores e profissionais que atuam no campo do direito do trabalho criticam o Projeto de Lei Complementar, por considerar que ele está à margem da legislação trabalhista vigente – a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Também argumentam que o projeto estaria estimulando uma espécie de “nova Reforma Trabalhista”.
Em entrevista para o programa TVGGN Justiça, o procurador e professor de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rodrigo Carelli, classificou o projeto como “trágico” e “desastroso”, por não proporcionar direitos fundamentais, como 13º salário, participação nos lucros e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Carelli criticou a fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao mencionar que o trabalhador “não quer mais a CLT”.
Na mesma linha, a juíza do trabalho e professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Valdete Souto Severo, e o desembargador aposentado e professor da Universidade de São Paulo (USP), Jorge Luiz Souto Maior, em artigo veiculado neste site, criticam o PLC.
Valdete e Souto Maior consideram o projeto “um festival de retrocessos”, garantindo às multinacionais que exploram trabalho de transporte por meio de plataformas digitais a possibilidade de seguirem atuando à revelia da legislação trabalhista e ferindo a regra da jornada máxima prevista na Constituição.
Em entrevista ao portal Sul 21, Souto Maior sustenta que há uma tendência da destruição plena dos direitos trabalhistas sobre esse falso argumento de que se está conferindo uma regulação nova para um tipo de trabalho diferente. Para ele, isso é assustador, pois legitima uma realidade que já era recorrente no País, de desrespeito à legislação do trabalho, podendo atingir em breve outras categorias.
Rebatendo essas críticas, Fausto Augusto Júnior, do DIEESE, lembra que a sociedade brasileira historicamente convive com a informalidade no mundo do trabalho e, neste contexto, “não se pode mais dar como única referência a CLT”. Ele reafirma que a categoria dos motoristas de aplicativos nunca quis ser celetista. “Eles querem continuar como autônomos, à semelhança de caminhoneiros e taxistas, e precisamos respeitar isso”, comenta.
Sobre a jornada de trabalho, Fausto explica que há outras categorias com carga horária diferenciada, firmadas em acordos coletivos, como o caso da escala 12×36 da enfermagem. “Os motoristas continuarão tendo autonomia para decidir sobre sua jornada – as 12 horas diárias são o teto, mas cada um poderá fazer a carga horária que quiser”, finaliza.
Fontes consultadas
Ministério do Trabalho e Emprego
UOL
Jornal GGN
Portal Sul 21
IBGE