O PL proposto pelo governo federal – com seu contexto específico – consegue ser ainda pior do que a contrarreforma de 2017. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil.
Valdete Souto Severo e Jorge Luiz Souto Maior
Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 08/03/2024
“Vamos celebrar a estupidez humana
Perfeição, Legião Urbana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação”
O PL proposto pelo governo federal – com seu contexto específico – consegue ser ainda pior do que a contrarreforma de 2017. É assim que precisamos compreender a proposta de regulação da atividade de motoristas contratados por empresas que operam seu negócio por intermédio de plataformas digitais. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil.
O evento festivo da assinatura do PL, então, foi um show de horrores, forjado a partir de alegorias artificialmente propostas para criar uma realidade paralela. Aliás, bem ao estilo do dito “trabalho virtual”. Uma explicitação de autêntico negacionismo, vindo daqueles que, justamente, se apresentaram como um contraponto ao processo de bestialização vivenciado de 2018 a 2022.
Desde o início do ano passado, com presença ativa do governo, vinham sendo feitas discussões entre representações dos motoristas e das empresas que exploram sua força de trabalho. A proposta das empresas, desde o início, era a regulação precarizante: chamar de autônomos seus empregados; permitir que estes trabalhassem em limite (inconstitucional, é bom frisar) de 12h diárias; e que se mantivesse um sistema de controle das atividades dos motoristas, com permissivos punitivos, inclusive. E qual o teor do texto do PL apresentado ontem, com pompa e circunstância pelo governo? Exatamente o que as empresas propuseram desde o início.
O texto não reflete, portanto, diálogo e estudos para enfrentamento de uma questão que seria promovida pela inserção da nova tecnologia no mundo do trabalho. Considerando os dados concretos, refletidos no histórico e no resultado final do PL, trata-se, isto sim, de mera capitulação!
Em sentido diametralmente oposto ao que vem sendo realizado, em termos de regulação deste tipo de trabalho, o PL, no entanto, foi apresentado como a melhor proposta possível…Mas isto, evidentemente, apenas para os tomadores do trabalho!
O governo trabalhista capitula, cai de joelhos, e defende, explicitamente, os ideais dos patrões, ou, mais precisamente, do capital estrangeiro, em seu propósito de auferir grandes taxas de lucro por meio da exploração de um trabalho sem proteção social e poder de reivindicação. A leitura do texto causa indignação e revolta.
Foi a tarde da consagração da maior derrota da classe trabalhadora brasileira, mesmo que o PL, caso sejamos tomados por uma hecatombe, não seja aprovado no Congresso Nacional. Neste aspecto, a fala do Presidente da República é plenamente verdadeira. O evento foi histórico. Ele e seu governo entrarão para a história como os agentes que apresentaram e defenderam, de forma convicta, uma lei com potencial para destruir completamente o aparato jurídico de proteção dos trabalhadores e das trabalhadoras, ao qual se denomina Direito do Trabalho. Parece exagero? Pois bem, vamos lá.
A base das decisões que vêm sendo proferidas nas reclamações constitucionais propostas por essas mesmas empresas é a de que não são elas que se relacionam com os motoristas e sim o aplicativo; ou uma modalidade de contratação por meio de plataforma digital. Assim, por este passe de mágica, elas não se integrariam à figura do empregador. E o art. 3º do PL acolhe exatamente essa fantasia, dizendo que o motorista, “para fins trabalhistas”, ostenta a condição jurídica de um “trabalhador autônomo por plataforma”.
E não só.
Ao tratar desse trabalho como autônomo, o governo acaba de algum modo fazendo coro ao discurso de que tais relações devem ser submetidas à justiça comum. Contribui, portanto, para o movimento de esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho.
O PL já inicia referindo tratar de relação de trabalho “intermediada” por “empresas operadoras de aplicativos de transporte”. Mas não há intermediação. Ora, a empresa: admite, pois aceita ou não o cadastro de quem se candidata ao trabalho; assalaria, estabelecendo, inclusive, o valor do trabalho; e dirige a atividade, pois fixa o modo como o trabalho será prestado. Além disso, assume os riscos do empreendimento, pois é a empresa que contratamos, quando precisamos do transporte de coisas ou de pessoas.
Há referência, também no art. 3º, à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo”. No entanto, essa condição já existe em outras relações de trabalho e não guarda relação alguma com autonomia ou subordinação. É a mesma condição de quem realiza teletrabalho, por exemplo. A suposta liberdade não altera os moldes da exploração. É apenas o reconhecimento de uma característica desse vínculo específico e que, na prática, nem se realiza. E o mais importante: não constitui reconhecimento de direito algum, pois essa possibilidade de trabalhar em horários variáveis é condicionada (com ou sem a aprovação dessa lei) às tarifas praticadas pela empresa, à quantidade de motoristas atuando na mesma região, às características do lugar em que o trabalho está sendo realizado. Então, sequer essa condição é efetivamente expressão da liberdade de quem está vendendo sua força de trabalho.
A ausência de exclusividade também não é direito reconhecido por essa legislação. Em lugar algum na legislação trabalhista existe tal exigência para a formação de um vínculo de emprego. Do mesmo modo, a possibilidade de representação sindical é direito de todas as pessoas que vivem do trabalho, sendo desnecessária lei que a refira.
O §2º do artigo 3º impressiona. Refere que o “período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias”. 12 horas! 12 horas, todos os dias! Isso, apesar da Convenção 01 da OIT, de 1919, fixar o máximo de 8 horas de trabalho por dia. Apesar de o Art. 7º da Constituição fixar como direito “dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” “XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias”. Um retrocesso inaceitável.
Ainda que estivéssemos diante de um contrato formulado a partir dos parâmetros do direito, não teríamos como sustentar a possibilidade de uma lei que contraria o limite máximo estabelecido por um dispositivo constitucional e que, nitidamente, fere direitos fundamentais. Não há como sustentar, juridicamente, a existência de um grupo de pessoas para as quais os direitos fundamentais e a Constituição não tenham validade.
O art. 5º é igualmente assustador. Estabelece a possibilidade de que as empresas operadoras de aplicativos adotem “normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões”. Punição, no melhor estilo do que a linguagem, à época do capitalismo industrial, chamava de “gancho”. Algo que sequer a CLT prevê: a possibilidade de punir quem depende do trabalho para sobreviver. Nada pode representar melhor o quanto as relações de trabalho no Brasil seguem atravessadas por uma racionalidade escravista, que não vê limite à lógica da exploração e da precarização do trabalho.
Criaram a figura do trabalhador autônomo com direito de ser punido por aquele que não é seu patrão e que diz que não é seu patrão porque o trabalhador é livre!!! Dá até para entender a comemoração: precisa ter muita criatividade e inventividade para se chegar a uma tal formulação; ou muito cinismo!
A questão é que agora a proposta de precarização vem assinada por um ex-líder sindical, operário, cuja carreira política sustentou-se em seu compromisso com a classe trabalhadora.
O projeto estabelece, ainda, o direito da tomadora do trabalho de utilizar “sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados”, ou seja, controle da jornada, e “sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários”, ou seja, metas para a extração de mais-valia. Ainda, podem oferecer “cursos ou treinamentos”, em óbvio direcionamento da atividade. Tudo, sem que se “configure relação de emprego nos termos do disposto na Consolidação das Leis do Trabalho”. Parece deboche.
Aliás, o art. 6º dispõe que a empresa poderá excluir unilateralmente o trabalhador da plataforma nas “hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa”. Daí a comparação com a contrarreforma de 2017. Estamos diante de uma proposta de lei empresarial.
Mas dirão aqueles que seguem defendendo cegamente a postura adotada pelo governo: há garantia de remuneração mínima pelas horas trabalhadas. Ora, também aí não houve avanço, pois o reconhecimento de que se trata de um típico vínculo de emprego seria suficiente para que um salário mínimo fosse garantido. A regra, na realidade, tem também uma finalidade precarizante, pois se refere ao ressarcimento das despesas que o trabalhador suporta, a serem devidas “nos termos do regulamento”, incluídas no valor-hora. Ou seja, concretamente não haverá ressarcimento de despesas.
E submetidas as partes ao processo negocial livre, determinado pela lei de mercado, ou seja, da oferta e da procura, a tendência é que os ganhos tendam a um rebaixamento constante, ainda que um valor nominal esteja garantido, pois poder de compra não tem correlação exata com este valor.
Enfim, o que se tem é o projeto de uma lei para um trabalho sem direitos. Uma lei que garante às multinacionais que exploram trabalho de transporte por meio de plataformas digitais, a possibilidade de seguirem atuando à revelia da legislação trabalhista e do pacto constitucional de solidariedade. Uma lei que fere a regra da jornada máxima prevista na Constituição. Uma lei que autoriza punição entre particulares que se relacionam a partir dos parâmetros jurídicos da igualdade e da liberdade. Um festival de retrocessos.
Se estivéssemos no governo anterior, certamente setores da esquerda e entidades do mundo do trabalho, incluindo o próprio Presidente e seu partido político, já teriam apelidado a proposta de “PL da morte dos trabalhadores e das trabalhadoras”.
Mas não foi o governo golpista, nem foi aquele que debochou das pessoas mortas por asfixia, durante a pandemia, que acabaram desferindo este ataque à classe trabalhadora. A ferida está sendo provocada por um ato de violência vindo do governo trabalhista e fará sangrar os trabalhadores e as trabalhadoras, ainda mais do que vêm sangrando na realidade brasileira (e não é de hoje); fará sofrer quem depende do trabalho para sobreviver.
Talvez por tudo isso esteja doendo tanto.
Valdete Souto Severo é professora da Faculdade de Direito da UFRGS.
Jorge Luiz Souto Maior é professor da Faculdade de Direito da USP.