Plataformas digitais não conseguem apagar o trabalho humano assalariado e explorado

A Constituição de 1988 como marco principal da exigência do trabalho formal, regulado e socialmente protegido.

Grijalbo Fernandes Coutinho

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 17/09/2021

Na atual etapa de desenvolvimento das forças produtivas, a reestruturação promovida pelo capital exige o incremento de novas tecnologias destinadas a legitimar o processo político de desregulação e precarização de todas as relações de trabalho, conferindo-se, assim, dimensão concreta ao ideário neoliberal de retomada da liberdade sem restrições aos agentes econômicos.

A revolução da microeletrônica ora em curso insere-se como efetiva necessidade do sistema econômico para aumentar a precarização do trabalho, jamais para melhorar a vida da classe trabalhadora. Aliás, esta “é condição histórico-estrutural do desenvolvimento do próprio capitalismo global”[1].

Em tempos de maquinofatura da 4ª Revolução Industrial, a robótica assume papel de relevo na acumulação capitalista, cujos novos equipamentos radicalizam a divisão do trabalho, o estranhamento, a obsolescência de algumas atividades laborais e a precarização do trabalho vivo.

 Exacerbam-se todos os tentáculos da destruição laboral, a ponto de  seres de igual espécie  tratarem  humanos como autômatos, sem direitos sociais e sem voz.

É que ocorre segundo modelo de  inserção das plataformas eletrônicas nas relações de trabalho, meio este utilizado para condensar de forma exponencial “trabalho morto” no processo produtivo, elevando o grau de precariedade de todas as formas de labor humano.

Na verdade, o velho modo de exploração capitalista incorporou roupagem sofisticada ao seu figurino raiz baseado na permanente necessidade da geração de mais-valor, tentando escamotear a sua verdadeira face(ação) humana ou não humana com miúdos dispositivos da robótica, elementos da microeletrônica os quais não acumulam riquezas materiais nem ficam com parte do valor decorrente da ausência de remuneração do trabalho vivo, muito menos desfrutam depois do paraíso construído pela opulência burguesa.

Sob a órbita jurídica, é necessário tensionar a realidade advinda do trabalho executado por intermédio de plataforma eletrônica, frente ao Direito Constitucional do Trabalho.

Em tempos de “Gig-economy, platform economy, sharing economy, crowdsourcing, on-demand economyuberização, ifoodização, crowdwork, trabalho digital“, Antunes e Filgueiras descortinam o objetivo nuclear das plataformas eletrônicas voltado para escamotear o assalariamento e a consequente exploração capitalista. Entre tantas condições de trabalho de motoristas, entregadores ciclistas, motociclistas e de outros profissionais prontos para cumprir a rotina rigorosamente controlada por plataformas, os proprietários dos aplicativos eletrônicos selecionam quem está apto a trabalhar; delimitam de modo exaustivo o que pode ser feito ou não pelo contratado no exercício de suas atividades laborais, fixando as suas tarefas, obrigações e responsabilidades; impedem a captação de cliente pelo trabalhador contratado, prerrogativa exclusiva da empresa; descrevem de forma pormenorizada todas as atividades do contratado; fixam o prazo máximo a ser executado, quanto à entrega do serviço oferecido ao cliente; estabelecem de forma unilateral os valores a serem recebidos; aplicam promoções e sanções aos trabalhadores, por força do uso do algoritmo; impõem regras de convivência entre os trabalhadores e clientes e entre aqueles e as suas gerências; exigem assiduidade laboral; pressionam os trabalhadores pelo aumento da jornada; realizam ameaças aos seus trabalhadores contratados e promovem dispensas sem quaisquer justificativas[2].

É quase impossível encontrar outras relações de trabalho, ao menos entre aquelas que tentam fugir da formalidade, tão permeadas por subordinação da pessoa física trabalhadora, além de pessoalidade, onerosidade e não eventualidade, quanto ao quadro evidente assim vislumbrado no desenvolvimento do labor humano por intermédio de plataformas eletrônicas.

Nunca é demais relembrar que a Constituição de 1988, resultante do processo político condutor do fim da ditadura militar(1964-1985)e de seu próprio processo constituinte umbilicalmente vinculado ao desmonte das estruturas autoritárias e socialmente excludentes fincadas por governos ilegítimos assentados no poder por um golpe militar(1964), embora repleta de contradições inerentes à tensionada sociedade de classes, possui inegável compromisso com o direito ao trabalho, o direito do trabalho, a organização sindical livre, o trabalho digno e o trabalho regulado.

Se não bastassem os primados da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho como princípios fundamentais da República ou fundamentos do Estado Democrático de Direito(CRFB, artigo 1º, incisos III e IV) , o texto constitucional reconhece o trabalho como direito social fundamental(art.6º), além de realçar o seu compromisso inarredável com o trabalho regulado e protegido pelo Estado(artigo 7º).

O trabalho formal e regulado é objeto de cuidadosa normatização, a ponto de a Constituição da República identificar extenso rol de direitos sociais a serem usufruídos pela classe trabalhadora frente aos sujeitos do capital ou de entes sem fins lucrativos que do trabalho alheio se aproveitam.

Não é do trabalho sem proteção social que a Constituição brasileira trata. É da proteção social a qualquer tipo de trabalho humano desenvolvido por pessoa natural em prol de empresas ou pessoas as quais recorrem à força de trabalho alheia para o desenvolvimento de suas atividades.

Por isso mesmo, toda vez que estiver em debate a existência ou não da relação de emprego entre uma pessoa física trabalhadora e determinada empresa (ou outra forma de organização social) que fez uso dessa força de trabalho em seu benefício, de forma direta ou indireta, há que se ter em mente o caráter compromissório da Constituição brasileira de 1988 com o contrato de trabalho formal e regulado.

Na qualidade de texto jurídico revestido do caráter contramajoritário, capaz de não ignorar as acentuadas assimetrias econômicas, políticas e sociais entre o capital e o trabalho, cuja premissa da liberdade do funcionamento do mercado sem regulação estatal esvaziaria por completo todas as normas de conteúdo protetivo ao hipossuficiente, a Constituição da República, para além da exigência do trabalho formal, assegura a organização sindical sem a interferência do Estado e dos patrões (artigo 8º), garante o exercício do direito de greve pela classe trabalhadora (artigo 9º) e proclama que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano (artigo 170).

As tentativas vistas no seio da sociedade brasileira, sob a condução das classes empresariais e das instituições públicas representadas pelos poderes constituídos da República, voltadas à desregulação das relações de trabalho, seja sob a forma de “uberização” ou “ifoodização” sem quaisquer direitos sociais, “pejotização” “empreendedorismo do trabalhador” ou lastreadas em outros pressupostos da economia de mercado avessa à regulação e formalização das relações de emprego com trabalhadores os quais lhes prestam serviços, expressam, sem nenhuma dúvida, a refutação veemente do texto constitucional de 1988.

Em outras palavras, o Direito Constitucional de 1988 deveria ser o suficiente para rechaçar formas fraudulentas de contratação e absorção de mão de obra em prol de atividade empresarial permanente e lucrativa, cujo desempenho prescinde inexoravelmente da força de trabalho humana, sendo a plataforma digital tão somente o instrumento eletrônico ou a máquina dos novos tempos para teleguiar todas as ações a serem empreendidas pela parte obreira.

A Constituição da República não proíbe o uso de ferramentas eletrônicas nas relações de trabalho, incluindo as plataformas digitais. Apenas veda a criação de subterfúgios econômicos e jurídicos capazes de colocar em xeque o trabalho regulado e formal nela assegurado, a exemplo das tais plataformas sem responsabilidade social, algo em voga no Brasil, mas que boa parte do mundo, registre-se, começa a despertar para os seus efeitos profundamente perversos com a classe trabalhadora e com o conjunto de cada sociedade organizada sob a modalidade da democracia constitucional formal burguesa.

O trabalho prestado por pessoa física, de maneira pessoal, em prol de atividade econômica permanente na área de transporte de gente humana ou produtos, bem como em relação a diversificadas atividades igualmente acionadas a partir de plataformas digitais, no Brasil, é inexoravelmente regulado e protegido pela Constituição da República, sendo inconstitucionais todos e quaisquer atos privados ou públicos consistentes na subtração de direitos sociais à classe trabalhadora, entre outros, as garantias inerentes à limitação da jornada, ao pagamento de horas extras, adicionais, 13º salário, FGTS, seguro desemprego, à concessão de férias e adoção de medidas contra quaisquer adoecimentos laborais ou acidentes típicos.

A prática sonegatória de direitos sociais eventualmente adotada por plataformas eletrônicas é notoriamente ofensiva à Constituição de 1988(artigos 1º, incisos III e IV; 6º, 7º, 8º, 9º e 170) e à CLT(artigos 3º e 442).  

Em síntese, os titulares das plataformas digitais estão obrigados a cumprir a Constituição da República e a CLT, devendo, por isso mesmo, respeitar as condições dignas de labor, anotar as carteiras de trabalho das pessoas que lhes prestam serviços, pagando a elas as verbas próprias de empregadas, desde o primeiro dia da prestação laboral.

Notas

[1] ALVES, Giovanni. Dimensões da precarização do trabalho– Ensaios de Sociologia do Trabalho-. Bauru: Projeto Editorial Práxis, 2013, p. 29.

[2] ANTUNES, Ricardo; FILGUEIRAS, Vitor. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.

Grijalbo F. Coutinho é membro da AJD, mestre e doutor em direito pela FDUFMG.

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