O trabalho revolucionário de moldar o tempo e o Potemkin de Eisenstein

cena do filme Encouraçado Potemkin
Imagem do filme Encouraçado Potemkin/Domínio público

Glaucia Campregher

Eu não poderia fechar minha contribuição a este prestigioso jornal no ano que está findando sem falar de um filme que fez história de tantas e tantas maneiras que chega a me dar vontade de não apenas festejar os seus 100 anos (completados em 2025), mas usar o seu aniversário como motivo e marco temporal pra reposicionarmos os nossos últimos séculos.

Explico. Os séculos não deveriam ser grupos de 100 anos a começar sempre de zeros neutros, insípidos, inodoros e incolores, e a findar em noves igualmente vazios. Hobsbawm, o grande historiador marxista, entendeu isso muito bem e por isso alongou o séc XIX (que se iniciaria em 1789 com a Revolução Francesa e duraria até 1914 com a Primeira Guerra Mundial) e encurtou o XX (que iria de 1914 até 1991, quando cai o muro de Berlim e se inicia o colapso da União Soviética). Não sou grande historiadora nem nada, mas – que nem aqueles loucos adoráveis que se pensam Napoleão – me dou o direito de alongar ainda mais o século XIX, até o ano de lançamento do Encouraçado Potemkin de Serguei Eisenstein! E, cereja do bolo, minha marcação não precisa tornar breve o século XX, pois que este começaria em 1925 e só acabaria agora, no fatídico ano de 2025, o ano do início do fim (no fim, falo disso).

Quero crer que se o XIX durasse um pouco mais, poucos se incomodariam e muitos concordariam comigo, que a primeira grande guerra imperialista do capitalismo não merece tanta notoriedade. Bem, verdade que ela marca o fim das guerras com alguma ética, com códigos de honra entre exércitos e populações civis minimamente a salvo, e a inauguração das guerras altamente tecnológicas com sua matança industrial. Mas, pensem bem, o melhor da primeira guerra foi o povo russo em peso decidir sair dela! Logo, se a revolução francesa inaugurou o XIX, por que não a russa inaugurar o XX? Sim, mas Potemkin o navio motivou um motim (e uma rebelião na cidade de Odessa) em 1905 e Potemkin o filme é de quase dez anos depois da revolução de 1917. Ok, admito, quero que o advento do filme marque o século XX, e quero que os seus 100 anos marquem o fim do XXI! Por que? Vamos lá.

O século XX, minha gente, foi o século da imagem em movimento. Vejam, fazemos e admiramos imagens paradas desde os tempos das cavernas! Durante séculos as estampamos nos tetos das igrejas; outros tantos, as dependurados nas paredes dos museus; mas a vida retratada parada nunca pode no passado mudar os ritmos e os rumos da vida real como hoje pode a imagem posta em movimento. O câmera-ação fez mesmo a ação seguir as câmeras; e ameaça fazer a ação real ser substituída por elas. O mais louco é que o movimento das imagens captadas e manipuladas pelas câmeras mais astutas não é o da vida real. Na vida, há muito tempo vazio, de blá blá blás furados, de mera espera, e de micro ações repetitivas e chatas (como grande parte das nossas horas trabalhadas), entre um grande momento e outro. O cinema desde sempre precisou limá-los pra que a história coubesse no tempo de sua exibição. Mas de Paris a Hollywood quando se cortavam as cenas isso era feito de modo envergonhado (a imagem enfraquecendo aos poucos, por vezes um círculo de luz clara ou escura tomando seu lugar), os russos fizeram o oposto, os cortes eram pra ser ressaltados.

Muito bem, muitos aqui, mesmo sem ter visto o Encouraçado…, já viram a famosa cena do carrinho do bebê despencando escadaria abaixo radicalmente entrecortada com outras tantas mostrando a multidão correndo, os soldados atirando, suas meras sombras descendo os degraus, suas tantas vítimas caindo sob seus pés. Muitos sabem que cineastas do mundo inteiro a repetiram com menos ou mais variações desde o seu lançamento e até nossos dias (a última homenagem que me lembro dessa cena é a da galinha correndo morro abaixo em Cidade de Deus de Walter Salles). Mas poucos, mesmo os que já viram o filme, sabem que Eisenstein era um teórico dos cortes e da edição direcionada por determinada intenção. Não sei dizer se ele, como Lenin, teve também seus tempos de leitura de Hegel, mas o fato é que sua montagem era dialética pura. Parada brusca e movimento, close ups e planos abertos, pessoas em situações dramáticas e objetos frios, não eram opostos que se excluem, mas contrários que se explicam, que podem e devem andar juntos.

Revi o filme pra escrever esse artigo e fiquei chocada com a inteligência calculada e a emoção solta (outra dupla dialética) da montagem de Eisenstein. O filme se inicia com um contraponto já entre mar e panelas a balançar. Segue a visão suja e nojenta da carne podre que deveria ser servida aos marinheiros e a postura e os uniformes elegantes dos oficiais do navio (o cineasta dá um close nos vermes quando os oficiais são jogados ao mar). E assim continuam as contraposições, que seguem mesmo quando o cineasta quer mostrar unidade. Por exemplo, a unidade do povo de Odessa em festa indo receber os marinheiros, não é mostrada sem a violência imagética da contradição – a mulher elegante no alto da escadaria toda cheia de trajes e maquiagens é cortada para mostrar o mendigo sem braços e pernas bem à altura dos pés da dama. Noutra cena, Eisenstein mostra que a força dos que vieram para destruir o velho mundo é tão grande que pode dar vida a leões de pedra. E aí, a cena das bombas explodindo sobre o gran-teatro aristocrata é cortada para um close dos leões de cimento enfeites de pórticos, que aparecem em outras posições, de pé e de olhos arregalados.

Se nos filmes mudos, as imagens devem dizer sozinhas toda a história do que se passa ou passou – com a ajuda de uma que outra frase de texto e mais a música que conduz as cenas -, no cinema de Eisenstein as imagens contrapostas estrategicamente almejam atiçar emoções e insuflar à ação, e convidam a uma história que ainda irá passar. O filme é corajosamente ideológico, e, quero crer, não apenas porque foi uma demanda do Partido Comunista no poder. O filme é um exercício prático do teórico do cinema Eisenstein, sobre sua capacidade de gerar comoção e insuflar a ação revolucionária. A aula dada por Eisenstein foi aprendida por muitos, e muitos destes com intenções não tão nobres (vejam os filmes de Leni Riefenstahl). Essa lição não ficou restrita ao cinema, vide o século XX ter sido o século da propaganda, usando a imagem televisada ou compartilhada nas mil e uma mídias da atualidade. No final, as edições estratégicas acabaram por mirar a diminuição de qualquer emoção e insuflar à inação.

Dito isso, e enfatizando que todos vejam e revejam o Encouraçado de Potemkin, digo que 2025, ano dos seus 100 anos, marca também o ano no qual todos ficamos sabendo, o que já vinha acontecendo – que as estratégias de dominação das massas mudaram de patamar. Particularmente no que diz respeito ao cinema, o século que passou não ficou preso à demanda explícita e honesta (dirigidas por valores humanitários ou não) de governantes como em seu início. Ao longo do século XX , os interesses privados deixados à solta super sofisticaram os meios de ler nossos comportamentos e anseios para nos entregar materiais cuja função era os condicionar. Em vez de depender de cineastas gênios, os estúdios contrataram exércitos de cientistas (filósofos e psicanalistas, por ex), encomendaram inúmeras pesquisas de comportamento, criaram grupos testes, compraram espaços em todo tipo de mídia, etc etc etc. Mas tudo mudou quando passamos a passar, gratuita e diuturnamente, nossas informações mais íntimas por meio das tais “redes sociais” a meia dúzia de mega empresários. Isso já tem algumas décadas mas o processamento massivo de nossos dados por “inteligências artificiais” cujos donos criam os algoritmos para nos manter cativos só veio à tona mesmo em 2025. Eisenstein está pra o século XX como Zuckerberg para o XXI. Pena que nós agora seremos menos que meros figurantes…

 

Glaucia Campregher é professora aposentada de economia, ex-professora da UFU, UFRGS, UFBA e apaixonada por cinema.


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