
Glaucia Campregher
Acredito que muitos aqui já viram, ainda que seja uma produção deste ano, o brilhante Os pecadores de Ryan Coogler (quem não viu vá atrás, vou tentar não dar muitos spoilers, mas sabem como é, difícil analisar sem mencionar certas passagens..). Parece apenas mais um filme de terror vampiresco, e é, só que daqueles geniais. Bem, preciso dizer que adoro filmes de vampiros, e também de zumbis. Isso porque estes são os mitos modernos que melhor traduzem a desgraça da vida sub-humana desde o advento do capetalismo – o sistema que nos suga o sangue no trabalho mas nos mantém mortos-vivos para o consumo, das coisas que dão lucro e das ideias que dão sustentação política.
Atenção para essa segunda parte. O capitalismo é como um vampiro que precisa ser convidado pra entrar em nossas vidas. A exploração precisa de legitimação. Os subjugados precisam acreditar na ilusão oposta à sua condição – de que aderindo ao sistema terão liberdade, igualdade e prosperidade. O que não significa que em momentos críticos, como nos períodos de acumulação primitiva ou de crises, o sistema não recorra à violência. E não é que até isso aparece em nosso filme de vampiro! Pois sim, Coogler coloca o mito sugador numa comunidade de ex-escravizados vivendo no Mississipi (o das Chamas, lembram?). Isso é perfeito pra nos lembrarmos que muita violência foi necessária pra transformar africanos em mercadorias, e muita ainda pra que depois pudessem se tornar, como todos os demais, livres vendedores de si. Desde então, na América de cima como também na de baixo, violência e legitimação se alternam e se combinam – como vemos no fato da negritude hoje estrelar tantas telas, mesmo quando negros são a maioria esmagadora em tantas valas e celas.
Em Os Pecadores a violência e a legitimação não demandam solução, não implicam em escolhas, acontecem tudo junto e misturado, e ainda rolam no que é público e privado, sendo exercidas pelo pai ou pelo Estado. Mais, se utilizam, e são utilizadas, pela arte e pela religião, e são costuradas pelos fios fortes do trabalho e da paixão. Sendo assim, só sai disso quem aprende a trabalhar com a contradição. Querem ver?
Vemos já na primeira cena, o rapazinho nosso herói, que anda agarrado à sua guitarra e seu blues, ser alertado pelo avô pastor, “vai pra música não!”, a música é da noite, da bebida, do pecado, e “esse é o ambiente do diabo”. E o filme segue mostrando este e os demais personagens envoltos na luta, nada natural pois na natureza não tem isso, do bem contra o mal. Mas roteiro, falas, atores, luzes, nada corrobora um bem todo bem e um mal todo mal. As escolhas são então complexificadas… Deus ou o diabo, a igreja ou o bar, o dia ou à noite, o trabalho duro dos que passam o dia na enxada ou a vagabundagem dos que passam a noite a cantar? Aceitar o dinheiro e a prosperidade individual que ele promete como guia para a vida ou respeitar os guias ancestrais e apostar na coletividade como antídoto àquela ilusão. Em nenhum momento é apresentada uma solução fácil, do tipo isso ou aquilo, uma vez que se reconhece que é sempre isso e aquilo, e isso naquilo e aquilo nisso. Ficou complicado? Sim. Explico…
Deus, o dia, a igreja, o trabalho árduo e o respeito à ancestralidade e à coletividade tanto podem contribuir para a alienação dos de baixo quanto para sua redenção. O pastor, o padre, ou o pai de santo, tanto podem ser líderes que ensinam a pescar e a lutar contra a apropriação privada do rio e do mar, como podem ser aliados do poder, e da estratégica de prometer o céu pra depois da morte enquanto aqui semeia a aceitação de toda sorte. Do mesmo modo o Diabo, a noite, o bar, o cantar e dançar. Tudo isso pode servir para alienar ou emancipar, depende de como, quando, porquê, com quem e em que doses… A própria bebida, na dose certa, pode aproximar pessoas, relaxar as defesas, estimular a sinceridade de opiniões e o encontro de consensos. Na dose errada pode afastar as pessoas, endurecer as posições num debate e estimular a resolução de conflitos na porrada. E assim pode ser com tudo, há que ver como em tudo há interesses, logo, há que saber quais e de quem estão em jogo. Assim, há luta de classes na igreja e no bar! Por que haveríamos de pensar que a luta de classes só ocorre no chão da fazenda, da fábrica ou do escritório? Acredito que há em toda parte uma luta entre práticas que promovem a participação coletiva e a consciência crítica de cada um, a operação de consensos dinâmicos e a distribuição justa de direitos e deveres (conforme possibilidades e necessidades), e práticas autoritárias, concentradoras de conhecimentos e poderes.
Pessoal, isso aqui é muito importante, acredito que muitos críticos do capitalismo, inclusive marxistas, além de separarem demais a tal da infraestrutura (o trabalho na produção, onde reina o material e o objetivo) e a superestrutura (onde reina o subjetivo, a cultura, a sociabilidade, o poder e a ideologia) -, acharam também que a história da humanidade ia numa linha reta da alienação à desalienação. Como se no passado fôssemos sempre mais alienados e ignorantes (daí só sobrar crítica às crenças e só elogio acrítico às ciências), e no presente capitalista pudéssemos usar a consciência do poder coletivo que experimentamos no trabalho para tomarmos o poder político (daí passarmos da luta sindical à partidária) até construirmos, no comunismo, uma sociedade sem classes, sem exploração e sem alienação. Gente, as pesquisas atuais mostram que no passado tinha era um diferencial danado entre sociedades mais igualitárias e participativas (de coletivos menos alienados) e outras autoritárias e opressoras (maior alienação, portanto). Do mesmo modo, o ensaio socialista soviético e o chinês atual nos mostram que, conforme a época e o lugar, dá pra ter diferentes arranjos com mais ou menos participação e opressão. Mas gente, o principal é que é sempre uma questão de grau, as práticas que sustentam estes dois polos estão sempre sob tensão. Vejamos isso no filme.
Pra começar, toda a população negra, nos Estados Unidos como no Brasil, sabe que andar na rua envolve tensão, é sempre questão de grau, maior ou menor, conforme a situação. É menor à luz do dia e na labuta, quando as pessoas apenas obedecem; e é maior à noite quando, pretensamente, se autoriza o lazer. Além dessa tensão básica, há aquela que pesa sobre quem se arrisca a estudar, a enriquecer, a entrar nas áreas não permitidas. Se já é complicado para os de baixo em geral, pior ainda para os descendentes dos africanos sequestrados. No filme esta tensão está em todas as cenas até explodir no cena da inauguração do bar, de forma magnífica – longa, com vários números musicais e um show de imagens e reflexões. A presença da música que já era forte, nos leva então ao céu e ao inferno. A música, pra mim a maior das artes (sorry, cinema..), pode como nenhuma outra nos isolar e nos transportar ao mais profundo de nós mesmos ou nos unificar aos outros num só sentimento. Entre tantas contradições (a começar da entre silêncio e som), ela alivia e promove tensão. Alivia na labuta e no lazer quando instiga a alegria coletiva e faz esquecer o cansaço. Mas também promove a tensão do tesão sexual e a da unidade tribal, ambos podendo ir do lúdico ao letal. No filme, até os vampiros querem tocar, cantar e dançar! A tensão entre extremos é tanta que vivos podem morrer e mortos podem viver. O baile é, ao mesmo tempo, cerimonial coletivo – festa do trabalho de todos os que ajudaram a realizá-lo, negros, brancos e amarelos (atenção à família chinesa que aposta na emancipação dos negros) -, e também bacanal individual, festa dos amantes que se entregam, talvez, pela última vez. O pós-baile é, sem spoilers, bom e ruim…
Então caros leitores, a desalienação dá tanto trabalho como a alienação (quem quiser ler sobre a dita cuja, mando um capítulo da minha tese, chata que só, pois sem som e imagens). O cinema – como deus e o diabo – pode servir tanto a uma quanto à outra (e aí recomendo os dois documentários da Sophie Fiennes com o Zizek). Podemos ver um filme e encher as bolsas dos estúdios e plataformas de streaming e sair relaxados e prontos pra mais exploração e alienação. Ou podemos usá-lo como Os pecadores usaram deus e o diabo, as noites de lazer e os dias de labuta, as crenças nos talismãs da religião ancestral e as metralhadoras da indústria atual, a reflexão individual e o trabalho coletivo. É magnífica a cena em que o herói reza e o vampiro o acompanha comovido dizendo que já viu muitos tiranos entoando orações ao cometerem crimes. Não é o conhecimento superficial mas a compreensão profunda dos extremos (da relação entre eles) que irá nos capacitar a sobrevivermos e mais, a almejarmos a emancipação total. Abusando da metáfora vampiresca, eu diria que só passando a noite com o capitalismo o conheceremos em suas entranhas, e só então conseguiremos descobrir um modo de expô-lo à luz do sol e vê-lo finalmente tornar-se pó.
Glaucia Campregher é professora aposentada de economia, ex-professora da UFU, UFRGS, UFBA e apaixonada por cinema.