Sidnei Machado e Vera Karam de Chueiri
Fonte: Jota
Data original da publicação: 25/06/2018
Há uma elevada expectativa na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nas vinte e seis ações judiciais que impugnam a reforma trabalhista — a Lei 13467, de 13 de julho de 2017. Mas esse clima de inquietação sobre o papel da Corte deve começar a se desfazer com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5794, na pauta do STF do próximo dia 28 de junho.
A ADI 5794 discute a constitucionalidade da alteração na CLT (artigo 579) que pôs fim a compulsoriedade da contribuição sindical, dispositivo impugnado em outras 17 ações no STF. O tema em si é polêmico e complexo porque atinge a estrutura do modelo sindical vigente desde 1940. Porém, o espectro que ronda o STF é muito mais amplo, é o espectro da Reforma Trabalhista em si e seus limites constitucionais.
A aprovação da lei 13467 e a sua impugnação, por meio das ações de inconstitucionalidades propostas em face do STF, evidenciam que decisões majoritárias oriundas do legislativo e sancionadas pelo executivo não necessariamente protegem direitos e, por consequência, resta como possibilidade a atuação contramajoritária da Corte Suprema na proteção de tais direitos.
Fato é que a baixa legitimidade do atual governo não impediu a aprovação da reforma trabalhista pelo Congresso Nacional. O diagnóstico imediato desta combinação revela um executivo com baixa aprovação popular e um povo subrepresentado no legislativo o que traduz, de um lado e de outro, um déficit democrático das respectivas instituições e a ausência de accountability na decisão que ambas tomaram em favor da reforma trabalhista. Resta agora ao STF explicitar o sentido e o alcance do modelo sindical, sua conformação com a autonomia coletiva no âmbito do Estado e, ainda, com o pluralismo democrático da Constituição. E para esse enfrentamento, o STF terá que assumir a tarefa de fiscalizar a reforma trabalhista e, na ADI 5794, mais especificamente, analisar a estrutura sindical em face da Constituição sob pena de aprofundar o deficit democrático em relação a si.
O redesenho do modelo de financiamento sindical pela reforma trabalhista está associado ao sentido geral da lei. Com isso, embora a questão central da ADI 5794 envolva a discussão sobre a possibilidade de alteração, por lei ordinária, do modelo de financiamento sindical, a formulação da resposta pela Corte exigirá uma tomada de posição mais ampla sobre se a reforma trabalhista encontra limites no texto da Constituição.
Por uma articulação de sujeitos políticos e financeiros, a reforma tratou de desregular o mercado de trabalho e flexibilizar as relações de trabalho. Nessa estratégia de desregulação, um ponto central é fortalecer a negociação coletiva, delegando-se ao terreno da negociação direta entre empresas e sindicatos um amplo poder de produção de normas, inclusive com a promoção de um caráter derrogatório da lei, com estreitos limites dos direitos fundamentais. O paradoxal é que a ampliação do espaço da negociação coletiva vem acompanhada da retirada de uma importante fonte de financiamento dos sindicatos e, com isso, debilita-se o poder sindical pela sua asfixia financeira. Esse aspecto é o bastante para evidenciar o aprofundamento da assimetria de poder na relação de trabalho.
A lei 13467 aumenta significativamente o poder empresarial para gerir o trabalho (medidas de flexibilidade) e a capacidade de produzir normas extraestatais no espaço da empresa, numa disparidade de força com os sindicatos na disputa pelo sentido dos direitos trabalhistas. Isso também é problemático porque essas normas negociadas no espaço da empresa podem ser desconectadas dos direitos constitucionalmente garantidos e, nesse sentido, a reforma promove também a desconstitucionalização do trabalho.
Outro aspecto problemático é que não é possível dissociar a contribuição sindical do modelo de organização sindical brasileiro, nascido e estruturado durante o Estado Novo por meio do Decreto-Lei 2377 de 1940 e incorporado na CLT em 1943. Assim, sua extinção corresponde à ideia de um sindicalismo autônomo, sem a interferência do Estado e, em tese, mais compatível com regimes democráticos. O fato é que esse modelo de organização sindical do Estado Novo se manteve na Constituição de 1988, com pequenas aberturas, de maneira que resta um traço autoritário no modelo sindical constitucional de 1988. Vale dizer, por um lado, uma Constituição democrática e, por outro, um modelo sindical anacrônico (contribuição sindical, unicidade sindical e poder normativo da Justiça dos Trabalho).
Se um modelo democrático de relações de trabalho recomenda que o Estado fique de fora, isso pode significar uma reforma sindical que coloque fim à unicidade, à contribuição sindical e ao poder normativo da Justiça do Trabalho. No entanto, nenhuma das iniciativas legislativas nesse sentido tiveram êxito, basicamente por falta de um consenso mínimo em torno de uma plataforma democrática de relações de trabalho. Daí a oportunidade da ADI 5794 para reacender a discussão sobre a estrutura sindical, em certa medida já anunciada no despacho proferido 30 de maio pelo ministro relator Edson Fachin que, em procedimento incomum, adiantou sua posição pela inconstitucionalidade da lei 13467 no que se refere à contribuição sindical, valendo-se, justamente, das premissas da estrutura sindical brasileira acolhidas pelo artigo 8º da Constituição. O argumento central do ministro Fachin para manter a fonte de custeio da contribuição sindical é a representatividade dos sindicatos prevista na Constituição, com sindicato único, representação de filiados e não filiados.
A questão é que o STF vinha assumindo um forte protagonismo com sua jurisprudência em temas de relações de trabalho, num claro enfrentamento da jurisprudência garantista do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a ponto de ter servido para subsidiar e instrumentalizar o projeto de lei que deu origem à Reforma. Uma decisão de grande impacto do STF em 2015, com voto do ministro Luís Roberto Barroso, validou a quitação de créditos do contrato de trabalho pela adesão do trabalhador ao Plano de Dispensa Incentivada – PDI (RE 590.415/SC, de 30/04/2015). Essa sinalização da jurisprudência da Corte, citada expressamente no relatório do substitutivo do projeto de lei na Câmara dos Deputados para o texto da lei 13467, foi capaz de alterar o quadro institucional das relações de trabalho.
Sobre a contribuição confederativa e a contribuição assistencial, duas modalidades de financiamento sindical, o STF já firmou jurisprudência restritiva à liberdade de instituição pelos sindicatos. Em relação à contribuição confederativa, prevista no texto constitucional (CF, artigo 8º, IV), o STF fixou na súmula vinculante 40, mesmo sendo aprovada em assembleia, ser inconstitucional a sua extensão aos empregados não filiados ao sindicato. Também sobre as contribuições assistenciais, fixadas em acordo e convenções coletivas de trabalho por previsão na CLT (artigo 513, “e”), em regime de repercussão geral, o STF, em voto do ministro Gilmar Mendes, reputou inconstitucional a cobrança para não sindicalizados associados ao sindicato (ARE 1018459). Em ambas as hipóteses, o fundamento da Corte é que, em razão da sua natureza jurídica não tributária, elas não são obrigatórias aos não sindicalizados.
Serão muito problemáticos para o julgamento da ADI 5794 esses dois precedentes sobre a contribuição confederativa e assistencial, confrontados com a jurisprudência do STF, a partir do voto do ministro Barroso de 2015 que, em direção oposta, reconhece e valoriza a autonomia privada do sindicato com prevalência da negociação coletiva frente à legislação trabalhista.
Do ponto de vista da lei 13467, se o objetivo era dotar os sindicatos de autonomia, a reforma é inacabada porque os sindicatos têm representatividade de toda a categoria e permanece o velho modelo corporativo do sindicato único e o poder normativo da Justiça do Trabalho.
Para uma decisão coerente com jurisprudência precedente, o Supremo terá que revisar sua posição sobre o fundamental tema do alcance e conteúdo da liberdade de associação e liberdade sindical (CF, artigo 5º, XX e artigo 8º) a fim de garantir a expressão da liberdade e o poder dos sindicatos de livremente instituírem contribuições para não associados ao sindicato.
Sidnei Machado é advogado e professor de Direito do Trabalho na Universidade Federal do Paraná, membro do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS).
Vera Karam de Chueiri é professora de direito constitucional na Universidade Federal do Paraná, coordenadora do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) e pesquisadora do CNPq.