O sindicato e as duas liberdades

Rogério Viola Coelho

1 Nos porões da primeira revolução industrial, surgiram na Inglaterra assembleias clandestinas que decidiam fixar tarifas de preços para os ofícios, impostas aos empresários com ameaça de boicote da produção e greve e também aos trabalhadores com a ameaça de ostracismo. Nesta fase embrionária, já eram gerados acordos tácitos, uma forma rudimentar de negociação coletiva. O exercício da autodefesa coletiva sem organicidade ia conformando o sindicato.

Ao longo de várias décadas o sindicato se expandiu no continente europeu, à margem da lei, fomentado pela Primeira Internacional Socialista como instrumento da revolução. Já no final do século XIX, a II Internacional buscou a sua institucionalização, assumindo a luta pelo reconhecimento dos direitos sociais e o voto universal, em lugar da revolução. Mas ela foi resistida tenazmente pelo Estado burguês, aferrado ao postulado rousseauniano da supressão dos poderes intermediários, entre o indivíduo e o Estado.

A liberdade sindical evolui para a universalização a partir do Tratado de Versalhes e a criação da OIT, em 1919, sendo positivada nas constituições do segundo pós-guerra como direito fundamental. Nas declarações de direitos, ela abrangeu o livre exercício da atividade sindical e a liberdade de organização.

2 A liberdade de organização sindical e o livre exercício da atividade sindical não se encaixam no conceito liberal, que concebe a liberdade como direito a não interferência externa. A liberdade sindical corresponde a uma típica manifestação da liberdade positiva, um direito de atividade voltada para a autodeterminação coletiva.

BOBBIO enfatiza que a liberdade negativa é liberdade do indivíduo singular, um direito de não sofrer coerção ou constrangimento. Ela é concretizada nas liberdades civis, enquanto que a liberdade positiva remete à intervenção que conduz a formação da vontade coletiva, seja a do povo, de uma comunidade, do grupo étnico ou da nação. Realça a polarização dos conceitos, com o célebre ensaio de BENJAMIN CONSTANT, que caracteriza a liberdade negativa como a liberdade própria do homem moderno, correspondendo às liberdades pessoais, como a de opinião, de iniciativa econômica, de contratar. E a liberdade positiva seria a liberdade dos antigos, correspondendo ao homem enquanto membro de uma comunidade, que participa ativamente das decisões desta comunidade [1].

Atenas fundou a assembleia geral dos cidadãos que se reuniam para debater, decidir e fazer efetiva a lei. Era assegurada a todos, além da igualdade perante a lei (isonomia) e da igualdade de acesso aos cargos públicos (isotimia), a dissertação livre e sem limitações, garantida por isegoria – o direito de todos de falar por igual na assembleia soberana e debater publicamente os negócios de governo.

O sindicato reproduz no interior do Estado representativo moderno a democracia direta dos antigos. Conforme DE LA CUEVA, o desenho institucional do sindicato nos ordenamentos gerais dos países democráticos traz em regra a opção pela democracia direta, porquanto: a) os sindicatos são as comunidades criadas pelos grupos de trabalhadores em assembleias constituintes; b) a assembleia é a totalidade dos membros fundadores; c) a assembleia fundadora – aprovando os estatutos, que valem como a constituição do sindicato – seria o poder constituinte. Ele identifica os órgãos do sindicato por suas funções: d) a assembleia é o poder legislativo e o tribunal supremo; e) a diretoria é o executivo.

Nos ordenamentos particulares dos sindicatos, a assembleia geral é sempre o órgão máximo e o locus da deliberação coletiva. E o seu desenho institucional nos ordenamentos dos países democráticos atribui à assembleia geral a centralização das decisões relevantes. Ela não expressa nas suas deliberações uma vontade geral preexistente; vale dizer, não lhe cabe a simples apuração do somatório de vontades individuais. Ao revés, a assembleia cumpre uma função constitutiva dessa vontade coletiva, que se constrói no debate de opiniões divergentes, ou de correntes ideológicas que nela devem se expressar livremente, em busca de uma síntese transcendente das individualidades.

3 A vontade coletiva, na negociação imposta aos empresários, estabelece normas coletivas que se sobrepõem às vontades individuais dos trabalhadores, restringindo a sua liberdade de contratar, assim como a liberdade do empresário de comprar a força de trabalho pelo valor indicado pelo mercado.

A resistência à institucionalização do sindicato ao longo do século XIX invocava a proscrição dos grupos intermediários no projeto da democracia liberal, e a defesa da ordem pública. Em meados do século XX, surgiu a doutrina autointitulada neoliberal, formulada inicialmente por HAYEK no livro “O Caminho da Servidão”, datado de 1944, quando estava nos seus primórdios a construção do Estado do Bem-Estar Social. Neste livro, que só foi ter repercussão décadas mais tarde, ele formula crítica radical contra toda intervenção do Estado na economia, defendendo a desregulamentação completa do mercado. Simultaneamente, HAYEK se volta contra os sindicatos, alegando que eles aniquilam a liberdade individual dos trabalhadores por meio de coerção, que suprime a liberdade de contratar, atingindo o mercado.

Esta doutrina é fundamentada na exaltação da liberdade negativa, na forma de liberdade de empresa e na liberdade contratual, constantes nas declarações de direitos de 1791 e 1789. A defesa destas liberdades é levada ao paroxismo, com a absolutização da não interferência do Estado e a repressão dos sindicatos. Denunciando a coerção sobre os indivíduos, HAYEK condena qualquer início de imposição dizendo que ambas as formas de coerção abrem “o caminho da servidão”.

A doutrina de HAYEK – que teve seguidores mais radicais defendendo a extinção do Estado – foi retomada pela burguesia na década de 60, tendo seu centro de elaboração em uma universidade americana. A propagação da doutrina foi atribuída aos institutos liberais, criados nos Estados Unidos e espalhados em muitos países europeus, estendendo-se aos países periféricos. São estas instituições, subsidiadas pela burguesia, que produzem nos denominados fóruns da liberdade a amplificação dessa ideologia. No governo THATCHER, essa doutrina, assumida no seu programa, conduziu à desregulamentação da economia, à redução e privatização dos serviços públicos, e a uma ofensiva sobre os sindicatos, até reduzi-los à inatividade. A mesma doutrina lastreou a desregulação do setor financeiro norte-americano, que ensejou a crise de 2008.

4 A tendência à colisão das duas liberdades surge repetidamente na atividade sindical, especialmente na greve – a mais elevada medida de conflito gerada pelo sindicato. Os piquetes colocam frente a frente trabalhadores que buscam adesões ao movimento, no exercício de sua liberdade positiva e, de outra parte, aqueles que – resistindo à vontade coletiva – querem adentrar no local de trabalho. Os grevistas exercem coação sobre os não grevistas, habitualmente com pressão moral e psicológica, correspondendo a um excesso a coerção física.

Na década de oitenta, o Tribunal Constitucional da Espanha proferiu decisão de grande relevância, em que examina a tendência à colisão das duas liberdades. Líderes sindicais haviam sido demitidos, por falta grave por sua atuação em piquetes, onde exerceram coação moral e psicológica sobre os não grevistas.

Condenados em todas as instâncias, foram absolvidos pela Corte Suprema que, após constatar a tendência de colisão das duas liberdades – ambas positivadas como direitos fundamentais –, concluiu que devia prevalecer a liberdade sindical positiva dos grevistas sobre a liberdade sindical negativa dos não grevistas. E conferiu predominância à primeira considerando que, no seu exercício, os trabalhadores buscavam a realização da igualdade, na forma de redução das desigualdades. E a igualdade é universalmente considerada, ao lado da liberdade, um dos valores fundantes da democracia moderna.

Nota

[1] BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 62.

Rogério Viola Coelho é advogado trabalhista, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, especializado em temas relativos aos servidores públicos. Ao longo de sua carreira, prestou assessoria jurídica a várias entidades sindicais, tanto regionais – como CPERS e ASSUFRGS – quanto nacionais – FASUBRA, ANDES. Paralelamente, desenvolveu atividades de palestrante, além de publicar vários artigos e o livro A relação de trabalho com o Estado. Dentre seus projetos atuais, destacam-se pesquisas sobre a reforma do Estado, assim como um novo livro sobre o sindicato.

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