O fim da Justiça do Trabalho

O fato, reconhecido inclusive pelas estatísticas oficiais, é que a Justiça do Trabalho impõe limites à exploração do trabalho pelo capital, promove o cumprimento de direitos básicos à sobrevivência física, tais como o pagamento das verbas devidas quando da extinção do contrato.

Valdete Souto Severo

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 18/10/2017

Jornais de grande circulação estão promovendo uma verdadeira cruzada ideológica contra a Justiça do Trabalho. Revelam o objetivo que desde sempre animou os “reformadores”: extinguir esse ramo do Judiciário. Chega-se a fazer afirmações falsas, de que apenas o Brasil possui estrutura própria para cuidar dos conflitos entre capital e trabalho. Esquecem-se que a Alemanha tem regime similar ao nosso.

Ora, se não funcionasse, a Justiça do Trabalho não incomodaria tanto. Incomoda porque é eficaz. Os números do CNJ atestam isso. O mais curioso é que o fim da Justiça do Trabalho é preconizado como culpa dos juízes que, de acordo com essa mentirosa campanha midiática, estão boicotando o texto da Lei 13.467/2017 por revanchismo ou desobediência.

Não há lei que não seja interpretada e, caso se revele contrária à Constituição, é a própria ordem jurídica que impõe aos juízes o dever de não aplicá-la.

Em todas as alterações legislativas propostas (podemos pensar no recente exemplo do novo CPC), os juízes enfrentaram o compromisso de discutir a nova legislação, criar teses e compreendê-la à luz dos ditames constitucionais. Não há novidade alguma. Portanto, não pode ser essa a razão para o terrorismo promovido contra os Juízes do Trabalho.

O caso da gratuidade é emblemático. O artigo 5º da carta constitucional garante o direito à gratuidade integral e, pelo texto da “reforma”, esse direito é esvaziado: cria-se a hipótese de assistência judiciária gratuita onerosa (!). Como é possível pretender que a Magistratura ignore a ordem constitucional, em nome de uma lei aprovada a portas fechadas, em tempo recorde, com rejeição social revelada pela pesquisa realizada no próprio site do Senado, com um relatório indicando inconstitucionalidades e com regras que contrariam diretamente a legislação nacional, constitucional e internacional?

O mais assustador é que o assédio aponta os Juízes como responsáveis pela suposta futura extinção da Justiça do Trabalho. Trata-se de argumento perverso. Caso a “reforma” seja aplicada em sua integralidade, especialmente quanto a regras, como a da gratuidade da justiça, apontadas pelo próprio Relator no Senado como contrárias à ordem jurídica vigente, haverá vedação do acesso à justiça.

Logo, reduzirá o número de demandas trabalhistas, sem, evidentemente, resolver o conflito social entre capital e trabalho. Há, inclusive, referências nos relatórios apresentados na Câmara e no Senado, de que o intuito da “reforma” é reduzir o número de processos. Entretanto, se isso ocorrer… bingo!

Os algozes da Justiça do Trabalho irão defender sua extinção, pois afinal de contas não há mais demandas que a justifiquem.

Nem isso, porém, é algo razoável de se pensar. Em realidade, caso aplicada em sua integralidade, o texto da Lei 13.467/17 provocará o caos nas relações materiais e, consequentemente, processuais de trabalho. O termo de quitação anual, a contratação de autônomo exclusivo, a referência a acordo tácito para prorrogação de jornada ou a previsão de contrato intermitente sem parâmetro algum para o limite de horas ou mesmo para a duração do vínculo, são exemplos de regras que trarão infindáveis discussões processuais. Portanto, o preconizado objetivo da “reforma” não se realizará.

E, diante disso, o que dirão os assediadores? Provavelmente argumentarão que o caos decorre da impossibilidade de resposta única, esse verdadeiro fetiche do Século XIX, que sempre retorna como argumento retórico para justificar críticas infundadas à atuação do Poder Judiciário.

E como a resposta única é mesmo um objetivo impossível, na exata medida em que o Direito reproduz um discurso comprometido com uma racionalidade específica e, como linguagem, é insuscetível de uniformização completa, novamente haverá vozes mal intencionadas, para acusar os Juízes do Trabalho como responsáveis pela insegurança que a lei certamente gerará.

Não há escapatória, o que nos revela estarmos mesmo diante de um movimento de terrorismo contra a magistratura trabalhista, com evidente objetivo de levar os Juízes a autofagia e, com isso, realizar o sonho nutrido desde a década de 1990, de extinguir o ramo do Poder Judiciário que viabiliza espaços de cidadania aos trabalhadores brasileiros.

Essas incoerências no discurso revelam:

1.que a vontade de extinguir a Justiça do Trabalho é a motivação real para a edição de uma lei que introduz na CLT dispositivos contraditórios entre si, mal redigidos e avessos à noção de proteção que justifica a existência mesma desse poder de Estado, e que segue expresso em artigos não revogados, como é exemplo o art.9º da CLT;
2. que não há condições políticas, sociais ou mesmo econômicas para a extinção da Justiça do Trabalho em uma realidade, como a brasileira, na qual essa é a única via de realização dos direitos trabalhistas, necessários para garantir a dignidade de quem trabalha, mas também para viabilizar o consumo, e é exatamente por isso que o capital está se valendo do terrorismo midiático;
3. o objetivo dessa campanha terrorista não é alertar para um perigo real, mas sim constranger os juízes a aplicarem uma lei manifestamente contrária à ordem constitucional vigente, obrigando-os a serem os agentes de sua própria extinção.

O fato, reconhecido inclusive pelas estatísticas oficiais, é que a Justiça do Trabalho impõe limites à exploração do trabalho pelo capital, promove o cumprimento de direitos básicos à sobrevivência física, tais como o pagamento das verbas devidas quando da extinção do contrato.

E, com isso, permite uma concorrência menos desleal, prestigiando os empregadores que cumprem regularmente seus deveres. É do Justiça em Números, do CNJ, a informação de que férias, remuneração, verbas resilitórias e horas extras, constituem o objeto de cerca de 49% das demandas trabalhistas.

No Rio Grande do Sul, do “total de pedidos que chegam à Justiça do Trabalho gaúcha, 54% referem-se a verbas resilitórias (saldo de salários não pagos, 13º salário e férias proporcionais, 40% dos depósitos do FGTS)”.

Na realidade de exceção em que vivemos, da qual é exemplo significativo a recente Portaria 1129 do MT, a Justiça do Trabalho vem resistindo bravamente. Segue promovendo acesso à justiça. É espaço de diálogo e, principalmente, de reconciliação do trabalhador com sua própria dignidade. Processos céleres, simples, resolvidos em tempo capaz de garantir a sobrevivência física de quem perdeu sua fonte de sustento, garantem essa eficiência.

A campanha terrorista para destruição desse espaço de cidadania é a prova cabal de que o objetivo da “reforma” nunca foi modernizar, criar empregos ou valorizar a ação dos sindicatos. Ao contrário, a intenção é impedir que a Justiça do Trabalho exerça seu verdadeiro fim: fazer valer os direitos constitucionais trabalhistas, coibindo o reiterado desrespeito à ordem jurídica.

Tenho convicção, porém, de que a Justiça do Trabalho não irá sucumbir a essa pressão midiática. Certamente, seguirá cumprindo sua missão institucional, comprometendo-se com os valores, princípios e regras constitucionais, respeitando os compromissos assumidos em âmbito internacional, e prestando uma jurisdição de qualidade.

Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD.

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