Garantir o direito ao trabalho é condição para o exercício das atividades econômicas e não o contrário.
Antonio Baylos
Fonte: Blog do autor
Tradução: DMT em Debate
Data original da publicação: 10/01/2021
A primeira semana do ano 21 do século de mesma cifra termina com eventos tremendos no âmbito geopolítico e de mudanças climáticas, mesmo sem conhecer em detalhes os efeitos que a anunciada terceira onda de Covid-19 produzirá nas estruturas de saúde já tão castigadas. No horizonte, encontra-se a recuperação econômica, para a qual os fundos europeus referidos na RDL 36/2020 parecem muito convenientes, ao regular a execução do Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência [1]. Neste tipo de regulação, a atividade econômica é o eixo por onde passa a intervenção normativa, e é normal que seus artigos apenas remotamente mencionem o elemento essencial desta recuperação que esperamos que ocorra após a superação da crise da sanitária: a manutenção do emprego.
Uma questão fundamental, pois está diretamente ligada à satisfação de um direito constitucional sobre o qual se constrói a noção de cidadania social. No entanto, o direito ao trabalho surge como resultado do processo econômico, cujo alcance e extensão são determinados pela prosperidade econômica. Se as empresas funcionam, o direito ao trabalho encontra suas condições normais de exercício. O raciocínio inverso não costuma ser proposto, ou seja, para que a atividade econômica funcione é necessário garantir o direito ao trabalho. O que leva a uma conclusão: garantir o direito ao trabalho é condição para o exercício das atividades econômicas e não o contrário.
Qual é, então, o sentido do direito ao trabalho, sempre esquecido no discurso da recuperação econômica, transmutado na noção de ‘criação de empregos’ como variável do custo de produção e da produtividade empresarial? Este verbete tenta relembrar a importância do nosso sistema constitucional, ao qual – convém lembrar mais uma vez – estão sujeitos todos os poderes públicos.
O art. 23 da Declaração dos Direitos Humanos, texto central e emblemático que defende a universalidade dos direitos da pessoa, afirma que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho, a condições de trabalho equitativas e satisfatórias e à proteção contra o desemprego ”. A noção de trabalho a que se tem direito identifica-se fundamentalmente com o trabalho assalariado, embora também seja possível encontrar, em alguns ordenamentos jurídicos, a possibilidade de incluir o trabalho autônomo dentro dessa noção.
O trabalho é conceituado como emprego, e nessa condição entende-se que entra no chamado mercado de trabalho. Os dados que temos sobre o emprego e o número de assalariados no mundo revelam que a tendência de crescimento não parou nem com a crise econômica do início da primeira década do século, nem com a grande transformação tecnológica em curso. O impacto que a pandemia teve sobre ele ainda está por ser analisado. Mas o Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Tendências e Perspectivas de Emprego 2020, explica que o crescimento de pessoas que trabalham formalmente por um salário não parou de crescer, de modo que estima-se que em 2019 a população mundial de 15 ou mais anos de idade (ou seja, a população em idade ativa) totalizou 5,7 bilhões, e, deste total, 2,3 bilhões (39 por cento) não faziam parte da força de trabalho, enquanto 3,3 bilhões (57 por cento) tinham empregos, embora a subutilização total da mão-de-obra (desempregados, subempregados ou mão-de-obra potencial) some 477 milhões. Mais da metade das pessoas que trabalham no mundo (53% em 2019) recebem um salário ou remuneração, o que “aumenta a probabilidade de acesso à proteção social, direitos trabalhistas e segurança de renda”. Entretanto, essa probabilidade não é de todo garantida, uma vez que nada menos que 40 por cento dos trabalhadores que recebem um salário ou remuneração têm uma relação de trabalho informal e, portanto, é muito mais difícil gozar dos direitos trabalhistas ou da proteção social. Além disso, pode-se afirmar que cerca de 360 milhões de trabalhadores, em grande parte mulheres, eram trabalhadores familiares auxiliares, o que significa que são considerados informais por definição e não têm acesso à proteção social e à segurança de renda.
Ter um emprego não significa, portanto, ter direitos. Por esse motivo, é pertinente perguntar se é possível viver em um mundo em que se possa ter um emprego sem direitos derivados e relacionados ao próprio fato de exercer um trabalho para outrem. Existem trabalhos que não foram associados à titularidade ou exercício de nenhum direito. O trabalho de cuidados e o trabalho doméstico de reprodução familiar têm sido classicamente o exemplo dessa afirmação. Existem outros trabalhos que são exercidos fora das coordenadas institucionais que podem formalmente classificá-los como trabalho assalariado, ingressando na “formalização” de uma relação bilateral entre empregador e trabalhador que tem um amplo conjunto de consequências, tanto tributárias e fiscais, como, principalmente, remunerativas e de padronização das condições de trabalho. Mas em um nível universal, desde 1998, a OIT cunhou o termo trabalho decente como um conceito de validade e vigência fundamental que todos os Estados membros dessa organização devem seguir e observar.
O direito ao trabalho configura-se como um direito político que integra a condição de cidadão de um determinado país, desde que seja reconhecida a centralidade social, econômica e ideológica do trabalho como elemento de coesão social e fator de integração política das classes subalternas nas democracias modernas. O ponto de partida deste reconhecimento do direito ao trabalho é justamente o entendimento de que uma sociedade avançada deve ter como eixos de desenvolvimento o trabalho e o conhecimento, o que implica atribuir um valor fundamental para a democracia à posição subordinada ocupada por pessoas que trabalham para obter um salário que lhes permita manter sua existência. O trabalho deve, portanto, ser a condição que possibilita a dignidade das pessoas e o fator que promove um tratamento geralmente igualitário na sociedade cujo desenvolvimento e bem-estar procura. É a partir do trabalho que podemos tentar remover as desigualdades presentes nas nossas sociedades, razão pela qual é também o fundamento político das opções constitucionais pela democratização das relações de poder, públicas e privadas, que nela estão presentes e que devem ser modificadas, niveladas, neutralizadas coletiva e individualmente.
O direito ao trabalho está indissoluvelmente ligado à proteção legal e convencional do trabalho, ao reconhecimento dos direitos coletivos e individuais derivados da prestação do trabalho. Isso significa que o direito ao trabalho está diretamente comprometido com a existência de uma legislação trabalhista que garanta direitos que estão na base da cidadania. Trabalho digno ou trabalho decente que pressupõe segurança e estabilidade na existência e capacidade de autoconsciência individual e coletiva para a conquista progressiva de melhorias na qualidade de vida e na conformação de uma sociedade mais justa e igualitária. O direito ao trabalho é a condição para o exercício de outros direitos fundamentais no ambiente de trabalho. O direito ao trabalho exige um trabalho de qualidade, opõe-se materialmente à degradação do emprego através da instalação da precariedade como forma permanente e cotidiana de inserção de sujeitos fragilizados e grupos vulneráveis. A crise de 2008-2012 e as políticas de austeridade impostas pelas reformas trabalhistas da época transtornaram alguns desses referenciais pela re-mercantilização do trabalho e sua consideração exclusiva como liberdade econômica, já associada ao mercado e à livre iniciativa. Ao contrário, o direito ao trabalho requer um quadro institucional para a defesa dos seus aspectos coletivos e individuais em que a regulação estatal e a ação dos sindicatos tenham um papel decisivo na obtenção de sua vigência. Um trabalho estável e bem remunerado que permite a quem vive dele alcançar os elementos básicos que sustentam uma existência segura, culturalmente rica, socialmente favorável e economicamente suficiente.
O direito ao trabalho é, portanto, um direito básico, mas ao mesmo tempo um direito atípico, porque em um sistema de livre iniciativa o Estado nunca pode garanti-lo no concreto. Não por isso é um direito sem garantia, que se dissolva nas políticas que os governos surgidos do jogo de maiorias parlamentares podem pôr em prática para organizar o sistema de emprego de um país. Em outras palavras, o direito ao trabalho não encontra sua vigência condicionada pela política de emprego. Tem um conteúdo laboral próprio que remete às garantias de direito daqueles que de fato o exercem, e que se centra fundamentalmente nos limites que a lei e o acordo coletivo impõem ao poder do empregador de rescindir unilateralmente o contrato, o seu poder de despedir. Todas as constituições europeias e cartas dos direitos estão preocupadas em declarar este direito fundamental à proteção contra a demissão ilícita ou injustificada. Um sistema equilibrado de proteções que pode ir desde a anulação total do ato do empregador por violação de direitos fundamentais ou envolvendo ato discriminatório, até a indenização pela perda do emprego sem justa causa e de forma inadequada. O alcance da extensão da proteção contra a demissão sem justa causa é um dos pontos em que se centra boa parte do atual debate ideológico e político, sem que, na maioria das vezes, torne-se explícita a importância da função dissuasiva ou restauradora das técnicas utilizadas como uma consideração necessária da real eficácia da proteção do direito ao trabalho, nem interprete-se esses limites ao poder rescisório empresarial como uma expressão de um propósito de nivelação entre as demandas organizacionais da empresa e a proteção do trabalhador demitido injustamente, que viu seu direito ao trabalho ferido diretamente.
A hermenêutica da atual crise da Covid-19 tem sido consistente com o mandato constitucional e com o sentido do direito ao trabalho. Baseia-se no princípio da manutenção do emprego, que se materializa na importância dos mecanismos de ajuste temporário à atividade para evitar demissões, mas também nas regras que consideram que carecem de motivação as demissões relacionadas com qualquer uma das causas econômicas e técnicas, organizacional ou produtiva ou de força maior derivada da dificuldade de continuidade da atividade devido à pandemia, ou do compromisso de não demitir nos seis meses imediatamente posteriores ao reingresso do ERTE [2]. A proposta de reforçar a causalidade da contratação temporária e da nova doutrina do Supremo Tribunal Federal, que desvincula o contrato de trabalho ou serviço da vigência estabelecida, também é funcional para a preservação do direito ao trabalho, visto que está patente no seu sentido constitucional. Por isso, é importante manter essa mesma abordagem como critério relevante no momento de avaliação dos fins e meios na execução do Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência, sem segregar este critério do discurso tradicional sobre investimento, sustentabilidade, mudança de modelo de produção e gestão público-privada dos Fundos. Algo que certamente deve ser lembrado quando eles começarem a ser desenvolvidos.
Notas do tradutor
[1] No original, Plan de recuperación, transformación y resiliencia, projeto do atual governo espanhol para modernização da economia, recuperação do crescimento econômico e criação de empregos frente a crise gerada pela pandemia. Maiores informações podem ser acessadas aqui. A referida RDL 36/2020 normatiza a execução deste plano e pode ser encontrada aqui. [2] ERTE refere-se a Expediente de Regulación de Empleo Temporal. É um procedimento utilizado por empresas, em uma situação excepcional, para obter autorização para a demissão de trabalhadores, suspensão de contratos de trabalho ou redução de jornadas de modo temporário, quando atravessam por dificuldades técnicas e que coloquem em risco a continuidade da empresa.Antonio Baylos é doutor em Direito pela Universidad Complutense de Madrid, professor catedrático de Direito do Trabalho e diretor do Centro Europeu e Latinoamericano para o Dialogo Social (CELDS) da Universidade de Castilla-La Mancha.