Nas eleições, o futuro de milhões de brasileiros que trabalham por plataformas está em jogo

A regulação do trabalho em plataformas carrega em si a visão de futuro do trabalho que nossa sociedade deseja: uma que coloca o trabalhador em regimes precarizados ou aquela que assegura condições justas para uma vida digna.

Jonas Valente e Julice Salvagni

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 29/09/2022

Em projetos de governo notoriamente distintos, o povo também deverá decidir sobre o futuro de milhões de trabalhadores que dependem de plataformas digitais. Essas empresas estão em ascensão em diferentes segmentos como é o caso do transporte privado (Uber, 99), entregas (iFood, James, Rappi), serviços gerais (GetNinjas, Helpie) e cuidado (Parafuzo), entre tantas outras. Ainda que pretendam compor o ‘livre mercado’, essas corporações têm assumido ares monopolistas, sobretudo no Brasil, ditando as regras sobre como consumir e trabalhar, sem qualquer efetiva iniciativa legal para limitar seus poderes.

É importante contextualizar que o país chega ao pleito após uma devastadora pandemia e em meio a uma crise social, econômica e política. O atual governo adotou um viés ultraliberal na economia, ampliando as já abissais desigualdades sociais. No âmbito dos costumes, vê-se uma postura autoritária, que produz opressões de classe, gênero, raça e orientação sexual. Na condução da pandemia da covid-19, além de ter capitaneado uma postura negacionista e omissa, há suspeitas do envolvimento do governo federal em negociações de propina para compra da vacina. Colecionando declarações despóticas, Bolsonaro representa, inclusive, uma ameaça à democracia. Além de todo esse quadro, a descontinuidade do Ministério do Trabalho (que depois foi revista) já sinalizava que esse governo seria propositalmente inepto diante da demanda por emprego, já que é alinhado a um projeto de aprofundamento da precarização do mercado de trabalho.

Os efeitos dessas políticas (e também da gestão anterior)  são sentidos pela classe trabalhadora. Sob o mote “escolher entre mais direitos ou emprego”, a gestão do capitão-genocida promoveu uma duríssima Reforma da Previdência e enviou diversas Medidas Provisórias para uma nova reforma trabalhista que aprofundasse a insegurança do emprego daquela aprovada em 2017, sob a gestão de Michel Temer. Privilegiando grandes empresários, flexibilizando direitos e desmontando políticas sociais, a renda média do trabalhador caiu ao menor nível desde 2012, com 33 milhões de brasileiros vivendo com fome e quase 60% com insegurança alimentar em diversos níveis

Neste cenário, o trabalho em plataformas digitais (os populares “aplicativos”) foi oferecido como uma alternativa. Com altos índices de desemprego, um país já marcado historicamente pela informalidade e pela pobreza, torna-se terreno fértil para a expansão das plataformas de trabalho. Sendo a única fonte de renda ou para a complementação do salário  em meio à perda do poder de compra por conta da inflação, essas empresas foram cooptando trabalhadores na posição de desresponsabilizadas intermediadoras. Este fenômeno foi amplificado pela pandemia, quando essa modalidade virou a única saída para muitas pessoas em atividades que também cresceram neste período, de entregas a freelancers online.

Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), havia em 2022 1,5 milhão de trabalhadores em plataformas no setor de transporte, sendo 61,2% como motoristas e ou taxistas, 20,9% como entregadores e 14,4% como mototaxistas. Outro levantamento, da Universidade Federal do Paraná, identificou patamar semelhante de trabalhadores em plataformas no país em 2021.

Esses arranjos laborais são marcados por modelos sob demanda extremamente precarizados, promovendo o mascaramento ou desconstituição do vínculo trabalhista. Em muitos casos, embora os trabalhadores estejam submetidos a relações de emprego, essas não são reconhecidas enquanto tal, sofrendo com a falta de direitos trabalhistas. Essa situação vem ensejando processos na Justiça com decisões reconhecendo o vínculo trabalhista de pessoas em plataformas como Uber e  iFood. De todo modo, a judicialização de casos específicos, enquanto um encaminhamento individual, está longe de solucionar essa agrura social. 

Sem vínculo, trabalhadores ficam reféns de modelos de remuneração baixa e sem transparência, muitas vezes tendo que trabalhar muito acima da jornada normal de 44 horas para obter uma remuneração básica, em média 65 horas por semana.

Segundo o relatório de 2021 do projeto Fairwork, coordenado pela Universidade de Oxford e pela Universidade de São Paulo no Brasil, a maioria das plataformas não conseguiu comprovar que a remuneração dos trabalhadores é, pelo menos, de um salário mínimo, ou seja, de R$5,50 por hora. Em uma escala de 0 a 10 de parâmetros básicos que deveriam ser assegurados a trabalhadores, das seis plataformas avaliadas, duas receberam dois (iFood e 99), uma obteve um (Uber) e três não conseguiram nenhum ponto. Isso significa que o trabalhador e a trabalhadora por plataforma no Brasil está jogado/a à própria sorte, sem proteção alguma.

As plataformas foram examinadas em uma escala de princípios que aferiu aspectos como parâmetros mínimos de pagamento, condições, contratos, gestão e representação. Entre os aspectos analisados estavam a garantia de pagamento de pelo menos o salário mínimo, de medidas de proteção contra riscos à saúde e segurança, de níveis adequados de proteção de dados, de contratos claros e transparentes, de canais de diálogo e resolução de problemas e do reconhecimento e respeito às associações de trabalhadores. As notas do relatório brasileiro ficaram entre as mais baixas do projeto, que avalia plataformas digitais em mais de 30 países no mundo.

Investigação realizada por pesquisadores das Universidades de Brasília e Federal da Paraíba, apoiada pela Organização Internacional do Trabalho e pela Central Única dos Trabalhadores, identificou que há trabalhadores até pagando para trabalhar, já que a renda obtida é menor do que os custos do trabalho.

Dada essa conjuntura insustentável, mobilizações e paralisações, frutos da organização coletiva, foram percebidas nos últimos anos. Os “breques” se tornaram comuns, pressionando as empresas a garantirem condições básicas e denunciando suas péssimas realidades de trabalho para a sociedade. Contudo, reportagem da Agência Pública publicada em abril de 2022 mostrou como o iFood contratou empresas de publicidade para atacar lideranças e organizações de trabalhadores e desacreditar as mobilizações por melhores condições de trabalho Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi aberta na Câmara de Vereadores em São Paulo para investigar irregularidades e problemas nessas empresas.

Os problemas evidentes no trabalho em plataformas ensejaram diversos projetos de Lei no Congresso Nacional. Durante a pandemia, ganhou força a movimentação para que estes trabalhadores tivessem condições mínimas de proteção diante da ameaça da covid-19. Tal esforço resultou na aprovação da Lei 14.297 de 2022, que obrigou empresas a contratarem seguro aos trabalhadores durante o período de emergência sanitária, que foi revogado ainda no primeiro semestre do ano. Ademais, é válido destacar que Bolsonaro vetou a obrigação das empresas em fornecerem alimentação aos trabalhadores.

Representando o lado patronal, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) divulgou uma “carta de princípios” para proteção social de trabalhadores, com uma proposta de inclusão previdenciária em que valores seriam recolhidos por essas plataformas. Segundo este documento, os trabalhadores seriam enquadrados como uma categoria especial e não como, efetivamente, trabalhadores, violando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Tal proposta toma um rumo altamente perigoso: sob a roupagem de um tema importante (que é a inclusão previdenciária), busca-se institucionalizá-los como autônomos, retirando assim o risco de ações na Justiça. Além de não ensejar uma inclusão plena, com uma contribuição efetiva por parte das empresas para a Previdência, tem-se aqui um tom arrecadatório, por um lado, e uma responsabilização do Estado enquanto provedor da proteção a esses trabalhadores em temas como auxílio-doença, por outro.  

Plataformas na campanha eleitoral

Em meio ao crescimento do reconhecimento da urgência da regulação do trabalho em plataformas digitais, as principais campanhas apontam para caminhos totalmente diferentes. Tendo lema semelhante a grupos fascistas (deus, pátria, família e liberdade), as Diretrizes do Plano de Governo do candidato Jair Bolsonaro defendem “prosseguir nos avanços da legislação trabalhista para facilitar as contratações, desburocratizar e desregular as normas para favorecer a criação de empresas e o empreendedorismo”.

O documento apresenta uma visão ultraliberal do Estado. Refere-se: “É, portanto, fundamental retirar da população o peso do Estado de seus ombros e deixar cada cidadão, com o apoio necessário do governo, exercitar sua criatividade, sua capacidade gerencial, sua visão empresarial e sua liberdade para escolher como vai prover sua existência”. Ao trabalhador, nestes termos, resta aceitar os ditames do mercado. No caso das plataformas digitais, caberia ao cidadão aceitar diferentes modelos de uma precarização crescente, que é reflexo da desconstituição dos frágeis direitos adquiridos nas últimas décadas pela classe trabalhadora. O texto menciona, ainda, medidas para formalização por meio de “alternativas contratuais inteligentes”, em uma indicação da flexibilização da proteção existente na legislação trabalhista.

Em outra perspectiva, a candidatura de Lula critica os efeitos flexibilizantes da reforma trabalhista de 2017 e defende uma revisão da legislação de modo a recuperar direitos, mas sem detalhar o conteúdo de uma possível nova reforma. Para o trabalho em plataformas, o candidato à presidência vem demonstrando clareza acerca da complexidade do problema, Em suas declarações recentes dirigidas aos trabalhadores das plataformas, ele descreve as cenas de insegurança, desproteção e vulnerabilidade que afetam a rotina dos que foram suprimidos dos seus direitos. Ou seja, esse é o lado do reconhecimento da necessidade de regulação do trabalho em plataforma em prol da promoção de condições justas de trabalho.

Nas suas falas, Lula não detalha o que pretende fazer, mas assegura que promoverá um grande debate reunindo trabalhadores, empresas e pesquisadores para uma nova regulação do tema, citando como exemplo o caso da Espanha. Em eventos de campanha, o petista mencionou a importância do fomento de plataformas de caráter colaborativo (cooperativas), apoiadas por governos ou entes públicos.

“O que nós temos de experiência é que, depois do que foi feito neste país do desmonte da legislação trabalhista e da previdência, o que temos de novo são as empresas de aplicativos. […] Aí é que entra a história que aconteceu em Araraquara”. Ainda que o caso de Araraquara seja controverso pelo fato operar até o momento por meio de uma franquia, trata-se de modelo autogestionário, subsidiado por uma prefeitura, que pode vir a inspirar futuras iniciativas do cooperativismo de plataforma.

Caminhos

Se o tema do trabalho em plataformas se impõe como uma agenda de políticas públicas, os caminhos são diversos. Empresas pressionam por um modelo que retire custos e riscos de serem processadas na Justiça, buscando institucionalizar um modelo que reduza os direitos dos trabalhadores. Já trabalhadores e pesquisadores, como é o caso do projeto Fairwork, ressaltam a necessidade da regulação desses agentes para assegurar os direitos dos trabalhadores.

Nas principais candidaturas à presidência da República, as visões de Estado e política econômica diferem radicalmente. Com ameaças golpistas constantes por parte de Jair Bolsonaro, as suas falas, propostas e ações costumam ser alijadas de qualquer teor democrático. No que tange aos direitos trabalhistas, há na extrema-direita brasileira a disseminação de uma ideologia de autorresponsabilização. Com uma notória intencionalidade de distorção, discursos do “empreendedor de si” são direcionados especialmente aos motoristas das plataformas, sinalizando que eles devem abdicar dos seus direitos enquanto classe trabalhadora.

O candidato do PT, pelo contrário, forma-se politicamente no movimento sindical, carregando consigo a luta operária. Espera-se o reconhecimento da urgente agenda de garantia dos direitos dos trabalhadores em plataforma. Contudo, as amarras institucionais da conjuntura política brasileira são desafiadoras. Tal aspecto leva a crer que,  mesmo no caso de uma eventual vitória da candidatura Lula, a agenda da regulação em plataformas deverá ensejar duros embates entre os agentes políticos.

Neste tema reside parte importante do futuro do trabalho no Brasil. Sendo um modelo que cresce não só no país como no mundo, a regulação desses arranjos laborais não pode significar a criação de novos modelos flexíveis. Ao contrário, o debate da regulamentação deve reconhecer as proteções existentes e ampliá-las para novos desafios próprios dessas relações. Com isso, deve ser prevista a proteção de dados e a limitação de práticas de vigilância, a transparência de regras e de sistemas automatizados (como algoritmos e inteligência artificial), a garantia de medidas de saúde e segurança e o provimento de meios e processos claros de diálogo e recurso contra decisões acerca do trabalho.  

Para além de um necessário debate regulatório, são necessárias políticas públicas que incentivem o cooperativismo de plataforma e iniciativas apoiadas pelo Estado, como algumas experiências em municípios já vêm sinalizando. Propostas neste sentido foram materializadas em uma carta entregue ao candidato Lula por diversas organizações. Novos arranjos, não calcados na precarização e forte exploração mas em modelos autogestionários e baseados em tecnologias livres, podem ser uma alternativa digna para trabalhadores que atuam por meio de plataformas digitais.

Na escolha do novo presidente da República e dos representantes na Câmara e Senado reside o futuro de milhões de trabalhadores que não podem mais ficar jogados à própria sorte em atividades com nenhum ou mínimos direitos. Mais do que apenas uma questão deste já representativo grupo, a regulação do trabalho em plataformas carrega em si a visão de futuro do trabalho que nossa sociedade deseja: uma que coloca o trabalhador em regimes precarizados ou aquela que assegura condições justas para uma vida digna. 

Jonas Valente é jornalista e pesquisador sobre tecnologias digitais e trabalho, pesquisador do Instituto de Internet de Oxford no projeto Fairwork.

Julice Salvagni é professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS. É uma das coordenadoras do Fairwork Brasil.

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