“Vamos ter que fazer mesas de entendimento, mostrar que o vale tudo acabou, que existe legislação trabalhista, e que vamos ter que recuperar uma série de direitos”, destaca o novo superintendente regional do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no Rio Grande do Sul, Claudir Nespolo.
Metalúrgico de longa trajetória no sindicalismo, ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores do RS (CUT-RS), ao assumir o cargo ele afirmou que ocupar o posto “representa somar no esforço extraordinário de recuperação e transformação do Brasil a partir das relações de trabalho”.
O Brasil de Fato RS conversou com Nespolo sobre os novos desafios, os 80 anos da CLT e o desmonte sofrido pelas leis trabalhistas nos mandatos Temer e Bolsonaro e a importância da luta sindical no século 21. “Enquanto tiver formas altamente exploratórias no ambiente de trabalho, o sindicato vai continuar existindo”, garante.
Abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato RS – No 1º de Maio, a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, completou 80 anos. Como avalia essas oito décadas?
Claudir Nespolo – A CLT foi uma extraordinária conquista porque, nos anos 1940, ela concentrou numa única legislação um conjunto de leis que já haviam. E essas leis foram resultantes de lutas da classe trabalhadora no final do século 19 e no início do século 20.
Getúlio Vargas, agrupando essa legislação, juntou o que existia em convenções coletivas, acordos coletivos e na legislação, e transformou em direitos universais, para toda aquela classe trabalhadora incipiente ainda dos anos 1980. Então, o grande legado foi esse: agrupar e transformar em direitos de toda a classe.
BdFRS – As relações trabalhistas estão passando por uma nova transformação, exigindo a adaptação das leis. O que precisa ser aperfeiçoado?
Claudir – A CLT partiu de um conjunto de leis muito restritas ainda e a evolução da luta dos trabalhadores foi permanente. Ao longo dos anos ela foi, obviamente, incorporando mais situações ocorridas no mundo do trabalho. Haja visto que, nos anos 1960, por exemplo, foi incluído o 13º.salário. Nos anos 1980, foi incluído um terço de férias, e um conjunto de outros direitos advindos do processo do debate da Constituição. Mais recentemente, em 2014, foi incluído o direito ao trabalho doméstico, o trabalhador doméstico fazendo parte da CLT, os direitos trabalhistas da CLT estendidos aos trabalhadores domésticos.
A CLT veio se adaptando, aperfeiçoando, ao sabor, obviamente, das lutas e dos legisladores em cada época, e assim ela seguiu sua trajetória de agrupar, incorporar, e transformar direito universal.
BdFRS – Depois da devastação da CLT, como abrigar os trabalhadores informais dentro de uma legislação protetora dos seus direitos? Como garantir direitos básicos para eles?
Claudir – Esta conversa de setores empresariais da grande imprensa de ficar combatendo a CLT é uma história antiga. Mas é uma história mais ideológica do que de efeito prático.
Mas eles não podem reclamar porque a CLT foi absorvendo mudanças inclusive para reduzir direitos. Olha o que foi a grande mudança feita na CLT na década de 1980, também início dos anos 1990, onde incluiu a terceirização. O reconhecimento da terceirização – de que não havia previsão legal – permitiu terceirizar as atividades meio, as atividades de apoio, ficando efetivamente como empregos diretamente vinculados à empresa as atividades fins.
No caso de uma fábrica, por exemplo, passou a se admitir que trabalhador da limpeza, vigilância, transporte, manutenção, da área da jardinagem, pudesse ser contratado de empresas fornecedoras de mão-de-obra. Foi um retrocesso para os trabalhadores e foi incorporado na CLT. Foi incorporado nesse movimento também de redução de direitos, mas veio para ficar. Essa discussão é de caráter ideológico. Sempre existiu e sempre vai existir.
BdFRS – Historicamente, os patrões e seus porta vozes dizem que a CLT é arcaica. A CLT não serve mais?
Claudir – Houve uma profunda mudança na legislação trabalhista, em 2017, por ocasião do golpe contra a presidenta Dilma. Logo na sequência, aproveitaram a oportunidade e mexeram em 117 direitos. Reduziram, parcelaram, fragmentaram. Mas eles tiveram problemas. Foi muito importante a Constituição de 1988 ter transformado em direito trabalhista constitucional, 34 direitos fundamentais, entre eles férias de 30 dias, um terço de férias. São direitos previstos na Constituição, portanto não tem como retirá-los com maioria simples no Congresso.
Eles criaram uma insegurança jurídica geral, tanto que muitos empregadores estão usando dispositivos aprovados na reforma da CLT, que foi a reforma trabalhista de 2017, e não estão se dando bem. Porque ali abriu-se a possibilidade de vincular como MEI (Micro Empreendedor Individual), vincular terceirização na atividade fim também.
O emprego intermitente, restringiu o acesso a justiça do trabalho, atacou os sindicatos, na medida que cerceou a contribuição, não só o imposto sindical. Mas também as contribuições decididas democraticamente em assembleias. De modo que esse vale tudo instalado nas relações trabalhistas agora está se vendo que não é bem assim. Tanto que quem está exercendo no limite essas formas precárias de vinculação, está pagando caro.
É verdade que o advento da tecnologia 4G permitiu o trabalho em aplicativo. O trabalho em aplicativo hoje é o maior empregador, tanto no Rio Grande do Sul, como no Brasil e no mundo. Expande-se para além do transporte de pessoas e de entrega de mercadorias, Está nas manutenções mecânicas, manutenções prediais, na sala de aula…O debate está em curso. O presidente Lula corretamente implantou um grupo de trabalho. Está iniciando um debate para regulamentar esta área. Criar um piso de direitos.
Não é possível um trabalhador trabalhar 15 ou 16 horas por dia e ser visto como um parceiro, como um contrato civil. Está errado. E vamos provar. O Ministério do Trabalho está trabalhando para provar que são trabalhadores que tem subordinação. Afinal de contas, a premissa que o trabalho seria uma parceria. Não, ele (o trabalhador de aplicativos) não tem nenhuma gerência sobre o valor. É estipulado pela plataforma. Temos que avançar com os direitos trabalhistas para esse trabalhador. E serão todos os direitos da CLT. Serão parte? Serão direitos básicos? Não faço a mínima ideia. Mas (o trabalhador) vai migrar para um ambiente de direitos. Não dá para admitir trabalho escravo.
BdFRS – Durante as eleições, o então candidato Lula criticou duramente os retrocessos impostos pela reforma trabalhista. Em carta compromisso lançada antes do segundo turno, falou em “construir uma nova legislação trabalhista”. No que tange à fiscalização do trabalho, a reforma vai deixar algum saldo positivo ou precisamos primeiro revogar a reforma?
Claudir – Esse assunto de revogar a reforma trabalhista de 2017, se teria um revogaço ou se não teria um revogaço… O presidente Lula tem uma visão corretíssima de que precisamos negociar a eliminação dos retrocessos. Não tem ambiente legislativo para fazer o revogaço. Se fizer o revogaço através de uma medida provisória, logo na sequência esse Congresso restabelece tudo normalmente. Acabou a medida provisória, volta tudo ao normal.
Vamos ter que fazer mesas de entendimento. Mostrar que o vale tudo acabou, que tem legislação trabalhista e que vamos ter que recuperar uma série de direitos. Como o trabalho na atividade fim ser executado só por trabalhadores efetivamente contratados. Como o acesso à justiça do trabalho, que não pode ser punitiva ao trabalhador, tem que ser livre. Como a manutenção dos sindicatos. Não dá para o Estado intervir em contribuições decididas democraticamente no âmbito de uma assembleia onde todos usufruem de uma convenção coletiva. Onde amplia-se direitos para além da CLT, consegue-se uma correção salarial muitas vezes acima da inflação. Ninguém paga para isso e, no ano seguinte, pode não ter sindicato, não tem mais reajuste, não tem mais aumento.
O legado de Lula nessa área vai ser retomar, portanto, um arcabouço também trabalhista de forma que retroaja nos retrocessos que eles fizeram e volte a firmar direitos. E o Ministério do Trabalho tem o papel de buscar as mesas de concertação. Tudo que chegar no Congresso Nacional pactuado entre as partes – empresários, trabalhadores e governo – tem mais chance de ser aprovado nesse Congresso, de ampla maioria contra os trabalhadores.
O Ministério do Trabalho tem instrumentos, o tal do braço forte do Estado, que pode entrar numa empresa e dar uma verificada nas condições de trabalho. O Ministério está sendo direcionado não para ser um algoz, mas um elemento determinante através da sua inspeção do trabalho. De provar que formas análogas ao trabalho escravo não são corretas, estão fora da lei. E a razão é contratar e pagar corretamente o trabalhador e não buscar a burla. Um país sério tem um colchão, um piso de direitos consolidados.
BdFRS – Também se falou durante a campanha sobre as mudanças no mundo do trabalho, impostas pela tecnologia. Com respeito à fiscalização e à proteção do trabalho, quais são essas mudanças e quais novas necessidades existem hoje?
Claudir – A presença e o papel da tecnologia no mundo do trabalho é permanente. Desde o início da transformação da humanidade, do aceleramento causado pela invenção da máquina a vapor, depois o motor à explosão, as grandes mudanças são permanentes.
A gente sabe o que impactou no mundo do trabalho a chegada da tecnologia 4G em 2014. Permitiu os aplicativos, o trabalho por plataforma. Permitiu fazer reuniões virtuais, mandar um filme de um celular para outro, fazer um vídeo, saudar um aniversário, fazer uma festa virtual, enfim. Essa coisa está sendo toda ela aproveitada também pelo ambiente de trabalho. Com o teletrabalho não é preciso sair da sua casa.
Obviamente que essa transformação vai ser acelerada no próximo período com a chegada da tecnologia 5G que está em fase de implantação. E essa tecnologia vai permitir muitas formas de trabalho, cada vez mais eliminando a presença do trabalho humano, a inteligência artificial vai assumindo mais papel. É a mesma história de lá no início quando as primeiras máquinas ao longo do tempo foram incorporando o conhecimento do trabalhador.
O mundo do trabalho, para frente, é um mundo desafiador. Mas vai conviver com formas com tecnologias de ponta, enquanto grandes setores vão continuar trabalhando ainda com formas de trabalho oriundas da segunda revolução industrial. A inovação não é estanque, não é horizontal, que acontece de uma hora para outra e para todos. Tem aí uma transição que tem que ser cuidada. Regular as novas formas de trabalho para que não haja trabalho escravo, nem trabalho análogo a escravidão, portanto trabalho com dignidade também.
Também precisamos garantir redução de jornada de trabalho. Para que mais gente possa trabalhar, o que é uma tendência irreversível no mundo. É um grande desafio para as centrais sindicais e as entidades empresariais. O mercado de consumo é feito com salário circulando. Se simplesmente fores reduzindo o salário ou achatando como fizeram nos últimos sete anos, comprometes a soberania e o futuro do país, o que é ruim para os negócios também.
BdFRS – Quais serão as prioridades da Superintendência do Ministério do Trabalho no estado?
Claudir – O Ministério, nessa nova fase pós-eleição do Lula, tem algumas missões muito bem resolvidas. O ministro (Luiz) Marinho tem orientado que as superintendências regionais cuidem muito do tema das mesas de diálogo. Estabelecer pactuações para ir provando que não vale tudo nas relações de trabalho.
Temos aqui um grande desafio, porque houve esses episódios que nos chocaram, do trabalho análogo à escravidão na cadeia produtiva da uva e do vinho e do arroz. Na década anterior era na (colheita da) maçã. Depois de muita pactuação, muita luta – sempre vem 20 mil safristas colher maçã – já tem normas que permitem dignidade no trabalho safrista. Na cadeia do vinho, do arroz, e nas outras cadeias produtivas que requerem trabalho sazonal, que é o trabalho safrista, temos a prioridade de construir mesas de entendimento, pactuar ambiente de trabalho decente. Portanto assinando protocolos, estimulando cláusulas de convenções coletivas que aumentem a fiscalização, a vigilância. Quem toma mão-de-obra terceirizada também é responsável por ela. Se não cuidar direitinho pode pagar muito, custar mais caro do que contratar diretamente. Tem que aumentar o nível de responsabilidade nesta área.
Estamos fortalecendo, como uma segunda ação estratégica, as mediações. Os sindicatos fazem a primeira tentativa de ajuste quando tem um problema. Falhando, tem o espaço da mediação do Ministério do Trabalho para tentar buscar uma pactuação a respeito do conflito existente, tanto coletivo como individual. E depois, se não resultar em efeito prático, ainda resta a Justiça do Trabalho como último recurso.
E essa Justiça também está sendo atacada. Tem um grupo de deputados aloprados que estão pedindo o fim da Justiça do Trabalho e o fim do Ministério Público do Trabalho. É o mesmo pessoal que, lá atrás, encaminhou a reforma trabalhista e tentou acabar com os sindicatos, o que não conseguiu.
Enquanto tiver formas altamente exploratórias no ambiente de trabalho, o sindicato vai continuar existindo. Não tem como não existir. O trabalhador vai ver formas e vai manter sindicatos. O governo Lula é um governo de aumentar direitos e não de reduzir. Aumentar a dignidade. Estamos, ainda, instalando o conselho sindical consultivo, que haverá em nível nacional também. Estamos nos antecipando aqui no Rio Grande. O conselho sindical consultivo é um espaço com as centrais sindicais e as federações de trabalhadores no primeiro momento. E num segundo momento, com as federações empresariais para irmos debatendo assuntos relacionados ao mundo do trabalho. Buscando entendimentos no sentido de fortalecer o trabalho decente, o fim do trabalho análogo a escravidão, e pavimentando um caminho para que o ambiente de trabalho seja portador de futuro e não de sofrimento.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Fabiana Reinholz
Data original da publicação: 20/04/2023