Cesar Zucatti Pritsch, Fernanda Antunes Marques Junqueira e Ney Maranhão
Fonte: Conjur
Data original da publicação: 15/07/2019
“Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e, eventualmente, todos acreditarão nela.” A frase, que remonta ao século XX, ao tempo da Alemanha nazista e atribuída a Hitler, ainda é bastante atual e retrata, ao fim e ao cabo, aqui e acolá, uma acerba realidade.
Por aqui, persiste a ideia de que cumpre proceder a uma urgente implosão do marco regulatório tuitivo trabalhista, apontado como uma das principais causas — ou, então, como muitos discursam, a causa principal — da miríade de agruras que contamina o país.
O discurso não é novo, mas se recicla a cada crise instalada, como foi o caso com a recém-aprovada Lei 13.467/2017 — propagada como imprescindível para a pronta criação de mais postos de trabalho, mas, quase 20 meses após o início de sua vigência, trouxe apenas a precarização de direitos trabalhistas, e não o prometido incremento da empregabilidade.
Para dar atenção a essa ilusão normativa, anos de amadurecimento jurisprudencial, semeados diuturnamente sob a luz da Constituição Federal, foram ceifados a uma só penada. Por exemplo, onde se enxergou que o tempo de trajeto deveria ser computado na jornada de trabalho, em locais ermos e de difícil acesso, não servido por transporte público, a lei sinalizou o contrário. Quando se atribuía às parcelas natureza jurídica salarial, a lei liberalizou uma artificial identificação indenizatória, legalizando a sonegação das contribuições previdenciárias incidentes. A precarização do emprego ganhou nova dimensão e extensão, com a introdução dos contratos flexíveis, a exemplo do contrato de trabalho intermitente. Se o discurso dos defensores do referido marco trabalhista era fomentar a empregabilidade, a realidade se mostrou avessa aos seus propósitos de imediato refreamento dos alarmantes índices de desemprego.
A partir dessa diagnose, agora a fórmula encontrada é, novamente, debruçar toda a atenção a novos métodos desregulamentadores, renovando a falácia de que o aniquilamento do tecido normativo trabalhista seja a solução mágica e rápida para alavancar a economia nacional. Nesse clima, surge a MP 881/2019, intitulada como a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, um enredo que, repetido inúmeras vezes por diversos segmentos do mercado econômico e disseminado pelos meios de comunicação em massa, toma as vestes de retidão e verdade. Em nome da empregabilidade, a reificação do ser humano. O Estado girando em torno da pessoa jurídica e secundarizando a pessoa humana. Propagam a intervenção estatal mínima mediante incisiva redução da intervenção estatal regulatória e deslegitimação do Poder Judiciário trabalhista, porque supostamente “paternalista ao extremo”, descompromissado com a pauta ultraliberal do momento histórico vivenciado.
Na linha da epigrafada medida provisória, em vias de ser convertida em lei, para os trabalhadores com complexo remuneratório superior a 30 salários mínimos, a CLT não mais lhes socorrerá. Relegar-se-á ao Direito Civil e a um proclamado e frio pacta sunt servanda, como se o valor nominal da globalidade salarial colocasse o trabalhador em posição de igual poder de negociação perante o capital. Ledo engano. Maior o complexo remuneratório, ainda que mais rarefeita a subordinação, na mesma ou em maior proporção é a dependência econômica. Incorre-se, aqui, no perigo de retrocedermos a um estado jurídico de coisas que volta a se centrar na pessoa meramente abstrata, de existência ideal, quando o Direito do Trabalho já havia nos ensinado que o homem, especialmente o homem trabalhador, deve ser visto de forma realista em suas relações jurídicas “como um ser vivo, concreto, cuya existencia real se plantea”[1]
Ademais, acordos coletivos e negociações coletivas de trabalho que impeçam o exercício de atividade remunerada aos sábados, domingos e feriados serão, pela MP 881/2019, ineficazes. Logo, a norma coletiva valerá in pejus, para reduzir direitos trabalhistas abaixo do nível da lei, mas não in melius, para permitir que os atores coletivos livremente negociem a ausência de trabalho em fins de semana e feriados. Estaria tal projeto de lei se propondo a revogar a prevalência do negociado sobre o legislado, tão presente na Lei 13.467/2017?
Por outro ângulo, analisando-se a finalidade material da regra proposta, supostamente a justificativa para a mudança se concentra no discurso de redução do número de desempregados. Seria mesmo essa a lógica? Afinal, nos países escandinavos, por exemplo, a empregabilidade vem acompanhada da redução da jornada de trabalho, e não de seu elastecimento. A jornada semanal da Suécia, aliás, foi reduzida para 40 horas semanais, com possibilidade de se chegar a 30 horas (ainda em discussão), justamente para se garantir e fomentar a maior inserção de trabalhadores no mercado econômico. Mas, em terras tupiniquins, mais vale a aparência que a essência. Aumenta-se a jornada de trabalho e, simultaneamente, os riscos à higidez física e psíquica do trabalhador, sendo uma das múltiplas causas dos infortúnios trabalhistas, pela perda de capacidade responsiva motora rápida associada à fadiga do corpo e da mente. É o trabalho mercantilizado, monetizado, reificado, desumanizado.
A fragilização das proteções justrabalhistas propostas na MP 881/2019 não para por aí. Tornam-se, facultativas as comissões internas de prevenção de acidentes em determinados setores empresariais (empresas com menos de 20 empregados e microempresas), isso à revelia de seus níveis oficiais de acidentalidade. Facultativas, modo de dizer. Serão extintas, tal como a opção — que nunca existiu — do regime do FGTS. De seu lado, abre-se permissivo para anotação da jornada de trabalho por exceção, prática essa contestada pelo Direito do Trabalho, não só pela possibilidade de manipulações e fraudes, mas, sobretudo, porque fere os princípios da transparência e da lealdade, sonegando ao trabalhador o direito de conhecer, de modo fidedigno, os horários de atividade, com registro de seu início, término e tempos intervalares.
Ainda mais grave proposta é retirar-se a marca da solidariedade que sempre acompanhou a figura do grupo econômico, cujo lastro axiológico consiste na ampliação das garantias de solvabilidade dos créditos trabalhistas, de índole essencialmente alimentar. Para dar asas ao empreendedorismo, há que se acirrar a desproteção da outra face da mesma moeda, o trabalhador. Assim, em um país onde, na primeira dificuldade financeira, muitos empresários requerem a chamada recuperação judicial para blindar seu patrimônio contra credores (dadas as conhecidas fragilidades e morosidade de tal sistema), os credores trabalhistas passarão a ter grande dificuldade para buscar pagamento junto a outras empresas do grupo econômico, dado o condicionamento da responsabilização solidária à difícil prova de fraude ou confusão patrimonial. Na mesma toada, muito mais difícil ficará a cobrança junto a sócios, condicionada esta à comprovação de fraude, desvio de finalidade abusivo ou confusão patrimonial.
Acontece que, nesses tempos líquidos, o arauto prenuncia o fim da era do engajamento mútuo “entre supervisores e supervisados, capital e trabalho, líderes e seguidores”[2]. Assiste-se a um divórcio dos vínculos duradouros, cedendo-se lugar, em substituição, a laços cada vez mais precários, flexíveis e desnudos de proteção.
A Justiça do Trabalho, ao mesmo tempo, continuará a perder espaço de atuação. Criar-se-á, no âmbito do Ministério da Economia, o Conselho Administrativo com o objetivo de avaliar, em sede recursal, a idoneidade dos autos de infração lavrados pelos auditores-fiscais do trabalho, tarefa esta que, atualmente, está inserta na órbita competencial do Poder Judiciário trabalhista. No fundo, perscruta-se minar a atuação da Justiça do Trabalho, sob a justificativa de que o intento seja otimizar suas tarefas diárias. Sem suprimir competência, puxa-se mais uma vez para baixo sua valia institucional, ampliando a quilometragem de discussões meramente administrativas. A missão institucional do Ministério Público do Trabalho também foi alvo de sutil esvaziamento, na medida em que enfraquecida a carga jurídica de seus termos de ajuste de conduta.
Alterações estas — aqui apreciadas em rol não exaustivo — concentradas em uma medida provisória que tende a se converter em lei. Sabe-se que, em seu aspecto formal, deve a medida provisória ser utilizada como medida exceptiva, sempre que, pela urgência e gravidade da matéria, não se autorizar sua tramitação pelo processo legislativo, em tese, mais moroso (conforme artigo 62 da CF/88). Embora sejam conceitos jurídicos indeterminados, por urgência e relevância, entende-se aquela matéria que não comporta retardamento, “configurando-se em uma situação de fato, concreta, aferível, real, que implique risco de grave dano ou grave prejuízo a determinados valores básicos que somente a edição imediata de novas normas legais pode solucionar”[3].
No caso, entretanto, a desarticulação de normas tuitivas do Direito do Trabalho não se revela como urgente tampouco relevante a ponto de o Poder Executivo se valer do uso da medida excepcional, alinhavada no artigo 62 da CF/88. Ainda que o desemprego seja a marca indelével das justificativas levantadas, não se pode atribuir ao Direito do Trabalho e à Justiça do Trabalho a culpa pelos malfadados caminhos soerguidos pelo mercado econômico nacional. Ao Direito do Trabalho não se conferiu a possibilidade de criar ou reduzir empregos; muito menos foi a Justiça do Trabalho granjeada com a possibilidade de regular a economia globalmente considerada. Não foi o Direito do Trabalho o precursor da crise. Pelo contrário, durante uma década, atingiu-se o pleno emprego sob a égide da legislação trabalhista tradicional, antes mesmo de suas recentes amputações.
Por isso e por fundamentos outros, sob a ótica de sua roupagem, padece a MP 881/2019 de notória inconstitucionalidade. Em termos materiais também. Uma das promessas arquitetadas pela Constituição de 1988, em vários de seus dispositivos, consiste no aprimoramento do estatuto jurídico dos direitos sociais, vedando-se qualquer medida que escancare a porteira de seu retrocesso, máxime formulações que tentem encaminhar o sistema jurídico para o franco desmantelamento do núcleo de pactos sociais fundantes, cláusulas pétreas[4] — que, no caso brasileiro, afigura-se explícito quanto ao valor que atribuiu ao trabalho na Carta Magna de 1988.
A propósito, não custa relembrar do compromisso internacional a que o Brasil se carpiu ao adotar, em plano nacional — a agenda do trabalho decente — traduzindo-se na missão de promoção de oportunidades a homens e mulheres para que obtenham um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. A partir de sua definição, percebe-se, com clareza, o quão discutível se apresenta a MP 881/2019, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, justificativas e propósitos.
Nesse ponto, salutar o papel do Poder Judiciário de frenagem da utilização indevida de medidas provisórias para, sob as vestes de urgência e relevância, conduzir ao acinte dos direitos sociais. Não se deve, em hipótese alguma, evadir-se a sua missão constitucional, furtando-se de promover a análise dos seus pressupostos extrínsecos e intrínsecos, pondo-se ao largo da arena onde se fere a controvérsia jurídica, deixando os cidadãos ao desabrigo de proteção jurisdicional e a sociedade à mercê de caprichos de governantes de turno[5].
O Direito do Trabalho e os mecanismos de salvaguarda dos direitos sociais, concentrados basicamente na Justiça do Trabalho, cumprem o papel fundamental de construtores de cidadania, ao menos, grande parte dela, já que o conceito de cidadania não se esgota na dimensão laboral, mas, sobretudo, em questões relacionadas à educação, à segurança, à saúde, ao lazer, ao transporte, à previdência social, à moradia, à alimentação, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados.
Trabalhador sem direitos não gera renda. Empregador insolvente não gera empregos. Não à toa que o valor social do trabalho está geograficamente alinhado, no texto constitucional de 1988, lado a lado com o valor social da livre-iniciativa — sim, a livre-iniciativa só terá valia se tiver valor socialpara, aí sim, erigir-se como legítimo fundamento da República (CF, artigo 1º, IV). Embora sempre conflituosa a relação entre capital e trabalho, ainda não há provas reais de que um sobreviva sem o outro. E enquanto se demandar, por magno pacto civilizatório, valor social tanto ao trabalho quanto à livre iniciativa, permanecerá necessária uma legislação social protetiva — malgrado as agitações e os buchichos. Como declamou Quintana:
Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…
Do contrário, estaremos na fatídica trilha do retrocesso social.
Notas:
[1]SINZHEIMER, Hugo. Crisis economica y derecho del trabajo. Madrid: Servicio de Publicaciones – Ministerio de Trabajo e Seguridad Social, 1984, p. 83.[2]BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2017, p. 18.
[3]GRECO, Marco Aurélio. Medidas provisórias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 25.
[4]LOPEZ, Manuel Carlos Palomeque. Direito do trabalho e ideologia. Tradução de António Moreira. Coimbra: Almedina, 2001, p. 35.
[5]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Perfil constitucional das medidas provisórias. RDP: 1989, p. 11-15.
Cesar Zucatti Pritsch é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal e juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA).
Fernanda Antunes Marques Junqueira é juíza do Trabalho do TRT-14, doutoranda em Direito e Processo do Trabalho Contemporâneo pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ney Maranhão é juiz do Trabalho do TRT-8, professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA) e doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio na Universidade de Massachusetts (EUA).