Medida inaugura uma 2ª reforma trabalhista, sem ao menos termos um diagnóstico da 1ª.
Guilherme Guimarães Feliciano Paulo e Douglas Almeida de Moraes
Fonte: Jota
Data original da publicação: 25/11/2019
“Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos”, eis a máxima quase maquiavélica que parece compor o Leitmotiv da atual política econômica nacional. No campo do direito, porém, a questão é saber: (a) se esses ovos podem ser quebrados, e (b) se a receita da omelete atende às regras da casa.
Passados dois anos de vigência da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), os frutos prometidos ainda não foram alcançados: não tivemos recuperação dos empregos (seguimos na casa dos 13 milhões de desempregados), não houve segurança jurídica (apenas no STF foram mais de vinte ações diretas de inconstitucionalidade) e a queda vertiginosa de ações trabalhistas talvez se deva à violação da garantia constitucional de acesso à Justiça (ADI 3766).
Agora, o Governo traz ao mundo o “contrato de trabalho verde e amarelo”, por força da MP nº 905, do último dia 11/11. E, com ele, traz uma série de outras profundas alterações na legislação trabalhista em vigor. A bem dizer, inaugura uma segunda reforma trabalhista, sem ao menos termos um diagnóstico claro dos sucessos e malogros daquela primeira. E, nessa vereda, quebra muitos ovos.
A “carteira verde e amarela” foi concebida como um programa temporário (limitado a 31/12/2022), destinado a incrementar a mão de obra contratada. Renova-se, no particular, a fracassada experiência da Lei nº 9.601/98.
E, nesse encalço, cria uma subcategoria de trabalhadores, que – ao contrário do que se alardeia – não terá todos os direitos constitucionais assegurados em pé de igualdade com os demais empregados, exatamente porque: (1) o seu FGTS – que os juristas já consideraram espécie de salário diferido – será menor (2% a.m.), ainda que desempenhe as mesmas funções de outro empregado, mais antigo, no mesmo estabelecimento; (2) a indenização ao final do contrato será de 20% sobre o FGTS (e não de 40%, como assegura o art. 10, I, do ADCT).
Ora, o art. 7º da Constituição, ao dispor sobre os direitos sociais mínimos de trabalhadores urbanos e rurais, não estabelece distinções dessa natureza; ao contrário, o seu inciso XXX veda diferenças de salários, funções e critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
Há vários outros aspectos que devem merecer a atenção dos parlamentares. O texto parece dispor, p. ex., que não haverá correção monetária para os créditos trabalhistas entre a lesão do direito e a condenação perante a Justiça do Trabalho (porque dispõe aplicar-se o IPCA-E “entre a condenação e o cumprimento da sentença”), o que seria notoriamente grave.
Enfraquece o instituto do termo de ajustamento de conduta, uma das suas mais importantes ferramentas do Ministério Público do Trabalho para fazer valer a legislação social.
Elimina praticamente um direito histórico dos bancários – o da jornada de seis horas, sem cogitar da sua óbvia consequência no âmbito dos contratos individuais de trabalho: aumentar automaticamente o salário-hora (porque se o bancário for obrigado a trabalhar mais horas pelo mesmo salário, estará malferida a garantia constitucional da irredutibilidade dos salários). E outras disposições de mesma cepa, que não resistem ao olhar jurídico mais atento.
Durante o século XVIII, o grande Diderot afirmou que, a partir da observação de um ovo, poderíamos derrubar toda a teoria teológica e todos os templos do mundo. Eram tempos iluministas: o “ovo”, nesse contexto, era apenas um signo para a boa razão. Nos debates a seguir sobre a MP 905, esperemos que ao menos esse ovo não se quebre.
Guilherme G. Feliciano é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.
Paulo Douglas Almeida de Moraes é procurador do Trabalho da 24ª Região. Ex-Presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho .