Apesar da inegável contribuição da pandemia para explicar o atual quadro de aprofundamento das condições de vida dos menos favorecidos, o fato é que tudo tem início ainda em 2015, quando a estratégia do austericídio tomou conta da área econômica.
Paulo Kliass
Fonte: GGN
Data original da publicação: 26/08/2021
A gravidade da crise econômica e social que o Brasil atravessa ao longo dos últimos tempos é mais do que evidente. Em tese, bastaria um pouco de sensibilidade política para interpretar os fenômenos associados à escalada de variáveis que avaliam a realidade concreta da grande maioria de nossa população. Alguma facilidade no manejo de variáveis do âmbito da economia também ajudaria na compreensão do trágico momento que vivemos atualmente.
Mas quando esse sentimento vem a ser confirmado por evidências de informações estatísticas e de outras informações oficiais divulgadas pelos próprios órgãos governamentais, aí não nesse caso não resta mesmo a menor dúvida a esse respeito. Os grandes meios de comunicação, os “especialistas” de plantão associados ao financismo e o discurso oficialista da turma do Paulo Guedes nunca se preocuparam com os problemas vivenciados em seu cotidiano pelos setores da base da nossa pirâmide da desigualdade.
Apesar da inegável contribuição oferecida pela crise da pandemia para explicar o atual quadro de aprofundamento das condições de vida dos menos favorecidos, o fato é que tudo tem início ainda em 2015, quando a estratégia do austericídio tomou conta da área econômica dos sucessivos governos. A incorporação do diagnóstico identificando o excesso de gastos públicos e de um suposto tamanho desproporcional do Estado como os principais vilões da estória dominou cabeças e mentes por um bom tempo. Passou por Dilma, Temer e fincou raízes mais fortes com Bolsonaro.
Domínio do austericídio desde 2015
Uma das principais consequências de tal hegemonia de pensamento foi a proposição sistemática de medidas visando a reduzir o tamanho do setor público em nossa economia, lançando mão de ideias como privatização, concessão, terceirização e outras propostas de transferir a responsabilidade de funções do Estado para o capital privado. Por outro lado, a dominação do pensamento conservador e monetarista provocou a aceleração do desmonte de políticas públicas, tais como saúde, assistência social, educação e previdência social. Assim, o setor público tem sua dimensão reduzida e os direitos de cidadania previstos na Constituição transformam-se cada vez mais em mercadorias a serem oferecidas pelo setor privado a quem puder pagar pelas mesmas.
Esse quadro se combina com a incapacidade de a política econômica retomar padrões históricos de desenvolvimento. A percepção falaciosa de que tudo que cheire a setor público implica ineficiência, corrupção e gasto público exagerado leva à nefasta proposição do Estado mínimo. Assim, a solução recorrente passa pela ilusão liberal de que tudo se resolveria pela livre ação das forças de oferta e demanda. Ocorre que o Brasil se mantinha, desde a crise de 2008/9, na contramão daquilo que vinha aos poucos sendo implementado nos países mais ricos. O inusitado das dificuldades enfrentadas por Estados Unidos, União Europeia, por exemplo, naquele momento, colocou em xeque as recomendações típicas do cardápio neoliberal apresentadas até então. Assim, deu-se um verdadeiro cavalo de pau na implementação da política econômica. Toda a narrativa envolvendo a necessidade de austeridade fiscal a qualquer preço cedeu lugar a um discurso em favor da recuperação do protagonismo do Estado na solução da crise. O caminho foi o da elevação das despesas orçamentárias de vários tipos naqueles países.
Mas para os nossos liberaloides tupiniquins essa mudança de paradigma não seria digna de ser mais bem conhecida e estudada. Por aqui foi mantida a cantilena anti Estado e nem mesmo a chegada da pandemia – com suas evidentes necessidades de reforço da presença do setor público – foi suficiente para sensibilizar os corações da ortodoxia. Assim, até mesmo os indicadores oficiais passaram a retratar aquilo que se via nas ruas de todo o país. O aumento do desemprego e a “normalização” das condições da precariedade e da informalidade reduziram de forma drástica a renda das famílias. Por outro lado, a austeridade e a liberalização irresponsáveis diminuíram a capacidade de o setor público oferecer serviços minimamente razoáveis à maioria da população. A carência se generalizou e as condições de vida desceram vários degraus em sua qualidade.
Aumento da pobreza e da miséria
Além disso, há que se destacar a persistente elevação mais recente dos preços de vários componentes da cesta de consumo das camadas de renda mais baixa. Esse movimento passa a ser expresso nos índices de inflação, com destaque para alimentos, transportes e energia. Ora, a combinação perversa e explosiva entre preços em ascensão e rendimentos familiares em queda passa a acender a luz vermelha da crise social. Questões anteriormente quase solucionadas – a exemplo da miséria e da pobreza – voltam à agenda política em nosso País. A situação é tão preocupante que até mesmo Bolsonaro recua em suas críticas conhecidas ao Programa Bolsa Família, criado no governo Lula, e exige de sua equipe alguma coisa na mesma linha para chamar de seu. Afinal, no ano que vem teremos eleições e as pesquisas indicam que ele mal teria assegurada sua passagem para um eventual segundo turno, caso a disputa fosse realizada agora.
A questão da miséria tem sido trazida ao debate também a partir da proposição de um economista conservador e conselheiro da Presidência dos EUA no final da década de 1960. Arthur Okun sugeria a criação de um “índice de miséria”, que seria o resultado da combinação de dados de desemprego e de inflação. A consultoria LCA realizou um estudo para o período atual com essa perspectiva e chegou à conclusão de que os indicadores apontam uma piora a partir da posse de Bolsonaro e do comando da economia em mãos do super ministro Paulo Guedes.
O índice da empresa foi montado a partir da utilização dos indicadores oficiais de desemprego e de inflação do IBGE. Respectivamente, foram consideradas as coletas da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) e o INPC. O gráfico abaixo evidencia a piora significativa a partir da virada de 2019 para 2020.
Outra informação relevante refere-se ao comportamento da pobreza, definida a partir de um determinado nível de rendimento mensal obtido por famílias e/ou indivíduos. É óbvio que sempre cabe alguma discricionariedade para a definição de qual seria esse valor. O Banco Mundial (BM) define a condição de pobreza extrema a partir de US$1,90/dia e admite US$3,20/dia e US$5,50/dia para padrões de pobreza em países de renda média-baixa e média-alta.
Estudo desenvolvido pelo também conservador Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getulio Vargas (FGV – RJ) buscou avaliar a evolução recente dos indicadores de pobreza para a realidade brasileira seguindo a metodologia do BM. O quadro abaixo traz informações que comparam o desempenho entre os meses de janeiro de 2019 e 2021. São analisados dados com recorte estadual, permitindo uma verificação das diferenças regionais dos impactos. Para o conjunto do País, a parcela de pobres no total da população aumenta em 17% ao longo do biênio, saindo de 25,2% para 29,5%.
Entre outras unidades da federação, chamam a atenção os casos de São Paulo e Rio de Janeiro, uma vez que ambos apresentam piora nos indicadores superiores a 40%. Já o Distrito Federal registra o pior desempenho relativo, com um aumento do percentual de pobres de mais de 40%, passando de 12,9% para 20,8% no total da população distrital.
Os dois estudos acima mencionados não podem ser acusados de viés “esquerdista” ou “populista”. Foram realizados por entidades que transitam no campo do “establishment” e se utilizaram de informações oficiais do governo brasileiro. Mas a gravidade da crise não oferece escapatória. A pobreza e a miséria têm crescido de forma significativa no Brasil durante o governo Bolsonaro.
O caminho para a superação das dificuldades atuais passa pela substituição do capitão e sua equipe. E pelo abandono da atual política econômica e do programa de (des)governo, devendo serem permutados por um conjunto programático que recupere a trilha do desenvolvimento social e econômico, incluindo as necessárias medidas para a redução das desigualdades e da concentração de renda e patrimônio.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.