Mercantilização e desafios do Direito do Trabalho diante do paradigma ultraliberal

Os mecanismos de culpabilização e neutralização da nova/velha gramática do poder brasileiro estão a caminho, trazendo os estreitos limites da austeridade e do ultraliberalismo.

Sayonara Grillo C. L. da Silva

Fonte: Juízes para a Democracia
Data original da publicação: fevereiro/abril de 2016

Neste início de século, as transformações globais, políticas e econômicas, impulsionadas por uma hegemonia neoliberal, promovem a ampliação dos espaços e dos processos de mercantilização da vida humana, de modo a engendrar a mercadorização de tudo1, com a abertura e criação de novos mercados, que estão na base da lógica de funcionamento dos mecanismos atuais de acumulação por espoliação e que corroem os princípios da justiça social e as regras construídas do Direito laboral. Da mercantilização da terra e do trabalho, promovidos na institucionalização da economia de mercado capitalista2, assiste-se a novos impulsos de remercadorização do trabalho e de avanço no processo da criação de novas mercadorias.

Se a crise estrutural do capitalismo de fins do século XX foi alimentada pelo pensamento neoliberal, que flexibilizou e desregulamentou proteções institucionais construídas pelo trabalho ao longo de um século, a crise financeira de 2009 – apesar de ter características próprias relacionadas à lógica intrínseca do mercado de crédito e do endividamento público e privado – está por criar uma ambiência de fortalecimento dos princípios ultraliberais, com a expansão de políticas de austeridade, alimentada pelos processos de culpabilização e aninhada por uma cultura de medo3.

Como observa Supiot, a contrarrevolução ultraliberal se manifesta por um neoconservadorismo, pelo desfazer metódico da herança social da resistência, pelo desmantelamento das instituições e limitação da democracia, e pela vontade de despolitização4. O neoconservadorismo econômico opta “por uma política de confrontação com os países que não partilham sua maneira de ver o mundo e de concretizar a concorrência” inclusive de trabalhadores5. A privatização, a desregulamentação do trabalho, a livre circulação de capitais e o discurso apologético sobre a infalibilidade do mercado são recursos propalados que sustentam o que denomino de morfologias do retrocesso.

No Direito do Trabalho, a desconstrução se opera com novas características, o que exige uma reflexão sobre as especificidades do processo em curso. Para tanto, compartilho breves leituras. Com Supiot, observo uma privatização do estado-providência; certa “degenerescência corporativa na função pública”,
uma desconstrução do Direito; uma “pulverização do Direito em direitos subjetivos”, que desconstrói a dúvida metodologicamente erigida em torno do consentimento dos vulneráveis envolvidos em relação jurídica de poder, a expansão do paradigma da concorrência para atingir o próprio legislar, a competição entre as regras sociais e fiscais, com darwinismo normativo e dogmatização da liberdade de trocas econômicas e práticas de law shopping e de “mercados de produtos legislativos”, que devem levar à eliminação progressiva dos sistemas normativos menos aptos a satisfazer as expectativas financeiras dos investidores.”5

Com Casimiro Ferreira, aprendo sobre como a sociedade de austeridade se afirma por uma lógica dupla de atuação do Estado que assume o discurso da proteção contra a bancarrota, de combate à crise, ao mesmo tempo em que promove a individualização dos riscos sociais e sua mercadorização. Um direito emergente que apresenta a exceção como incontornável, à qual a soberania popular não pode se opor. Uma nova gramática de poder, no qual a excepcionalidade se instrumentaliza por uma racionalidade assentada em cálculos de custos, que liquidificam os obstáculos colocados pelo direito vigente.

Para Casimiro Ferreira, na esfera laboral o direito de exceção se constitui em ruptura paradigmática com os pressupostos do Direito do Trabalho – eliminando o conflito, enquanto elemento dinâmico das relações laborais, e a proteção do trabalhador mantenedora de sua condição de liberdade – que questiona suas funções protetoras, tornando-se o Direito Laboral, ele próprio, um produto de mercado7.

Neste contexto regulatório, observa-se a apropriação do discurso para criação de novos dispositivos, ao mesmo tempo de legitimação e dominação, no espírito novo do capitalismo8. A negociação coletiva ampla é uma reivindicação histórica e importante da classe trabalhadora no processo de sua constituição e afirmação como classe. O Direito do Trabalho é do Trabalho e não do Capital na medida exata em que traz em si a dimensão utópica da autonomia9.

Todavia, quando se propõe uma fissura total entre os sistemas jurídicos e se dá às partes a opção de escolher entre qual o ordenamento jurídico que lhe será aplicável10, não temos autonomia, temos “mercado de produtos legislativos”; um law shopping chegando a um direito, que deixaria de ser ambiguamente um direito capitalista do trabalho para se afirmar como um direito do capital sobre o trabalho. Ou seja, para um direito que não precisa ser revogado, pois se suspende. Afinal já se disse que é da lógica (perversa) do próprio Estado Democrático de Direito a admissão da exceção (para os vulneráveis)11.

Os mecanismos de culpabilização e neutralização da nova/velha gramática do poder brasileiro estão a caminho, trazendo os estreitos limites da austeridade e do ultraliberalismo. Cabe aos democratas alargar, e reorientar as setas e placas diretivas. Afinal, a ponte para o futuro, nada mais é que a ponte para a exceção e para o infortúnio para a classe, que vive do trabalho.

Notas

1 HARVEY, D. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011; STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica ed., 2014.
2 POLANYI, K. A grande transformação: as origens de nossa época. 2ª. ed. , Rio de Janeiro:
Campus, 2000.
3 FERREIRA, A. C. A sociedade de austeridade: Poder, medo e direito do trabalho de exceção. In:
Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 95, 2011.
4 SUPIOT, A. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Porto Alegre, Sulina,
2014, p. p.27-31.
5 SUPIOT, A. Op. cit., p.32
6 SUPIOT, A. Op. cit., p.61.
7 FERREIRA, A. C. Sociedade da austeridade e direito do trabalho de exceção. Porto, Vida
Económica, 2012.
8 BOLTASKI, L; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
9 LYRA FILHO, Roberto. Direito do Capital, Direito do Trabalho. Porto Alegre: Fabris Ed., 1982.
10 Conforme proposição contida no documento Uma ponte para o futuro: “na área trabalhista,
permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos
básicos;” http://www.ponteparaofuturo.org.br/docs/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online-2.pdf
11 Sobre a normalização da exceção no Brasil, ver GENRO, T. Do direito e da exceção dentro do
ajuste. Revista de Derecho Social-Latinoamérica -RDS–L. v.1, Albacete: Bomarzo, 2016, p.25.

Sayonara Grillo C. L. da Silva é professora da UFRJ, Desembargadora no TRT-1. Membra da AJD.

One Response

  • Muito interessante esse artigo. Mas me incomoda o fato de eu nao conseguir ver, na realidade do dia a dia, o que aí é exposto. Tudo me parece muito teórico, com palavras chaves que postas no texto se autolegitimam, dispensando sua explicação ou comprovação empírica.
    Acho que essa distância discurso-realidade acaba prejudicando o ingresso dos maiores interessados – os trabalhadores – na discussão.
    Talvez eu é que esteja desinformado…

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