Medidas provisórias trabalhistas no Supremo

Fotografia: Gil Ferreira/STF

O legado autoritário do STF de omissão na revisão dos critérios de relevância e urgência.

Martin Magnus Petiz

Fonte: Jota
Data original da publicação: 26/05/2022

A pandemia parecia ter caracterizado um cenário de urgência e relevância indiscutível para praticamente qualquer área do Direito. Por isso, não surgiram grandes controvérsias quanto à regulação das relações de trabalho por meio das várias MP’s aprovadas pelo governo federal.

Com o relaxamento das medidas de contenção da pandemia, e a baixa do número de casos e mortes decorrentes da Covid-19, o tema volta à tona no debate público sobre o Direito do Trabalho com a edição de novas MP’s em um contexto desprovido da urgência originalmente instituída pela pandemia, e em matérias claramente sem a relevância de temas como aqueles que foram tratados no começo de 2020.

No último dia 25 de março, o governo editou a MP nº 1.108, sobre o auxílio-alimentação e o regime de teletrabalho; no dia 4 de maio, a MP nº 1.116, que institui o “Programa Emprega + Mulheres e Jovens.” Propõe-se, a partir disso, revisitar o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) na conformação desse cenário de proliferação de MP’s trabalhistas.

Maurício Godinho Delgado já anunciou há tempos a intuição de que foi o STF quem definiu as medidas provisórias como o instrumento legislativo por excelência no contexto político brasileiro para a edição de políticas trabalhistas [1]. A Medida Provisória (MP) é instrumento normativo colocado à disposição do presidente da República como função legislativa atípica exercida por este. Surgiu na Constituição de 1988, em substituição à figura do decreto-lei, constando no artigo 62, caput, da Constituição.

Embora houvesse a consciência de que era preciso expurgar a figura do DL, espécie de herança maldita da ditadura militar, a intenção dos constituintes era a de garantir que houvesse um instrumento legislativo capaz de impedir paralisias institucionais como a que gerou o golpe de 1964. Por isso, a MP manteve o elemento de eficácia imediata, dependendo apenas de aval posterior do Congresso para se manter no mundo jurídico. No entanto, tudo leva a crer que a prática dos governos do regime constitucional de 1988 aproximou demais o instituto das MPs do antigo DL, servindo como instrumento cotidiano de governo, e não como medida de exceção, mesmo após a Emenda Constitucional 32 de 2001.

O Direito do Trabalho não foi incluído no rol de matérias vedadas pelo § 1º do novo artigo 62 da CF/88 como tendo sua regulação por via de MPs. Tal fato pode ser explicado por meio de uma análise da atuação do STF na construção da sua jurisprudência sobre o tema, uma vez que muito do que foi positivado na EC n. 32/2001 partiu justamente de decisões paradigmáticas do Supremo na década de 1990 [2].

O contexto institucional em que decisões-chave foram tomadas pelo STF sobre a questão das competências legislativas foi fundamental para gerar esse cenário. No cenário pós-constituinte, o STF teve de enfrentar o legado autoritário deixado pela ditadura militar em um contexto de afirmação de novos poderes de controle jurisdicional. Na área trabalhista, o STF foi extremamente restritivo, limitando a expansão da legitimidade ativa pretendida pelos constituintes, por exemplo, com a supressão do acesso pelas centrais sindicais à jurisdição constitucional [3].

De fato, a transição política é um período de muita controvérsia e indecisão, sobretudo quando se busca romper com um regime autoritário, como foi o caso no Brasil. Entretanto, isso não basta para explicar por que o STF se omitiria a derrubar decisões políticas de um regime ditatorial derrotado, e contra o qual a nova Constituição – fruto de amplo consenso político democrático – autorizava por meio de diversos instrumentos a derrubada das suas medidas autoritárias.

Para explicar essa postura do STF, um fator relevante foi a continuidade da instituição e dos ministros indicados por presidentes da ditadura. Foi levantada mais de uma vez a hipótese de reforma da instituição na Assembleia Constituinte, com a criação de uma nova corte constitucional, mas sempre sem sucesso [4]. Desse modo, é preciso considerar que padrões construídos ao longo do regime autoritário da ditadura militar influenciaram a concepção individual dos membros que vieram a ser ministros mesmo após a nova democracia. Os ministros indicados após 1988 se depararam com concepções de dever ou de ação significativa inerentes ao cargo que vieram ocupar.

A dificuldade do STF de controlar o Poder Executivo também não é exatamente uma novidade do regime constitucional de 1988. A “doutrina da questão política” data da época da República Velha, e foi repetida inúmeras vezes para que mandatários com tendências autoritárias suprimissem o poder de veto do STF. A ditadura militar (1964-1985) abusou da prática de interferir na independência do Supremo – seja por meio das aposentadorias forçadas, nomeações a tribunais, suspensão de garantias como a vitaliciedade e a estabilidade, seja por meio das cláusulas de “imunização” dos Atos Institucionais.

Como produto de um amplo movimento de democratização, a Constituição de 1988 buscou reformular o catálogo de direitos sociais, dentre os quais inúmeras garantias trabalhistas foram elevadas a patamar constitucional. Entretanto, sem a garantia de mecanismos institucionais de afirmação e proteção desses direitos, eles poderiam se tornar facilmente “letra morta.” É uma crítica famosa à “inefetividade das cartas de direitos” no constitucionalismo latino-americano afirmar que não se dá a atenção necessária para a reforma da organização dos poderes nas constituições, o que acaba por influenciar o grau de alcance das novidades constitucionais.

Essa tese foi avançada de modo exemplar pelo constitucionalista e filósofo político argentino Roberto Gargarella [5], e não poderia se aplicar melhor no nosso caso: um STF impregnado por um legado de interferências escusas na sua atuação não conteve práticas centralizadoras no processo legislativo, permitindo que “boiadas fossem avançadas” na área trabalhista.

A decisão institucional de manter um instrumento legislativo de vigência imediata à disposição da presidência, ao lado da continuidade daquele STF conformado pela ditadura manteve um padrão que se queria interromper com a nova Constituição. Justamente quando o intuito era garantir direitos trabalhistas contra decisões políticas imediatistas, o STF permitiu e incentivou o contrário.

A começar pela ADI 162, julgada em 14/12/1989: foi a primeira ADI a questionar uma MP no STF (MP 111/1989), que instituía hipóteses de prisão temporária e novos tipos penais por meio de um instrumento legislativo excepcional e efêmero. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou a ação alegando diversas inconstitucionalidades materiais, mas, principalmente, a ausência de relevância e urgência em se criar novos crimes.

Nesse sentido, caberia ao STF impedir que a MP se tornasse mais do que ela deveria ser no novo regime. O relator foi o ministro Moreira Alves, nomeado para o Supremo em 1975 pelo presidente Ernesto Geisel (1974-1979). O relator defendeu que o artigo 58 da Constituição de 1967 instituía requisitos que tinham de ser deixados ao “discricionarismo dos juízos de oportunidade ou de valor do presidente da República.” Para justificar a sua tese, recorreu a um precedente do auge da Ditadura Militar – o RE n. 62.739, de 1968 –, o qual dava preferência à discricionariedade do juízo do presidente. Apenas em casos extremos caberia ao STF intervir, mas, como a história comprova, isso poucas vezes ocorreu.

O primeiro caso envolvendo medidas provisórias trabalhistas na Corte foi a ADI 1675 MC, em 1997. Nesse caso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio demandou a inconstitucionalidade da MP 1.539, no seu artigo 6º, o qual autorizava o trabalho aos domingos no comércio varejista, indiscriminadamente. Antes de alegar violações materiais, a requerente alegou a ausência de relevância e urgência na MP em questão por ter sido ela reeditada 33 vezes. O relator, ministro Sepúlveda Pertence, afirmou no caso que os requisitos da relevância e urgência gozariam de “limites mínimos determináveis”, e criticou o que chamou de “abuso [na promulgação] das medidas provisórias.

A despeito de tais manifestações, não exerceu o controle dos requisitos de relevância e urgência, e a MP foi suspensa por violação material ao direito ao repouso semanal aos domingos, disposto no artigo 7º, XV, CRFB/88. O ministro foi seguido por 9 dos outros 10 ministros, mas apenas o ministro Marco Aurélio defendeu a ausência dos pressupostos de relevância e urgência, que não concorreriam em casos de intervenção no mercado de trabalho.

Ainda em 1997, o caso foi revisitado pela Corte. A mesma CNTC ajuizou a ADI 1687 MC para discutir o artigo 6º da mesma MP 1.539/97, sob o argumento de que o governo reeditou a MP, com algumas alterações, malgrado a ADI 1675 já tivesse suspendido a sua vigência. O relator foi novamente o ministro Pertence, que se reportou às suas razões da ADI 1675 MC para suspender a MP. No entanto, venceu a tese do ministro Nelson Jobim, para quem não haveria violação da Constituição agora que o repouso semanal havia sido regulado como sendo, no mínimo, uma vez aos domingos a cada quatro semanas. Em face disso, indeferiu-se a cautelar.

O ministro Marco Aurélio não se contentou com a fundamentação novamente pelos mesmos motivos, mas prevaleceu, por um placar de 6 a 5, a tese de que a MP em questão não violava qualquer preceito constitucional. Com isso, o STF definia, implicitamente, a permissão para a edição de MPs em matéria trabalhista, sem violação do caput do artigo 62 da Constituição. Mais do que isso: o STF dava aval ao padrão institucional de se deixar à discricionariedade da presidência a apreciação dos requisitos de relevância e urgência.

A ADI 1687 MC acabou por instituir um paradigma no tratamento de MP’s trabalhistas no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Ela deixou clara a possibilidade de edição de MPs para matéria trabalhista, e aderiu a argumentos que podem ser reenviados ao funesto precedente do RE 62.739, proferido no auge da ditadura. Tal postura não foi observada em outras matérias, nas quais o STF rejeitou a possibilidade de edição de MPs, como o Direito Penal (como no caso da ADI 162) e o Direito Processual Civil, por exemplo, o que gerou reflexos depois na redação da EC 32/2001.

Com isso, até os dias de hoje, a regra segue sendo a edição indiscriminada de Medidas Provisórias em questões trabalhistas sensíveis e que demandariam longos debates entre os grupos envolvidos. Um olhar ao passado contribui, dessa forma, para encontrar não só as causas do problema, mas possíveis formas de enfrentar a questão.

No caso de matérias como Direito Penal e Direito Processual Civil, a questão da liberdade negativa fica muito mais evidente, e isso fortaleceu o discurso de que as MPs, por serem medidas efêmeras, que podem ser desfeitas caso o Legislativo as rejeite, não são cabíveis para legislar sobre o tema. No caso do Direito do Trabalho, a necessidade de diálogo tripartite e de prospecção dos efeitos para o futuro das medidas adotadas como políticas públicas trabalhistas é que precisa ser realçada. A MP suprime essa possibilidade, pelo seu caráter vertical, imediato e avesso ao debate – características entranhadas no DNA desse instituto jurídico desde o Decreto-lei, o seu parente distante.

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Notas

[1] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 16ª ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2017, p. 167.

[2] OLIVEIRA, Clarice G. AMARAL JR. José Levi Mello do. Medida provisória e controle de constitucionalidade: relevância, urgência e pertinência temática. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Vol. 7, n. 3, dez./2017, p. 749-763, p. 749.

[3] PETIZ, Martin Magnus. A CONTROVÉRSIA HART VS. KELSEN SOBRE O FUNDAMENTO DE VALIDADE DO DIREITO E A TEORIA DA RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL DE NORMAS. Revista FIDES, Natal, v. 13, n. 1, p. 470-490, 2022.

[4] ARGUELHES, Diego Werneck. Old courts, new beginnings: judicial continuity and constitutional transformation in Argentina and Brazil. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Yale (EUA), New Haven, 2014, p. 76-83.

[5] GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. Oxford University Press, 2013.

Martin Magnus Petiz é Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito (USP). Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas – Direito (UFRGS).

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